O ano de 2021 foi realmente duro. Ainda está por fazer um inventário do que o isolamento social causa nas pessoas ao longo de mais de 90 semanas (até o momento). E de como levamos o barco mentalmente.

Por Walter Sorrentino, em seu blog*

As experiências são pessoais, não só coletivas. Algo se salvou: mais tempo para literatura, música e cinema (mesmo que no streaming). É verdade que música e cinema se viram mais limitados em lançamentos. Minha experiência maior foi com literatura (não incluindo textos de estudo). Basicamente falo de livros lançados em 2021 (e só em alguns casos do que li em 2021).

O fato é que o ano foi terrivelmente rico na literatura. O que mais me impressionou positivamente foi o grande número de lançamentos de autoras femininas, donas de um talento narrativo, de uma riqueza de percepções, força telúrica mesmo, para lidar com temas que só mulheres poderiam retratar com tanto empenho. Na maioria são brasileiras. Quero partilhar alguns dos títulos e autoras, recomendando sua leitura.

Para começar pelas brasileiras, todas mergulham na alma feminina com temas fortes como a condição de mães e vida familiar, também aparecem a condição da sexualidade (prostitutas, ou ainda o estupro). É uma escrita criativa, com percepções e narração de incrível riqueza espiritual. Dão uma porrada na gente pela sensibilidade e modo de narrar Vista chinesa, de Tatiana Salem Levy; Tudo é rio, de Carla Madeira, (todos sabem: foi o sucesso do ano); Suíte Tóquio de Giovana Madalosso, Os tais caquinhos de Natércia Pontes; A extinção das abelhas de Natalia Borges Polesso e Copo vazio, de Natalia Timerman.

Não esqueço as reminiscências ricas, delicadas, que se incorporam às brasilianas, digamos assim, de Vivos na memória, de Leyla Perrone-Moisés.

Houve obras de grande valor, ainda de mulheres, na literatura mundial. Cito quatro, também jovens, mas com obras maduras que foram sucessos no mundo.

Em Canção de ninar e também No jardim do ogro, Leïla Slimani, uma franco argelina, trata das mesmas temáticas já mencionadas. O que conta é sua percepção aguda e delicada ao mesmo tempo, com personagens na condição de mãe ou da de viciada em sexo, vivendo a contradição aguda que a situação envolve em ambiente familiar padrão.

A israelense Ayelet Gundar-Goshen, com o fabuloso Uma noite, Markovitch destacado lançamento do ano, e Despertar os leões, livro anterior, me impressionou vividamente – história, sentimentos, agruras da vida, em especial dos judeus que voltaram a Israel vindos da Europa e se estabeleceram como colonos… Ela foi mesmo de um realismo mágico.

A fama de Chimamanda Ngozi Adichie, a escritora feminista nigeriana, com seu lançamento Americanah, é inteiramente justificada. Seu livro, e também o ensaio Todos deberíamos ser feministas, mostra literariamente uma obra que vai muito além do rótulo feminista, com sua imersão de migrante na sociedade norte-americana, os encontros e desencontros com seu povo. Riquíssimo o Americanah.

Camila Sosa Villadas também compareceu à temática LGBTQI+ com O Parque das Irmãs Magníficas, e fez uma obra marcante.

É um dado inédito e de grande potencialidade: são na maioria autoras jovens, algumas até com obras inaugurais, mas literariamente maduras. Mulheres irrompendo na literatura (assim como em todos os demais domínios) e jovens, são garantia de futuro esplêndido para as letras. E, claro, para sua completa emancipação!

Alguns lançamentos de 2021 no Brasil foram de obras já anteriores que não haviam sido publicadas aqui. São inquietantes na literatura, também de autoras mulheres mais consagradas, O lugar, de Annie Ernaux, A Porta, de Magda Szabó e Más al sur (edição em espanhol) de Paloma Vidal. Também Elena Ferrante compareceu, com uma obra um tanto menor, mas significativa, A vida mentirosa dos adultos, neste caso também editada em 2020. Valham!

É preciso falar também dos autores que nos enriqueceram o espírito no ano. Dos brasileiros, destaco Torto arado, de Itamar Vieira Junior e O avesso da pele, de Jeferson Tenório. Ambos são memoráveis e ultrapassam algumas fronteiras na literatura nacional, pela força com que inserem a condição negra na literatura contemporânea.

Velho de guerra, mas imortal: não perdi Verissimo antológico: Meio século de crônicas, ou coisa parecida, isso mesmo, 50 anos das melhores crônicas de Luis Fernando Verissimo. Livro de cabeceira para fazer levitar a alma.

Compareceram e me marcaram profundamente Quichotte, de Salman Rushdie, uma revisitação mágica própria da contemporaneidade partida e alienada do tempo contemporâneo. Segue a prolífica obra de Haruki Murakami com Sul da fronteira, oeste do sol. Como com nosso Veríssimo ganhamos muito com Rayuela (edição em espanhol) com os contos de Julio Cortázar, o magistral argentino. Com isso revisitei obras anteriores também marcantes, como foram Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, de Umberto Eco (mas ainda totalmente atuais sobre a pós-verdade e o impacto das fakes), e A Casa Dourada: Romance, de Salman Rushdie, no coração de Manhattan, uma metáfora do tempo.

Valeram também El polvo al viento e Água por todos os lados (este de 2020), de Leonardo Padura, dando tratamento literário à complexidade da realidade cubana e sua experiência de vida em Cuba. Também Terra alta, de Javier Cercas, catalão de adoção com uma obra literária imensa, neste caso com um romance policial profundo. Valeu a pena revisitar o emblemático Sostiene Pereira, clássico de Antonio Tabucchi, em tempos fascistizantes em nosso país.

E há também outras chaves destacadas no ano.

Lula, volume 1: Biografia, de Fernando Morais, é imperdível. Não é só a biografia que emociona, mas é a biografia narrada/escrita por Fernando Moraes. Dá gosto de ler, o cara é insuperável para contar uma história.

Quem não quiser apenas espairecer, recomendo: Macroeconomia desenvolvimentista: teoria e política econômica do Novo Desenvolvimentismo, de Luiz Carlos Bresser Pereira, um compêndio também totalmente atual e necessário para os tempos que virão com a vitória de Lula; e China, o socialismo do século XXI, para falar de esperança real e possível de uma humanidade solidária.

E também A máquina do ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, da magistral Patrícia Campos Mello, segue necessário ser lido, a qualquer tempo.

Padre Cícero: Poder, fé e guerra no sertão, de Lira Neto, é indispensável para entender a sociedade e política brasileiras. E há também o delicioso Arrancados da terra: Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova York, também de Lira Neto, também uma deliciosa narrativa.

Em ciências, lembro O verdadeiro criador de tudo, de Miguel Nicolelis, grande palmeirense, que realmente trata de tudo. Imperdível, se tiver tempo e chover bastante é boa companhia.

Brian Greene também nos brindou no ano com Até o fim do tempo: Mente, matéria e nossa busca por sentido num universo em evolução. Trata do fim do tempo, ainda que popularizando didaticamente a ciência.

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*Vice-presidente Nacional e secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)