O presidente da Argentina, Javier Milei

O mercado financeiro não tem pena de seus heróis ultraliberais. Pouco mais de um mês de governo, e a lua de mel com o presidente argentino, Javier Milei, já azedou. O cenário é de preços de títulos caindo, peso se enfraquecendo novamente e investidores cautelosos com os novos leilões de dívida do governo. Com isso, o desespero do novo governo para acumular reservas em dólares e dar a guinada da controversa política de dolarização vai se tornando um sonho distante.

Junto com isso vem a falta de uma maioria no Congresso, que resiste a seu projeto de reforma Ómnibus, que visa privatizar entidades estatais e aumentar os impostos. Um decreto que desregulamenta a economia também enfrentou obstáculos judiciais.

A reportagem consultou o economista e cientista político argentino Eduardo Crespo, professor da UFRJ, que compartilhou suas análises sobre a atual situação econômica da Argentina, destacando a persistência da inflação elevada e a fragilidade das políticas governamentais.

Ele expressa preocupação quanto à falta de clareza sobre o plano do governo para enfrentar os desafios econômicos, mencionando que as ações iniciais, como desvalorização e ajuste de tarifas, não parecem formar um plano de estabilização consistente.

“Você pode compartilhar o plano ou não. Mas não está claro se há um plano, qualquer que seja. Porque as medidas que foram adotadas, como essa desvalorização com ajuste de tarifas, não têm a cara de um plano de estabilização consistente, como foi na década de 1980 o Plano Austral de Raul Alfonsin, ou o Plano Real no Brasil, que tem um conjunto de medidas que se tomam, todas juntas, com políticas de renda. Não tem nada disso. É só uma desvalorização que acelera a recessão”, pontua ele.

Crespo aborda a preocupante trajetória da inflação no país, enfatizando que, apesar das diversas medidas implementadas pelo governo, os índices não mostram sinais de arrefecimento. O economista observa que a inflação, atualmente em torno de 10% a 11%, poderá atingir 30% nos próximos meses, a menos que medidas eficazes sejam adotadas.

“O ganho que houve em termos de redução da brecha entre o dólar paralelo e o dólar oficial, já se amplia e volta a se desvalorizar. A lua de mel durante um mês, não foi só do mercado. É uma época do ano que tem festa e férias e, provavelmente, associada a essa tranquilidade que houve com o dólar oficial, que tinha ganhado competitividade. Agora, voltou a se encarecer dramaticamente, em termos internacionais, e não seria surpreendente voltar a ter uma desvalorização em março”, pondera.

Ambição nula

Crespo também analisa a viabilidade e impacto das propostas de reformas radicais que estão em discussão no cenário político do país. Em meio à crescente preocupação da população com a inflação e os preços, Crespo aborda a possibilidade de aprovação dessas reformas ambiciosas e seu potencial efeito nulo nas condições econômicas.

Sobre a influência dessas mudanças em potencial, caso sejam totalmente aprovadas, Crespo expressa ceticismo em relação à sua relevância para a situação atual. Ele enfatiza que, embora essas medidas sejam significativas a longo prazo, e possam afetar diversos setores, sua aplicação não teria impacto imediato na macroeconomia.

“Eu acho que não afeta nada. São medidas muito importantes, mas de longo prazo, que afetam um bando de setores, algumas são até necessárias, dependendo da avaliação. Nem tudo isso é tão ruim assim. Eu até poderia estar de acordo de maior concorrência em determinadas áreas e coisas assim, mas são coisas de longo prazo, que não têm nada a ver com macroeconomia. Não vai reduzir a inflação com isso aí, teria impacto nulo, completamente inexistente para a macroeconomia”, afirma Crespo.

O economista destaca que as propostas apresentadas visam uma mudança radical na Argentina, falando em “refundar o país” e redefinir o curso das últimas décadas. Ele observa que, enquanto as reformas podem ter relevância em termos de longo prazo e concorrência setorial, no curto prazo, as questões prementes, como a inflação e a estabilização macroeconômica, permanecem desatendidas.

Crespo ressalta a ambição do plano, comparando-o com propostas anteriores que buscavam mudar a trajetória do país em relação a diferentes períodos históricos. Ele ironiza o fato de Milei falar em mudar tudo o que foi feito nos últimos 100 anos. “De fato, ele fala nisso. Na época de Macri, o papo era mudar o país com relação ao que aconteceu nos últimos 70 anos, porque era o peronismo; agora são 100 anos, desde que há eleições livres na Argentina”.

O economista alerta para o descompasso entre as necessidades imediatas da economia, especialmente em relação à inflação, e a abrangência e impacto relativamente baixos das reformas propostas. “No curto prazo, estão dependendo de inflação e de ordenar minimamente a macroeconomia. Então é uma coisa muito ambiciosa com impacto muito baixo e nulo para a macroeconomia, que é onde estão mais fracos ou com menos chances de encontrar uma saída”.

O humor argentino

Crespo também foca nas dinâmicas de curto prazo que podem influenciar o humor da população e a popularidade do governo. Ele oferece uma visão aguda da delicada situação em que medidas impopulares e contradições ideológicas podem impactar a estabilidade do governo e a satisfação da população.

Ao ser questionado sobre o humor do eleitor argentino, especialmente em relação ao político Javier Milei e ao atual governo, Crespo reconhece a impaciência característica do país. Ele ressaltou que a Argentina é marcada por uma sociedade, onde tudo precisa ser feito rapidamente, o que pode dificultar a implementação de políticas de longo prazo.

“A paciência argentina realmente é pouca. Um país muito impaciente em geral, especialmente nos setores médios. Esse também é um dos problemas da Argentina, porque tudo tem que ser feito rápido e ninguém consegue fazer política de longo prazo”, critica.

Crespo expressa dúvida com a consistência da popularidade de Milei, destacando que sua ascensão ao cenário político foi mais um produto do acaso do que um movimento político tradicional. Ele observou que, embora Milei tenha atualmente algum apoio, a situação econômica do país está piorando, e qualquer desvalorização adicional, especialmente prevista para março, pode resultar em uma queda dramática na popularidade do político.

“Ele não tem uma base importante, é mais um produto do acaso, das redes sociais. Então, não é o peronismo que está governando, não é nem sequer o radicalismo. É um cara que vem de fora da política. Se voltar a ter uma desvalorização em março, eu acho que a popularidade dele vai cair dramaticamente. Com isso, a capacidade dele estabelecer acordos para apoio parlamentar vai depender dessa popularidade não sumir muito rápido”, avalia.

O economista discutiu a possibilidade de instabilidade política, mencionando rumores de um plano de golpe envolvendo a vice-presidenta Victoria Villarruel e o ex-presidente Maurício Macri, conforme os movimentos políticos de Milei se tornem insustentáveis. Crespo destacou a incerteza do cenário político, que se complica ainda mais com medidas impopulares propostas pelo governo, como o aumento de impostos e a privatização.

Sobre as medidas impopulares, Crespo ressaltou que o discurso de Milei, que inicialmente defendia a não taxação, colide com a necessidade econômica de aumentar impostos para estabilizar a economia. Ele prevê que essa contradição pode gerar desconforto entre a base de apoio de Milei, composta em grande parte por aqueles que votaram nele para evitar o pagamento de impostos.

“Ele chega com esse papo libertário e anarco-capitalista, que não tem que pagar imposto, que o imposto é roubo, e efetivamente o que está acontecendo é o aumento do imposto, que é inevitável. Como é que você vai estabilizar a economia sem pagar imposto? Ele chega com um discurso inviável e agora tem que encontrar uma saída; então, inevitavelmente ele tem que romper com o discurso da campanha eleitoral”.

O economista alerta para o impacto do aumento de tarifas, considerando-o inevitável dada a insustentabilidade econômica das políticas anteriores. Ele aponta que tal medida terá um impacto significativo na população e pode contribuir para uma rejeição crescente ao governo.

“[A redução nos subsídios de tarifas] era uma medida praticamente inevitável, porque a Argentina estava dando de graça tarifas de eletricidade, coisas do tipo, que, economicamente, é insustentável. Agora, efetivamente, isso na população tem um impacto e vai ter rejeição. É um fator que vai contribuir a gerar rejeição crescente”.

Dolarização fora do horizonte

Deixando de lado o debate sobre se a ideia drástica de dolarizar a economia argentina é boa, o economista destaca a falta de um plano claro de dolarização e a incerteza em torno das medidas que o governo argentino pretende adotar. Crespo sugere que a desvalorização da moeda parece ser mais rápida do que a liquidação dos passivos em peso, tornando a situação ainda mais complexa.

Um dos pontos de discussão foi a recente conquista de reservas cambiais pelo Banco Central, avaliadas em US$ 4 bilhões. Crespo reconhece que, embora seja um passo positivo, essa reserva é relativamente modesta.

O economista argumenta que, com o ganho atual para a liquidação, o processo seria demasiadamente lento. Ele questiona a viabilidade dessa estratégia diante da crescente liquidação do apoio político ao governo, ressaltando que uma mudança significativa será necessária se a situação econômica continuar a se deteriorar. “Se você vê os números da base de reservas monetárias, o que tem hoje é um ganho de apenas US$ 1.500, algo assim. O ganho pra fazer a liquidação é muito pouco. Posso ser muito gris, mas nesse ritmo você teria que esperar muito para poder fazer uma dolarização”.

Ele comenta sobre a resistência enfrentada pelo ambicioso decreto proposto, assim como a Lei Omnibus, indicando que, se a situação econômica não melhorar, será difícil obter apoio político para as reformas necessárias. “Pelo que percebo, vai muito mais rápida a liquidação do apoio ao governo do que a liquidação dos passivos em peso. Então, se há um plano, não está muito claro; se há um plano de dolarização, está muito longe; então, a situação é de muita incerteza e não parece haver uma estratégia muito clara. Esse decreto que tenta mudar a Argentina toda tem muita resistência. Mesmo que ele consiga o voto no Congresso para passar pelo menos uma parte, eu diria que se a situação econômica continua a piorar, como está, vão ter que fazer uma mudança importante, porque não vai ter apoio político para fazer nada”, prevê o analista.

Ao analisar os entraves para a dolarização, Crespo cita a concordância com o amigo economista Emiliano Libman, que faz uma análise detalhada no X, em que destaca duas medidas que, de fato, contribuem para a dolarização da economia argentina: a decisão de permitir contratos em qualquer moeda e o BOPREAL (Título para a Recuperação de uma Argentina Livre), um esforço inédito que busca dolarizar o passivo do Banco Central da República Argentina (BCRA).

No entanto, o economista ressalta que, além do que é afirmado oficialmente, o país ainda enfrenta barreiras como a necessidade de dólares que o BCRA ainda não possui. Ele fornece dados detalhados, comparando as cifras de 12 de dezembro de 2023 e 9 de janeiro de 2024, evidenciando que, embora haja uma diminuição de cerca de US$ 1,2 bi em um mês, o avanço ainda é limitado.

Libman explora diferentes cenários de dolarização, analisando a viabilidade de resgatar apenas a base, usar reservas líquidas ou resgatar a base contra reservas líquidas. Ele destaca que, em qualquer cenário, o progresso parece ser modesto, e a quantidade necessária de dólares continua sendo um desafio.

Libman ressalta a importância da liquidação dos passivos do BCRA em pesos para efetivar a dolarização. Ele destaca que, embora o crescimento desses passivos esteja desacelerando, o dólar (CCL) permanece praticamente inalterado. O economista enfatiza que a chave para avançar nesse processo está na troca eficiente dos passivos em pesos.

Ao abordar a estratégia utilizada, que envolve retornos abaixo da inflação, mas acima do dólar, Libman destaca que enquanto houver passivos transportados e remunerados no balanço do BCRA, o avanço em direção à dolarização será limitado.

Curto prazo populista, longo prazo catastrófico

Crespo avalia a polêmica questão da dolarização proposta pelo governo, delineando os potenciais impactos de curto e longo prazo sobre a economia do país.

O economista especula sobre a análise do possível sucesso de uma dolarização imediata. Crespo reconhece que, se o governo conseguir estabilizar a economia no curto prazo, reduzindo a inflação como ocorreu na época da conversibilidade, isso poderia impulsionar a popularidade do presidente e até mesmo viabilizar sua reeleição. “Por isso, eles vão querer fazer mesmo. Porque, se eles conseguem daqui a um ano, dolarizar e estabilizar a economia, isso contribuiria para a popularidade e ele consegue se reeleger”.

No entanto, ele alertou para as consequências no longo prazo. “No longo prazo, já sabemos. O Estado perde uma ferramenta fundamental de política macroeconômica, vai estar sumamente restringido, toda dívida vai ser em dólares. O primeiro choque que tiver, o primeiro problema, de economia internacional, de queda de margem internacional, queda das exportações, vai levar a uma crise terrível, como foi no final da conversibilidade, e como está se passando no Equador também. Eu diria que, no longo prazo, será uma catástrofe”, alerta o argentino.

O economista destacou a fragilidade inerente à dolarização a longo prazo, ressaltando que a perda de flexibilidade na política macroeconômica pode levar a crises severas, semelhantes às experiências anteriores na Argentina e em outros países. Ele previu que, em um cenário de deflação, surgiriam moedas provinciais, indicando uma possível fragmentação política.

Crespo também fez uma comparação com o Plano Real no Brasil, alertando para os riscos de desindustrialização que podem acompanhar a dolarização. Ele observou que, embora o plano tenha inicialmente apresentado resultados positivos, como estabilidade econômica, no médio e longo prazo, resultou em desindustrialização e altos níveis de desemprego.

“O Plano Real no Brasil é precedido por um plano argentino parecido, até um pouco mais radical, que foi a conversibilidade, em abril de 1991. O [Domingo] Cavallo, que era ministro de [Carlos] Menem, coloca a conversibilidade e durante 4 anos, teve muito sucesso. O Menem se reelegeu com muita diferença. Mas no médio e longo prazo, foi um desastre. Desindustrializou, manteve altos níveis de desemprego durante um tempo muito longo. O desemprego nunca caiu abaixo de 13%, a situação social acabou numa catástrofe e isso acaba com a conversibilidade no ano 2001, que foi uma crise de mais de 20% de desemprego total com subemprego. A crise de 2001 na Argentina deixou uma ferida terrível com essa desindustrialização, sem dúvida”, conclui.

(por Cezar Xavier)