Punição coletiva a atletas russos viola a Carta Olímpica

Duas semanas após Trump assinar nos EUA uma lei autorizando sanções aos “promotores de doping” no esporte, a Corte de Arbitragem do Esporte (CAS, na sigla em inglês), julgando apelação da Rússia contra decisão da Associação Mundial Antidoping (Wada) que pretendia estender por mais quatro anos a caça às bruxas contra os atletas russos em vigor, manteve a punição, por mais dois anos.

O CAS demorou um ano para se pronunciar, devido à pandemia. Na época, ao rechaçar a sentença da Wada, o presidente russo Vladimir Putin foi ao cerne da questão. “O principal, e todos estão de acordo aqui, qualquer punição deve ser individual, deve ser direcionada com base no que um indivíduo em particular fez. Não podemos ter punição coletiva”, ressaltou Putin.

Sob pressão de Washington, o CAS passou ao largo do princípio de que não pode haver punição coletiva – e da Carta Olímpica, cujo espírito essencial, como definido pelo Barão Pierre de Coubertin ao retomar os jogos na era moderna, era fazer do esporte um fator de congraçamento e pela paz. Como originalmente na Antiga Grécia, onde até a guerra parava para sua celebração.

Pela sentença, está prejudicada a participação russa nas Olimpíadas de Tóquio do próximo ano, nos Jogos Olímpicos de Pequim de 1922 e na Copa do Mundo de 2022.

O país não poderá, ainda, sediar eventos de porte continental ou ser eleito para cargos nos órgãos internacionais do esporte. Em contrapartida, e para irritação dos promotores da histeria anti-russa, o CAS amenizou algumas das algumas das cláusulas mais draconianas a que foram submetidos os atletas russos nos anos recentes.

Não poderão usar a bandeira, mas poderão ter as cores nacionais russas; os torcedores russos foram autorizados a empunhar sua bandeira. Não há exigências extraordinárias à inscrição de atletas russos, só a de que estejam ‘limpos’. O Campeonato Mundial de Hóquei sobre o Gelo, marcado para 2023, não foi atingido, e a Rússia também poderá realizar a etapa da Eurocopa em São Petersburgo. A proibição a que o presidente ou outros líderes russos possam comparecer à Olimpíada de Tóquio e aos Jogos de Inverno de Pequim foi atenuada, deixando a cargo do país anfitrião a possibilidade do convite.

Embora o encurtamento da caça às bruxas haja sido recebido com extrema irritação pela entidade antidoping norte-americana como um “prêmio” aos russos, em Moscou atletas e dirigentes esportivos reagiram com indignação. “Não se pode punir muitas vezes as pessoas pelas mesmas – e não cometidas – violações”, afirmou a três vezes medalhista olímpica de ouro em esqui, Elena Vyalbe, e atual treinadora da equipe russa da modalidade cross-country.

“Não estou pronto para ficar feliz porque, em vez de quatro anos de suspensão, recebemos apenas dois. Dois anos são duas Olimpíadas, só para garantir. E se você é inocente, mas vai para as Olimpíadas como uma pessoa suspeita sob estandarte neutro, não acho que isso seja motivo para emoções positivas”, afirmou o presidente do Comitê Olímpico Russo (ROC) Stanislav Pozdnyakov.

Como salientou o ex-campeão olímpico e atual deputado da Duma, Vyacheslav Fetisov, “inocentes, os atletas são punidos não pelos próprios pecados, mas apenas porque todo o sistema de esportes estatal do país é punido”. Para ele, os atletas russos foram tornados “reféns”.

A Presidente da Comissão de Atletas do Comitê Olímpico Russo, campeã olímpica em esgrima, Sofya Velikaya, disse que “como atleta ativa, não considero justa a decisão do CAS em relação à bandeira e ao hino. Mas conseguimos competir com uniformes com as cores da bandeira russa em todas as competições, sem exceção, o que significa que todos entenderão que representamos a Rússia – um país que deu uma contribuição colossal para o desenvolvimento de todos os esportes mundiais”, registrou a agência de notícias TASS.

A técnica da patinação artística da URSS, Tatyana Tarasova, convocou os atletas russos a responderem às sanções da Wada “com suas vitórias”. “Parecia-nos que já tínhamos sido castigados. Não esperava que, pela mesma coisa, sejamos punidos duas vezes. Bem, aconteceu assim. Precisamos tomar algumas medidas, vencer muito”.

“Boicote aos Jogos Olímpicos? Eu não apoio, não fã”, acrescentou Tarasova. “As pessoas trabalham desde os quatro anos de idade, e depois por causa de um tio, de quem ninguém mais lembra, os atletas sofrem. Que eles não sofram, mas alcancem vitórias”.
Para o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, “o principal é que os atletas russos possam participar de competições internacionais, o que ajudará a manter suas qualificações internacionais e sua forma atlética”. Sobre a proibição de que Putin participe de eventos olímpicos internacionais, ele deplorou a decisão.

Em 2019, a Wada havia declarado o órgão antidoping russo (Rusada) como “não cumpridor” de suas exigências e decretado os quatro anos de punição – atletas russos impedidos de competir sob a própria bandeira, o país sob a pecha de promotor do doping e proibido de sediar jogos.

Esse status de “não-cumpridor” era mais ou menos como os inspetores de armas dos EUA faziam no Iraque: exigiam que Sadam “mostrasse as armas de destruição em massa” que não existiam e, como Sadam não podia mostrar o que não existia, isso era a “prova” de que escondia as armas de destruição em massa.

Acusações mirabolantes com base na palavra de apenas uma pessoa que desertou para os EUA, o ex-chefe do laboratório antidoping de Moscou, Grigory Rodchenkov, foram aceitas como verdades inquestionáveis.

Da suposta violação das tampas dos frascos especiais para ‘limpar’ os testes de urina ao gargarejo com uísque Cevas para passar no antidoping. Os acusadores não precisam provar nada, na linha de “não sabemos como eles adulteraram as amostras de urina, mas sabemos que os russos fizeram isso”. O advogado que encabeçou a ‘investigação’ da Wada, o canadense Richard McLaren, admitiu que não ouviu ninguém na Rússia.

Moscou jamais negou que sim, houve problemas de doping – questão que não é uma exclusividade russa -, mas nada na escala apontada, e nenhum país jamais foi tratado como a Rússia ao supostamente ser flagrado em doping. Como a proibição geral aos atletas paralímpicos russos de competirem nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, ou atletas despojados de medalhas sem comprovação de culpa. Ou a exclusão de diversos atletas limpos, sem qualquer explicação, dos Jogos de Inverno na Coreia.

O articulista inglês Neil Clark se referiu aos dois pesos e duas medidas quanto ao doping no mundo, lembrando que em 2003 o ex-diretor de Controle de Drogas do Comitê Olímpico dos EUA, Wade Exum entregou mais de 30.000 páginas de documentos à revista Sports Illustrated e ao Orange County Register, que mostravam que mais de 100 atletas americanos falharam em testes de drogas entre 1988-2000, mas ainda tiveram permissão para competir, incluindo Carl Lewis.

“Mas adivinhe o que? Não houve um relatório ao estilo Richard McLaren e nenhuma proibição geral de atletas dos EUA. E nenhum filme feito sobre o caso”, enfatizou Clark.

Enquanto isso, o chefe da entidade antidoping norte-americana, Travis Tygart, deu-se ao desfrute de considerar a decisão do CAS como “um golpe catastrófico para a pureza dos atletas, a integridade dos esportes e do Estado de Direito”.

Em parte, é também pura projeção dos próprios malfeitos. Apenas um ano antes do início da caça às bruxas contra os atletas russos, veio à luz relatório encomendado pela Federação Alemã de Esportes Olímpicos, que elucidou o mistério do “Milagre de Berna”, a vitória da seleção da Alemanha Ocidental sobre a Hungria socialista na Copa de 1954, a melhor equipe de futebol da época, surpreendentemente batida por 3-2, depois de ter espancado por 8-3 os alemães na fase de grupos.

Não só os jogadores alemães foram injetados com metanfetamina Pervitina, de acordo com o relatório, mas Bonn havia mantido um programa de doping estatal por 20 anos. Não há notícia de alguma providência para que os alemães devolvam a Copa à Hungria.

Difícil separar a escalada de acusações contra o esporte russo – e toda a histeria anti-russa – do levante do povo da Crimeia, que em referendo se recusou a se sujeitar ao golpe imposto na Ucrânia e escolheu a reunificação à Rússia, como fora por séculos. Aliás, o golpe – da CIA, neonazis e oligarcas ladrões – na Ucrânia foi realizado durante os jogos de inverno de Sochi.

Desde então, a coisa foi num crescendo, só reforçado pelo apoio de Moscou a vitória do povo sírio contra os terroristas armados e financiados pelo Ocidente, que evidenciou que o mundo unipolar sob Washington está ruindo.

O que não impede o esperneio: a ‘lei Rodchenkov’ assinada por Trump tem a pretensão de decretar jurisprudência extraterritorial norte-americana sobre supostos promotores de doping, que podem ser submetidos a pena de 10 anos e pesadas multas. Por via das dúvidas, as ligas profissionais de esporte dos EUA foram excluídas dos seus efeitos.