A carne mais barata do mercado é a carne negra[1]

Este artigo vai se dividir em duas partes, sendo um fragmento da minha dissertação de mestrado, que teve como título: MARGARIDAS AFRICANAS TRABALHADORAS NEGRAS DO SERVIÇO PÚBLICO MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. FIOS E TRAMAS DO RACISMO ESTRUTURAL.

A dissertação abordou o tema sobre as trabalhadoras negras no serviço público municipal de Porto Alegre, evidenciando suas histórias de vida e trajetórias profissionais, no contexto do racismo estrutural, no período pós 1990 do século XX.

Trabalhamos o tema do racismo estrutural como um processo de desumanização trazendo a realidade das mulheres negras servidoras públicas de Porto Alegre, e suas formas de enfrentamento, nos espaços de trabalho.

O racismo estrutural se particulariza no trabalho, na realidade e vivência das mulheres negras servidoras públicas.

A trabalhadora negra é a que recebe mais baixa remuneração, comparada a outros grupos no país, e predomina nas atividades cujas condições de trabalho são inferiores. Há, portanto, uma hierarquização de poderes, corpos, existências, em que podemos observar uma banalização da vida atrelada a um processo de desumanização das relações sociais e de trabalho. Em decorrência disso, afirmamos que na arena de disputa de poder e das correlações de força, como dito por Elza Soares, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.

Trata-se de uma realidade que foi sendo produzida socialmente e que se propõe a garantir interesses postos na sociedade, sobretudo em virtude da existência de uma dinâmica que requer a obtenção de lucros crescentes no interior do modo de produção capitalista.

E, muito embora o racismo anteceda o capitalismo, é por ele apropriado e se torna para ele um elemento basilar e essencial à sua vigência. Não obstante a isso, convém mencionar que a história do racismo moderno se entrelaça com a história das crises estruturais do capitalismo.

A necessidade de alteração dos parâmetros de intervenção estatal a fim de retomar a estabilidade econômica e política – e aqui entenda-se estabilidade como o funcionamento regular do processo de valorização capitalista – sempre resultou em formas renovadas de violência e estratégia de subjugação da população negra (ALMEIDA, 2018).

Para a população negra são atribuídos, na sua maioria, os cargos mais destituídos de prestígio. Também são aqueles com menor proteção trabalhista e menor cobertura na garantia de direitos. Para o desenvolvimento do presente artigo, faz-se inicialmente apontamentos sobre trabalho, classe e gênero no estado capitalista.

Trabalho, classe e gênero no estado capitalista

Os(as) negros(as) são a maioria entre os(as) desempregados(as) no país, no quarto trimestre de 2020, período que compreende os meses de outubro a dezembro. A constatação é da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.[2]

O Estado Brasileiro a muito tempo está distante de cumprir as determinações da carta magna, e principalmente pós 2016 e no momento de pandemiaas desigualdades sociais foram escancaradas, e naquele período, vivemos em meio à crise sanitária, política, institucional e civilizatória, em que o acirramento da luta de classes se apresentou na fase mais aguda da crise estrutural do capitalismo, tendo a barbárie, o racismo estrutural e a violência institucional como regra na organização do Estado.

Existe um abismo social entre homens e mulheres, entre brancos e negros e as mulheres negras e não negras que se expressa no mercado de trabalho.

Antes da Covid-19, mulheres desempenhavam três vezes mais trabalhos não remunerados do que os homens; com o isolamento, a estimativa foi que este número triplicou. Importante destacar que, segundo a médica Jurema Werneck[3],  as(os) profissionais da saúde estiveram na linha de frente de maneira incansável na pandemia. E afirmar que são as mulheres 85% das enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem no Brasil que salvaram vidas, apesar do governo negacionista. 45,6% dos médicos no país são mulheres, o equivalente a 223,6 mil mulheres[4].

As mulheres, e de forma mais cruel as mulheres negras, são quem mais sofrem na pele toda situação tenebrosa que vivemos, além da tripla jornada de trabalho, sofrem múltiplas violências, tanto no âmbito privado, quanto nos espaços públicos.

Em outubro de 2020 havia 7,1 milhões de mulheres em busca de trabalho no Brasil, sendo que 4,4 milhões delas eram negras. Apesar de as mulheres representarem 53% da população economicamente ativa brasileira, elas seguem com sub-representação entre os ocupados (43%), super-representadas entre os desocupados (51%) e fora da força de trabalho (64%), segundo dados 2020 da Pnad Contínua.[5]

As mulheres são a maioria entre as pessoas que realizam tarefas não remuneradas e estão fora da força de trabalho (64%).

 O trabalho como categoria que funda o ser social está presente em qualquer sociedade, porém, o que vai alterar não é a base ontológica dele, mas a forma que se configura em cada sociedade ao longo da história. O trabalho em Marx (1985), apresenta uma dúplice determinação: é trabalho útil concreto, destinado a atender as necessidades humanas e trabalho abstrato, inerente à sociedade capitalista, em que predomina o valor de troca, destinado à acumulação e reprodução de capital.

Historicamente, as mudanças na base material e organizacional dos processos de produção requisitaram também mudanças no papel do Estado, visando regular as relações sociais e garantir a legitimação do capital. Claro que isso se deu a partir do momento em que a luta da classe trabalhadora por melhores condições de vida e de trabalho colocou em evidência a dimensão política da questão social, ao requisitar do Estado medidas de proteção social conformadas através dos direitos sociais.

          Sob a égide do neoliberalismo, as estratégias do grande capital não se limitaram às reformas de natureza econômica. As restrições sociopolíticas abarcaram, na mesma proporção, a reforma do aparelho estatal e sua relação com a sociedade.

No que tange a questão de gênero, as mulheres negras Segundo Werneck (2010, p. 76) 

“as mulheres negras, como sujeitos políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravização, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos.”

As desigualdades sociais entre mulheres e homens negros e não negros(as) se aprofundam cada vez mais. Os dados são nítidos no que tange a dura realidade da população negra no Brasil. A fome, o desemprego, a insegurança alimentar, a violência têm cara, cor e gênero em nosso país.

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Silvana Conti é Mestra em Políticas Sociais e Serviço Social/UFRGS; Militante da base dos e das municipários(as) de Porto Alegre; Membro da direção municipal e estadual do PCdoB/RS; Membro do Comitê Central; Vice – Presidenta da CTB/RS; Membro da Direção UBM e UNALGBT

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

______. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

______. Capitalismo e crise: o que o racismo tem a ver com isso? Boitempo, 2020. Disponível em:
https://blogdaboitempo.com.br/2020/06/23/capitalismo-e-crise-o-que-o-racismo-tem-a-ver-com-isso/. Acesso em: 17 de fev. de 2021.

ARAÚJO, Angela Maria Carneiro. Gênero no Trabalho. Cadernos Pagu, n. 17-18, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n17-18/n17a05.pdf. Acesso em: 19 de fev. 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 fev. 2021.

COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.


[1] Fragmento da música “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, cantada por Elza Soares.

[2] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Pesquisa Nacional por amostra de domicílios. IBGE, 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal. Acesso em: 15.02.2022.

[3] OLIVEIRA, Semayat S. Jurema Werneck: ‘O racismo faz com que pessoas negras adoeçam mais. 2020. Disponível em: https://nosmulheresdaperiferia.com.br/jurema-werneck-o-racismo-faz-com-que-pessoas-negras- adoeçam-mais. Acesso em: 28 fev. 2022.

[4] Dados disponibilizados pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), relativos a 2020.

[5] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Pesquisa Nacional por amostra de domicílios. IBGE, 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal. Acesso em: 4 nov. 2020.