Afonso João da Silva, líder na luda pela terra: Presente! Agora e sempre!

Há um mês, em 14 de fevereiro de 2020, o Brasil perdeu uma grande liderança anônima. Descrito por todos como íntegro e obstinado, trabalhador e humilde, camarada preocupado com o destino de centenas de famílias sem-terra, Afonso João da Silva, aos 56 anos, perdeu a vida antes de garantir o direito pelo qual lutou por décadas. Mas a disposição por seguir em frente e efetivar a reforma agrária é seu legado, e seque firme.

Afonso era presidente do Comitê Municipal do PCdoB em Jaciara, Mato Grosso, mesmo local em que coordenava a Associação União da Vitória, que reunia famílias sem-terra. A associação esperava decisão final da Justiça que obrigasse que os grileiros de mais de oito mil hectares de terra pública, invadidos por uma usina de cana-de-açúcar, finalmente saíssem das terras da União, permitindo às famílias “plantar o próprio pão”.

“Achamos que era das coisas mais legais que poderia ter: arrecadar o que é da União para fazer Reforma Agrária, algo que pertence já ao trabalhador”, explicou o próprio Afonso, em vídeo produzido pelo Incra em 2010.

Contudo, tiros desferidos pelas costas, em emboscada que o alcançou em sua própria residência, impediram o caminho do agricultor.  A morte dele não entrou para a estatística das vítimas de conflitos contra camponeses em busca de terra – 29 assassinatos por este motivo foram registrados pela Comissão Pastoral da Terra em 2019.

A investigação policial aponta que a morte de Afonso resulta da violência do crime organizado, que se alastra em cidades grandes, médias e pequenas, em todo o país. Criminosos locais acreditariam que ele os teria denunciado para proteger os assentados. Segundo relatos, o líder camponês já havia recebido ameaças de morte, mas dizia não temer que se concretizassem. Apesar do relatado empenho das autoridades, os suspeitos ainda não foram presos.

Ao resgatar parte da história de luta do líder Afonso, o Portal PCdoB homenageia também todos aqueles e aquelas que tombaram antes de ver garantidos os direitos que a Constituição prevê a cada brasileiro e brasileira, o direito à moradia.

Amigo querido, companheiro e pai de cinco filhos – Paulo Roberto, 36; Priscilla Roberta, 30; Vitória, 11; Maria Ester,7 e Afonso Jr., de 1 ano e meio – os três últimos teve com sua companheira Édlei Gonçalves.

[Fotos: Aniversário de 1 ano de Afonso Jr., comemorado no assentamento]

Afonso João da Silva

 

Para entender quem foi Afonso é preciso pesquisar pelo que lutou na medida em que, conforme relatam seus amigos e familiares, era a expectativa de melhorar a vida de muitos que o movia há décadas.

Em um primeiro momento, ainda na década de 1990, Afonso se engajou na luta por reforma urbana, tendo colaborado para a criação de vários bairros em Rondonópolis, cidade a cerca de 200 quilômetros da capital Cuiabá. Depois, em diálogo com suas origens rurais, passou a organizar o povo na luta por reforma agrária.

Édlei Gonçalves, viúva de Afonso e atual presidenta da Associação União da Vitória, fundada por ele recordou. “Por volta de 2003, quando ouvi falar dele, ele morava em Rondonópolis. E eu também, mas a gente não se conhecia de lá. Ele vinha sempre pra Jaciara nos finais de semana pra fazer reunião, organizar o pessoal. Não tinha nem carro. A gente preocupava porque corria risco de vida com aquela ‘motinha’ velha à noite. Vivia pra lá e pra cá”.

Ela lembra que quem conheceu Afonso primeiro foram seus pais, acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que reconheciam nele humildade, amizade, conhecimento e capacidade de liderança. “Ele hipnotizava as pessoas”, diz.

“Eu admirava ele muito, as ideias, a dedicação dele. Com o tempo e o fortalecimento do movimento de luta pela reforma agrária ele resolveu deixar a assessoria parlamentar em Rondonópolis e arrendar um sítio na região de Jaciara, pra ficar mais perto”, comentou, explicando que o companheiro comprou “duas vaquinhas” e trabalhou desde então com agricultura e leite.  [Foto: Afonso discursa em uma das incontáveis reuniões para organizar o movimento]

Movimento

Em 2003, com a informação de que a Usina Pantanal de Açúcar e Álcool Ltda, do Grupo Naoum, o maior empreendimento da região, ocupava áreas públicas, e sem que as autoridades tomassem providências devidas, cerca de 200 famílias sem-terra da região resolveram que era tempo de pressionar, fazendo uma ocupação.

Segundo a companheira de Afonso e líder da associação, ocuparam a usina tanto as famílias da Associação União da Vitória quanto as do MST. Para evitar conflito, e porque a promessa era de que a situação estava para se desenrolar logo, o acordo foi sair para a beira da BR-364, no terreno de uma escola agrícola desativada, o projeto Buriti. As famílias permaneceram por ali durante anos.

Valdizete Martins, prefeito de Jaciara à época, diz que interferiu em prol de um acordo: “Eu tentei em desespero achar uma saída, porque eu vi que podia dar problema grave a reintegração de posse. Ninguém queria sair, mas o Afonso não radicalizou. Nós conversamos numa ponte que tem lá, que faz uma espécie de divisa. E foi ali que nasceu um grande relacionamento, eu realmente perdi um irmão. Passamos a ser grandes amigos”, explicou o ex-prefeito, que ressaltou a capacidade de diálogo do líder camponês:

“Perdemos um grande homem aqui em Jaciara. Era de paz e diálogo, tinha muito argumento. Você não faz ideia da inteligência do Afonso. Ele podia ter sido vereador, prefeito, o que ele quisesse. Era um grande articulador de base. Ele ajudou a criar mais de dez bairros em Rondonópolis. Mas vivia como um sacerdote, nunca se vendeu. Ele lutava por isso porque estava na essência dele, o pai dele era pequeno produtor”, ponderou Valdizete.

Em janeiro de 2004, a Justiça Federal determinou que a Usina Pantanal devolvesse à União 8,2 mil hectares de terras griladas décadas antes. A expectativa é de que o Incra pudesse assentar 400 famílias na área.

Esperança

Anos depois, em 2010, quando foi realizado o documentário Às margens da espera, produção do próprio Incra disponível na internet, as famílias seguiam acampadas na estrada. O próprio Afonso fala no vídeo.

O vídeo foi postado pelo “Pfeincra” em 22 de novembro de 2010. ‘Registro audiovisual da luta dos trabalhadores rurais sem-terra do município de Jaciara-MT, que reivindicam, para fins de reforma agrária, a terra devoluta ocupada indevidamente pela Usina Pantanal no município”.

No documentário, o líder Afonso explicava: “Adotamos um estilo de conduta íntegro. Se a gente perde isso, a gente não vai ter nada. A gente quer ganhar com dignidade. Não quero colocar trabalhador em risco de morte, não quero levar comigo a culpa de enterrar um coitado que já está lascado”.

Com a situação ainda em aberto, em 2013 Afonso usava a tribuna da Câmara Municipal de Jaciara para prestar esclarecimentos à população. E questionava, como relata a imprensa local:

“Se as autoridades se empenhassem em favor dos trabalhadores um terço do que se empenham para manter de pé essa usina falida, onde meia dúzia de pessoas tira proveito, isto já teria sido resolvido. Não é segredo pra Jaciara as situações ilegais que envolvem esta usina, uma empresa onde todo mundo tira e pouco entra.”

Há cerca de quatro anos, como explica a viúva de Afonso, diante de decisão favorável da Justiça que abrangia apenas uma pequena parte da área total,  as famílias voltaram para a área antes ocupada pela usina e formaram um pré-assentamento. Ela relembra que Afonso ajudou a abrir, pessoalmente, com um trator, áreas onde só havia cana-de-açúcar. Com isso, ajudou na instalação dos barracos – inclusive daquele em que vivia com a família e onde foi assassinado antes de realizar o sonho de ver famílias camponesas ocupando e produzindo alimentos em toda a área irregularmente ocupada pela monocultura de cana-de-açúcar.

O crime

Advogado da Associação União da Vitória desde 2012, Djalma Cunha Martins Filho, explicou que o assentamento vivia um momento difícil diante da não-resolução da questão da terra.

“A terra foi requerida pelo Incra e depois a usina derrubou a decisão. A AGU (Advocacia Geral da União) passou a fazer o requerimento, quase recomeçando todo o processo. Nós não interferimos nisso. Eu só atuei contra os pedidos de reintegração de posse”, explicou, dizendo que muitos assentados não entendiam os problemas burocráticos e a morosidade da Justiça. Com o tempo, houve uma divisão na associação comandada por Afonso e crescente descontrole sobre as pessoas que viviam no lugar.

“O Afonso era muito criterioso com as pessoas que viviam no assentamento. Ele não permitia gente que bebia, gente com passagem pela polícia. Mas depois do racha lá, formou outra associação e encheu de gente que ‘não valia nada’”, denunciou o advogado.

Os suspeitos do assassinato, inclusive, conforme Djalma, são pessoas que cometiam crimes na região e que acreditavam que Afonso os havia denunciado para a polícia.  Sobre as investigações, ele ressaltou que a família tem tido muito apoio das autoridades locais e que a polícia segue atrás dos suspeitos.

“O Afonso era uma pessoa muito honesta. Ele tinha um ideal, ele sempre foi envolvido com causas sociais e assentamentos, ele esteve muito à frente da luta pela terra, inclusive em áreas urbanas. Uma pessoa muito simples e figura inquestionável. É uma perda pra família e pra sociedade também. Muita gente da família falava pra ele largar disso, mas ele nunca quis. Era realmente um ideal de vida. Foi um companheirão. Vai fazer muita falta”, lamentou o advogado.

“A repercussão na cidade e nos movimentos populares foi enorme. Mais de mil pessoas estiveram no velório, que foi aqui em Rondonópolis, porque foi onde ele começou a trajetória dele. Nós vamos até o fim com a investigação”, garantiu o prefeito de Rondonópolis, José Carlos do Pátio, que tem atuado junto às autoridades estaduais pela persistência da investigação. O prefeito era amigo pessoal de Afonso, que trabalhou como assessor parlamentar quando Zé Carlos era deputado estadual.

No último dia 9 de março, os líderes do PCdoB Vanessa Grazziotin (AM), ex-senadora, e Sérgio Negri, presidente estadual da legenda e cunhado de Afonso, entre outros, estiveram com Zé Carlos do Pátio e autoridades policiais para acompanhar os desdobramentos do caso.

Homenagens

“Quando foi 2002 ele começou a morar mesmo debaixo da lona com o pessoal do movimento. Eu às vezes ficava lá com ele, outras ficava na cidade em casa”, recorda Paulo Roberto, filho mais velho de Afonso, que desde criança viu o pai “ajudando o movimento”. “Ele dizia que ia batalhar pelas terras até o fim, que daria o sangue se fosse preciso. E se concretizou isso”, lamentou.

“Meu pai é uma pessoa muito querida. Tinha um jeitão duro às vezes com a gente, mas sempre tinha um porquê. O pessoal aqui gosta muito dele, ele tinha muitos amigos e era muito respeitado. Tanto que muita gente passou no velório dele, muita gente que ele ajudou ao longo da vida, também quando era assessor de deputado e vereador”, explicou o filho, demonstrando como a luta tornou-se a razão de viver do pai.

Em homenagem a Afonso, Paulo Roberto editou um vídeo que reúne diversos momentos em que o próprio pai fala de sua luta e da importância de uma conduta íntegra em defesa dos direitos do povo. Assista na íntegra:

No dia em que se relembra o primeiro mês do falecimento de Afonso, os movimentos sociais da região organizaram um “Ato público por reforma agrária e justiça” no auditório da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR). O ato foi convocado pelo Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Setaf) e pela União das Associações dos Pequenos Produtores Rurais dos Assentamentos da Região Sul e Sudeste do Mato Grosso.

O futuro

O futuro das famílias da Associação União da Vitória ainda depende de decisão judicial. Segundo o advogado dos agricultores, Djalma Cunha Martins Filho, ainda há uma ação de reintegração de posse esperando decisão. Ao passo que o processo pelo restante da área ainda não foi definido. Apesar das dificuldades, Édlei garante que a luta continua:

“Não é porque era meu marido, nunca conheci uma pessoa dedicada como ele. Deixava até a família pela luta. No início eu era nova e não entendia, não me envolvia. Eu era humilde, sem saber de política. Ele me ensinou muito, passei a participar da vida das pessoas”, orgulhou-se a viúva de Afonso, que além de presidente da Associação, vai assumir a presidência do PCdoB em Jaciara.

“Depois do que aconteceu eu fiquei muito perdida. Eu queria largar tudo. Mas as pessoas foram conversando comigo, os agricultores pedindo pra ficar. E eu fui entendendo que deixar era abandonar a luta dele. Então eu vou seguir adiante, nós vamos seguir adiante, vamos continuar a correr atrás”, garantiu a líder.