Afeganistão como centro mundial da produção de matéria-prima da heroína é sequela da ocupação

O Comando Central do Pentágono anunciou que cerca de “dois a seis por cento” do processo de retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão foi “concluído até agora”, o equivalente a “60 aeronaves C-17 em material”, em meio à intensificação dos ataques da guerrilha no país inteiro. No sábado, em Kandahar, uma base norte-americana recebeu o que o Pentágono chamou de “fogo indireto sem causar danos”. Na província de Ghazny, a guerrilha tomou uma base do exército afegão e realizou ataques em mais seis províncias.

Na segunda-feira (3), a guerrilha lançou uma ofensiva em várias direções na província de Helmand, no sul. No dia 1º de maio esgotou-se o prazo de retirada assinado por Trump e pelo Talibã no Acordo de Doha de 2020, mas ignorado pelo governo Biden, que definiu unilateralmente uma nova data, o 11 de setembro.

Pelos termos do acordo de paz, os EUA tiveram 14 meses para completar a retirada e, se não o fizeram, isso não é de responsabilidade do Talibã. A guerrilha advertiu que a cláusula de não agressão contra as forças dos Estados Unidos se tornou “nula” a partir de 1º de maio.

O porta-voz do Talibã, Mujahid, disse em um comunicado no sábado que o prazo final significa que “esta violação, em princípio, abriu o caminho para os combatentes do Talibã tomarem todas as contra-ações que considerarem adequadas contra as forças de ocupação”. Ele enfatizou que os guerrilheiros estavam aguardando a decisão da liderança do Talibã “à luz da soberania, dos valores e dos interesses superiores do país e, então, agirão de acordo”.

“Armas pesadas”

Em Helmand, o chefe do conselho provincial, Attaullah Afghan, disse que a guerrilha atacou e tomou postos de controle nos arredores da capital da província, Lashkar Gah. Os confrontos continuaram na terça-feira com contra-ataques aéreos e “centenas de famílias foram deslocadas”, acrescentou.

“Houve uma tempestade de armas pesadas e explosões na cidade e o som de armas pequenas foi como se alguém estivesse fazendo pipoca”, disse Mulah Jan, morador de um subúrbio de Lashkar Gah, à agência de notícias Reuters.

“Levei todos os membros da minha família para o canto da sala, ouvindo as fortes explosões e rajadas de tiros como se estivessem acontecendo atrás de nossas paredes”, disse ele. Ele acrescentou que “as famílias que puderam sair, fugiram”.

Foi em Helmand onde as forças de ocupação sofreram a maior parte das baixas durante a guerra de 20 anos. Como parte da retirada, as forças dos EUA entregaram uma base em Helmand às tropas do governo afegão há dois dias.

O chefe do exército ‘afegão made in USA’, general Mohammad Yasin Zia, que também é ministro da defesa interino, confirmou a repórteres em Cabul a queda da base no sudeste da província de Ghazny no sábado, em que dezenas de soldados foram capturados ou mortos, depois de várias horas de combate.

Também na segunda-feira, pelo menos sete militares afegãos foram mortos quando o Talibã detonou explosivos colocados através de um túnel que o grupo cavou em um posto avançado do exército na província de Far.

O Pentágono minimizou o impacto dos combates do fim de semana entre as forças do governo e os insurgentes do Talibã sobre a retirada das forças estrangeiras do Afeganistão.

“O que vimos são pequenos ataques de hostilidade que não tiveram um impacto significativo sobre nossos homens, nossos equipamentos e as bases”, disse o porta-voz do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, John Kirby. “Ainda não vimos nada que afete a retirada”, acrescentou.

A retirada é uma confissão de derrota daquela que arrota ser “a mais poderosa força militar do planeta da história” diante de um dos países mais pobres do mundo e de uma força guerrilheira.

A Rússia tem sediado reuniões em Moscou entre o Talibã e o regime de Cabul, visando uma solução negociada, interafegã, que mantenha o país em paz e desenvolvimento após o fim da ocupação. A China, Paquistão e EUA participaram como convidados.

O portal afegão Tolo News afirmou, com base em ‘fontes anônimas’, que representantes dos EUA e do Talibã estão discutindo a proposta da guerrilha de que os EUA retirem suas tropas até julho – uma data intermediária entre a data anunciada unilateralmente por Biden (11 de setembro) e a definida em Doha (1 de maio).

Caso o governo Biden aceite, o Talibã se compromete em retomar as negociações interafegãs e a participar da cúpula na Turquia, que iria debater o pós-retirada no mês passado, e teve de ser desmarcada após a recusa da guerrilha de comparecer em razão do descumprimento do acordo de Doha. A proposta do Talibã inclui uma ‘redução do nível de violência’, isto é, o adiamento da ofensiva a Cabul, enquanto a retirada durar.

Um dos assuntos que Washington está tentando resolver é a concessão de vistos aos colaboracionistas que mais se expuseram, operando como tradutores das tropas. O porta-voz Kirby disse que milhares de ex-intérpretes afegãos aguardam uma resposta aos seus pedidos de visto para os EUA e que o Pentágono está em negociações com o Departamento de Estado sobre o assunto.

Apesar de manter a promessa de retirada, altos figurões norte-americanos não perdem a oportunidade de expor seu inconformismo em ter de largar o osso. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que ainda haverá presença dos EUA no Afeganistão após a retirada das forças norte-americanas. “Só porque nossas tropas estão de volta para casa não significa que vamos embora. Não vamos”, disse Blinken no domingo no programa 60 Minutes da CBS News.

Blinken destacou que a embaixada dos EUA permanecerá no Afeganistão e os EUA continuarão fornecendo “apoio econômico, humanitário e de desenvolvimento” ao país. Questionado sobre se o Talibã poderia acabar assumindo o controle do Afeganistão, Blinken disse que “temos que estar preparados para todos os cenários e há vários deles”.

Já o representante especial dos EUA para o Afeganistão, Zalmay Khalilzad, disse na semana passada que, após a retirada norte-americana, existe a possibilidade de que soldados da paz da ONU sejam enviados ao Afeganistão.

Os países da Otan que são cúmplices na ocupação do Afeganistão também estão batendo em retirada. “Entramos juntos, adaptamo-nos juntos, saímos juntos», afirmou Blinken aos parceiros de invasão em recente reunião da Otan em Bruxelas. Por sua vez, o Tribunal Penal Internacional abriu uma investigação sobre os crimes de guerra cometidos no Afeganistão pelos Estados Unidos, apesar dos protestos de Washington (e das sanções de Trump).

Há assuntos pendentes. Segundo o New York Times, os EUA têm 1.000 soldados a mais que os 2.500 comumente referidos. São integrantes de tropas especiais que operam sob a CIA, dedicadas especialmente às execuções com drones e outras ações encobertas. Também não se sabe exatamente o que será dos 6.000 mercenários (‘contratistas privados’) que operam no país para o Pentágono.

Entre as seqüelas deixadas pela ocupação estão o triste recorde mundial na produção (e, portanto, tráfico) de ópio (90%), matéria prima para a heroína, e a transformação do país, depois de uma ‘ponte-aérea’ propiciada pelo Pentágono/CIA desde a Síria/Iraque, em um viveiro dos cortadores de garganta do Estado Islâmico. Segundo o NYT, as tropas de ocupação formalmente irão se retirar, mas permanecerão “efetivos turcos de modo a ajudar a CIA a colher informações”.

42 ANOS DE AGRESSÃO

Os 20 anos de ocupação do Afeganistão pelos EUA são o desdobramento da operação de sabotagem da revolução popular afegã dos anos 1980, durante a qual Washington promoveu a formação da Al Qaeda em parceria com os serviços secretos sauditas e paquistaneses.

A revolução afegã, que promovia a reforma agrária, a democracia e os direitos trabalhistas e femininos, acabou derrotada depois do colapso da União Soviética e ao final acabou chegando ao poder o regime fundamentalista Talibã. Com o qual o governo Clinton chegou a negociar um gasoduto para transportar gás do Cáspio, contornando a Rússia e o Irã.

Em 2001, após o 11 de Setembro, atribuído à Al Qaeda, que fugira de controle, o governo de W. Bush invadiu o Afeganistão, desencadeando a mais longa guerra dos EUA, que matou mais de 240 mil afegãos e 2.400 soldados norte-americanos (além de dezenas de milhares de soldados mutilados), ao custo de US$ 2 trilhões. Guerra que seria

ganha “em dias”, prometera então W. Bush. Na época o Talibã tentou evitar a invasão, propondo impedir qualquer uso de seu território para atos de terrorismo, mas foi recusado por W. Bush. No ano passado, isso foi aceito por Trump.

Para sustentar a ocupação, Washington montou um ‘exército made in USA’ e instaurou um regime, baseado no colaboracionismo, corrupção e tráfico, sob eleições fraudadas, que jocosamente era chamado pela guerrilha de “Prefeitura de Cabul”.

Poucos acreditam que, sem os invasores e seu poder de fogo e financeiro, a prefeitura de Cabul vá prevalecer sobre a retemperada guerrilha, que nesse meio termo, mesclou a estreiteza fundamentalista com concepções de espírito patriótico mais amplas.