O líder abolicionista, Luiz Gama

A Universidade de São Paulo (USP) concedeu, na tarde desta terça-feira (29), o título de Doutor Honoris Causa póstumo ao líder maior do abolicionismo brasileiro, advogado, poeta, ativista e um dos heróis mais importantes heróis de nossa história, Luiz Gama. A proposta apresentada pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), “como reconhecimento dos feitos deste grande brasileiro no campo do jornalismo, do direito, das artes e em prol da liberdade e da justiça social”.

A proposta foi apresentada pelo professor Dennis de Oliveira, do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (NEINB-USP), e apoiada pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) da ECA, em 2019. Luiz Gama é o segundo negro a ter o título outorgado e o primeiro negro brasileiro, em toda a história da USP.

“Este é um dia marcante para celebrarmos este grande brasileiro. A USP se sente muito honrada em poder conceder este título a Luiz Gama”, ressaltou o reitor Vahan Agopyan após a votação dos conselheiros.

O título de doutor honoris causa é concedido “a personalidades nacionais ou estrangeiras que tenham contribuído, de modo notável, para o progresso das ciências, letras ou artes; e aos que tenham beneficiado de forma excepcional a humanidade, o País, ou prestado relevantes serviços à Universidade”, de acordo com o Estatuto da Universidade.

“Tenho a grande felicidade de informar que o Conselho Universitário da USP acaba de aprovar por unanimidade a concessão do título de doutor honoris causa póstumo para o Luiz Gama. Grande vitória do movimento negro”, comemorou o jornalista e professor Dennis de Oliveira em suas redes sociais.

A professora Brasilina Passarelli, diretora da ECA-USP, enfatiza que a proposta foi prontamente aceita e “aprovada por unanimidade pela nossa congregação em função da importância histórica de Luiz Gama e toda sua vida e que tem ecoado na sociedade”,

A diretoria da ECA lembra que a obra do líder abolicionista “tem sido estudada nas universidades americanas e europeias. Na universidade de Princeton, agora em maior, houve um ciclo de estudos e palestras sobre ele”, além de estudos de mestrados e doutorados sobre o autor. “Temos um brasileiro fazendo um doutorado sobre ele em Frankfurt”, completou Brasilina.

“Esse reconhecimento se faz ainda mais importante pelo momento que atravessamos em nosso país, onde até mesmo o presidente da República incentiva e incentivou atos de grupos supremacistas que remetiam à Ku Klux Klan. Além disso, Bolsonaro nomeou um capitão do mato para a presidência da Fundação Palmares que, além de dizer que não há racismo no Brasil, instalou na Fundação uma verdadeira inquisição contra servidores, promoveu uma verdadeira ‘queima de livros’ retirando importantes obras e autores do acervo da instituição”, disse Marcos Kauê, estudante de Educação Física da USP e coordenador geral do Diretório Central dos Estudantes da USP (DCE-USP).

Merllin de Souza, mestra e doutoranda da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), membra da Associação de Pós-Graduandos (APG-USP), afirmou que o reconhecimento de tão importante figura “é mais que um sonho, é mais que uma representação, é mais que a possibilidade de mudar e transformar vidas. O racismo estrutural infelizmente existe! Fizemos um levantamento, em nome dos pós-graduandos, para verificar quantos títulos de Doutores Honoris nós já tivemos e, de 1939 até hoje, tivermos 119 títulos no registro do Conselho.”

“Resgatar a memória de um grande herói brasileiro, negro, como Luiz Gama que lutou pelo fim da escravidão e pela emancipação do povo, já que somos maioria da população, é essencial. É uma ferramenta de combate ao negacionismo e de afirmar a defesa da democracia, da ciência, da educação e de evidenciar os desafios que temos de superar para garantir a permanecia de dos estudantes negros e de baixa renda que estão ingressando hoje na Universidade Pública”, completou Kauê.

Merllin enfatizou que resgatar a figura de Luiz Gama é um passo importante no fortalecimento do combate a “esse racismo estrutural que ainda hoje assola nosso mundo e que ainda mata muitas pessoas como eu nesse país, possa dar lugar a ações, inclusões, escutas e transformações vão desde o plano político pedagógico, inclusão de disciplinas na pós-graduação, de mais inclusão de pessoas como eu na pós-graduação na maior universidade da América-Latina. Que esse título a Luiz Gama seja mais uma abertura da USP para que tenham mais pessoas do meu fenótipo e com a cor que tenho”, completou Merllin.

Luiz Gama e a luta por um projeto de nação

Nascido livre em 21 de junho de 1830, filho de Luíza Mahín – uma importante liderança da revolta dos Malês (1835) – Luiz Gama foi vendido pelo próprio pai como escravo aos 10 anos de idade. Aos 18 anos, após aprender a ler e escrever, reuniu provas de sua liberdade e fugiu para São Paulo, quando passou a servir às forças armadas até 1854.

Advogado autodidata, Luiz Gama foi o libertou diretamente por meio do seu ativismo mais de 500 pessoas escravizadas ilegalmente e foi, sem dúvidas, o maior especialista na legislação sobre alforriamento.

Como jornalista, enquanto estudava direito por conta própria, por ter sido rejeitado pelos colegas e professores de faculdade, fundou o primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo, o “Diabo Coxo”, em 1864, ao lado do ilustrador italiano Ângelo Agostini, além de escrever para outros periódicos como “O Cabrião”, “O Polichinelo”, “O Coaraci” e, mais tarde, “O Radical Paulistano”, entre outros, pelos quais – sob pseudônimos – tecia grandes críticas à sociedade escravista e à política do regime monárquico.

Único intelectual negro de sua época a ter passado pela experiência da escravidão, é uma importante referência na afirmação da identidade negra de como elemento individual e coletivo, e nesse arcabouço, compreende a liberdade do povo através de um novo projeto de nação. Luiz Gama fez de sua formação moral e jurídica instrumentos de luta nos tribunais, na imprensa, nos parlatórios e onde mais sua voz pudesse ecoar pela vinda da sonhada liberdade a todos os escravizados.

Em seus escritos, Luiz Gama sempre defendeu princípios como a liberdade de imprensa, denunciando ilegalidades e publicizando os dramas da população negra. Princípios cuja defesa nos é tão cara em tempos de governo Bolsonaro.