Haroldo Lima foi deputado federal por duas décadas e um dos fundadores da Ação Popular

Tem gente que um não consegue imaginar morto. Difícil entender, mas sendo a morte tão antiga quanto a vida, acho que já escreveram sobre isso, quem sabe?

Por Walter Sorrentino*

Claro que isso tem muito a ver com a personagem que se passou. Um grande líder popular, um sábio, um familiar querido muito próximo, uma circunstância inesperada que a levou. Podemos lembrar sempre de gente assim, nossa memória é mais forte que a morte, principalmente quando é uma memória coletiva e generosa como a dos comunistas. Do que vamos lembrar destes dias será a circunstância da COVID-19, os crimes de um governo trôpego que boicotou seu enfrentamento, da morte de 300 mil compatriotas até este momento, da compaixão que sentimos por seus familiares.

Mas acho mesmo é que decorre mais da interação e sentimento que nós vivos temos (tivemos) com a personagem. É muito pessoal de cada um.

Com Haroldo Lima essas coisas me confundem. Haroldo não se passou. O sujeito cheio de carisma, um emulador voluntarioso, aquele seu sorriso sempre terno (e maroto), sabido como só na política e na vida, nos acompanhou por cinquenta anos nessa jornada de vida e luta com seu PCdoB, antes com a Ação Popular que trouxe ao regato do partido.

De minha parte, não são 50 anos, mas 46. Tive uma ligação virtual (em tempo sem internet) quando da sua prisão na triste e criminosa Chacina da Lapa em dezembro de 1976. Preso, nós na clandestinidade, precisávamos fazer contato na prisão, enviar-lhe alguns recados de como se estava aqui fora.

Por circunstâncias inesperadas, uma pessoa muito próxima a mim tinha um companheiro preso também no Tiradentes, ambos eram muito jovens, mas comprometidos. O lance saiu: ela, quando visitasse o companheiro (permitido, no caso) levaria uma mensagem a Haroldo.

Foi rocambolesco, mas funcionou. Meu capa-preta em SP, o número 1, como o chamávamos, era também baiano, César José, um acadêmico dedicado à resistência. Ele escreveu no verso do invólucro de alumínio de uma embalagem de cigarro escreve a mensagem usando como tinta o leite. Bastava aproximá-lo um pouco de uma chama, a partir da face do alumínio, e as palavras emergiriam no papel.

Uma novela. Daria certo? Para isso era preciso a companheira levar os cigarros a Haroldo e verbalizar uma mensagem, que seguiu por meu intermédio. Eu e a dita cuja precisávamos memorizá-la e queimá-la a seguir – e não era tão curta – citando haver sido enviada pelo “homem do peixe”… Haroldo saberia a proveniência.

Assim foi, não apenas uma, mas várias mensagens verbais daí para a frente. Haroldo respondia ao que lhe era enviado e a companheira o memorizava com precisão. Um correio em duas mãos, sem ser virtual.

É desses fatos que você constrói uma visão romântica, que seja, mas de proximidade espiritual com alguém, com Haroldo. Eu me senti um quase herói, imaginem, era muito jovem também e ninguém é de ferro.

Depois conheci Haroldo, já em 1982-1983. Aí são outras histórias. Mas por essas e outras, não metabolizo que Haroldo tenha morrido. São pessoas que ficam encantadas, como Haroldo, cuja existência é reforçada e temperada de fora prá dentro do partido, pela sua liderança política, como patriota e comunista, reconhecida hoje por todos, até por adversários, pela firmeza e contundência com que defendeu a redemocratização do país em 1985 e a Constituição promulgada em 1988.

Eu várias vezes contei a amigos, na presença de Haroldo, uma anedota. Sujeito eleito para o primeiro mandato de deputado federal, viajava em avião para tomar posse. A comissária de bordo avisa para apertar os cintos, pôr o encosto na vertical e preparar-se para o pouso no aeroporto em Brasília. Ao final, agradecia a todos os passageiros pela preferência. Haroldo imediatamente se levanta, os braços erguidos, um apontando para cima, outro para o lado, com apenas dois dedos semi espichados em arco, e começa ali mesmo seu primeiro discurso de deputado, tinindo: “Nós é que agradecemos esta oportunidade, etc e tal…”

Haroldo ria sempre, meio encabulado, mas também inebriado. Ele era inteiramente consciente do poder de sua verve. Esse era Haroldo, nosso ruibarbosa-castroalves da palavra e encanto. Só baiano mesmo é que consegue. Haroldo não morre não.

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Walter Sorrentino* é vice-presidente nacional e secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)

 

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