Não há quem possa contestar os dados das vítimas de assassinato em nosso país. Um fator une as pessoas que perderam suas vidas pelo crime organizado, em abordagens de agentes de Estado, pela fúria irracional dos que disparam golpes, tiros e pauladas. A imensa maioria das vítimas dessa verdadeira avalanche de crimes é negra. Mesmo no feminicídio, os dados apontam maioria de negras assassinadas.

Por Jandira Feghali*

A realidade está aí para não nos deixar nunca esquecer chacinas como a da Candelária, Acari, Jacarezinho. O assassinato da jovem grávida Kathlen Romeu. A morte de meninos de uniforme. Marielle. Tantos jovens, mulheres e homens, vítimas do que chamam de bala perdida, mas balas que sempre acham o povo preto das comunidades e de periferia de nosso país.

A expressão máxima dessa crueldade é Moïse. Um jovem negro que veio ainda criança com sua família em busca de um futuro longe da violência que encontrava em sua terra. Um jovem negro brutalmente assassinado. Uma barbárie que chocou o mundo. Mais um corpo negro estendido no chão vítima do racismo estrutural que mata nossa gente e os que escolheram o Brasil como sua casa. Queremos mais que atos e um minuto de silêncio, queremos apuração, punição e medidas que, efetivamente, tirem a população negra desta escravidão. Aquela que os condena à morte pelo que são.

Castigados diariamente pelo racismo que empurra 1/3 dos negros para baixo da linha de pobreza. Que joga 30% da população negra para o desemprego ou subemprego. Que os faz receber metade do salário de um homem branco para exercer a mesma função. Que lotam as prisões em nosso país, onde a cada três presos dois são negros. Que faz com que associem de imediato uma pessoa negra à figura de um bandido e disparem tiros no próprio vizinho. A cor de suas peles como sentença de morte.

Na última década, quase 700 mil pessoas negras foram assassinadas. No atual governo o cenário se agravou exponencialmente. Há uma licença explícita para matar. Uma política que fomenta, em palavras e ações, o ódio, a intolerância e o preconceito. Um governo que incentiva a população a se armar e que não tem uma única iniciativa para combater o racismo e as desigualdades. Pelo contrário.

Quer que as pessoas se esqueçam da coragem, da força, do talento e da capacidade de resistência do povo negro. Quer que caia no esquecimento o tanto que cada um deles fez pelo Brasil. Não quer que lembremos que somos o segundo país em população negra, mas lembramos e há muito o que fazer para resgatar o que em mais de um século não se conseguiu. E é preciso gritar todos os dias que vidas não são descartáveis. Que a vida dos que são as principais vítimas da violência e da pobreza importa.

Queremos que se abra uma porta do nunca mais para o racismo. Para que simbolicamente, todos os que passam por esta porta ao nascerem negros sejam livres para continuar ostentando, com orgulho, sua negritude. Uma porta para um futuro digno e com perspectivas. Uma porta que não os arranque de suas origens e de suas famílias. É uma tarefa de muitos e que não começa sem o compromisso de governo, de cidadãos e cidadãs, de polícias e de um judiciário que a abracem. Para que nenhum crime de racismo fique sem punição. Por Moïse e por todas as milhares de vítimas.

 

*Jandira Feghali é deputada federal (PCdoB-RJ) e vice-líder da Minoria na Câmara dos Deputados

Artigo originalmente publicado por CartaCapital

(PL)