Trump anuncia vacinação sem vacina para disfarçar sua inépcia
A orientação do CDC, o órgão dos EUA responsável pelas doenças infecciosas, aos estados norte-americanos para que se preparassem para iniciar a vacinação dois dias antes das eleições de 3 de novembro, está causando enorme polêmica e para muitos é só uma tentativa de boca de urna, para passar, na véspera da eleição, a ideia de que a pandemia está “controlada”.
E, claro, minimizar a responsabilidade de Trump na tragédia que são 190 mil mortos e 6 milhões de infectados pela pandemia de coronavírus, naquela que costuma se apresentar como “a superpotência única” do planeta.
Se os EUA tivessem um governo decente, ligado na ciência e empenhado em deter a pandemia, poderia até ser razoável iniciar a vacinação emergencial do pessoal da saúde e setores de risco – o que a Rússia e a China inclusive já anunciaram sua prontidão em fazer.
Mas quando isso parte de um governo que recomendou cloroquina, ingerir água sanitária e injetar desinfetante em pulmão de enfermo – e logo na véspera da eleição, aí não há boa vontade que salve. Por respeito aos fatos, o governo Trump não aderiu à ozonoterapia retal.
É verdade que há o inconveniente de que Trump está anunciando a vacinação sem ter vacina, mas, em se tratando do imperador do Twitter, isso é só um pequeno detalhe de campanha.
O importante não é a vacinação, é aquela “gente boa” toda, de boné vermelho MAGA (Make America Great Again), indo votar em peso, e se sentindo mais protegida até do que com a cloroquina
E comparecendo aos seus comícios, o que já andou causando arrepios no presidente do Instituto Nacional da Saúde, Francis Collins, na maior aglomeração e sem máscara facial
Trump vinha se esforçando para que o tema central da eleição, ao invés de ser sua desastrosa condução do combate à pandemia e consequente devastação econômica, passasse a ser a “falta de lei e ordem”
Que seria o que está imperando nos EUA, desde que os negros cansaram de ser mortos impunemente pela polícia racista, e, pior ainda, receberam a solidariedade de um grande número de brancos, especialmente os jovens, de costa a costa.
A devastação econômica que acompanhou a pandemia tirou de Trump seu trunfo para ludibriar a população, dizendo que a economia era uma maravilha porque Wall Street estava na estratosfera. Depois do último aporte do Fed, aliás, Wall Street se manteve na estratosfera, enquanto a economia real foi ao chão
Melhor dizendo, quatro gigantes da internet, Google, Apple, Facebook e Amazon, que a festa já está acabando para os outros 496 das 500 maiores de Wall Street. É o inovador “crescimento em K”. A coisa está tão esquisita que a Exxon deixou o índice Dow Jones das 30 maiores, depois de quase um século.
Reza a lenda que presidente que governa sob recessão não se elege; o que não chega propriamente a ser um alento para Trump, apesar de todo o seu talento para mentir e encenar.
Em sua campanha, Trump tenta apavorar os incautos: que os “antifascistas vão incendiar as cidades”; os pobres, mudando para os subúrbios ricos, vão desvalorizar as propriedades; vão tirar suas armas! (depois de já terem tirado as bandeiras confederadas).
Bem que o drenador de pântanos preferiria que seus acenos à Klan [para os íntimos; para os sem intimidade, é Ku Klux Klan mesmo], ou exaltações do muro à prova de imigrantes, bastassem.
Mas a coisa vem complicando, e agora o grande assunto de Trump é que a eleição pelos correios – que é tradicional nos EUA e já começou – vai ser uma “enorme fraude”. Inclusive já ameaçou “pensar” se vai ou não aceitar o resultado
Se não bastasse, aconselhou seus eleitores a fraudarem a eleição, buscando votar duas vezes. Pelo andar da carruagem, perto da eleição deste novembro, aquela que garfou Al Gore e emplacou W. Bush, foi quase uma amenidade.
Há dúvidas se a famosa “surpresa de outubro” – aquele evento no imaginário político norte-americano que poderia mudar o rumo de uma eleição, o então presidente Carter que o diga – foi antecipada para setembro.
É que continua repercutindo a revelação do novo livro do jornalista Bob Woodward, Rage, com uma longa entrevista concedida a ele por Trump em fevereiro, de que este, apesar de dizer ao povo norte-americano que a Covid-19 era como “uma gripe comum”, “que desapareceria com o calor da primavera”, que bastava tomar cloroquina, que não tinha problema em reabrir tudo, relatou a ele saber que “a coisa era letal”, “cinco vezes pior que a gripe”, “parecido com a epidemia de 1918”, e alegou que estava “minimizando” para não “causar pânico”.
Os fanáticos de Trump, portanto, já têm sua explicação e, se não fosse essa, qualquer outra servia. Afinal, como na célebre frase do grande Lincoln, é possível enganar alguns o tempo todo.
Os menos cínicos vêem um certo fundo de verdade, só que o pânico que realmente Trump não queria de jeito nenhum era em Wall Street, e as providências com relação à pandemia de seu governo só andaram quando o morticínio em Nova York chegou a tal escala, com caminhões frigoríficos improvisados como necrotérios nas portas de hospitais, que não havia como o megacassino ignorar, e foi ao chão, para ser resgatado pelo Fed.
A incúria chegou ao ponto de que o país que vive ameaçando outros a torto e a direito, por supostamente ‘roubarem’ sua avançadíssima tecnologia, por dois meses não conseguia testar ninguém e recusava o teste da OMS (da qual, aliás, se retirou, por motivos mentirosos, como a entrevista de fevereiro mostrou).
No Twitter, viralizou #TrumpLiedAmericansDied (TrumpMentiu AmericanosMorreram). Trump tem buscado imitar Nixon e seu apelo à “maioria silenciosa”.
Na verdade, não é à maioria nenhuma; ele só quer ganhar no colégio eleitoral, por uns milhares de votos que seja, de preferência cavalgando fake news e outras trapaças do manual da Cambridge Analytica, mesmo que perca por milhões de votos na eleição nacional.
Na investigação do Watergate, a pergunta que puxou o tapete sobre os pés de Nixon foi “o que ele soube, quando ele soube”. Uma pergunta que merece ser respondida, agora, às famílias de 190 mil norte-americanos – mais do que em qualquer guerra de que os EUA tenham participado, com exceção da II Guerra Mundial.
Também a milhões de famílias que perderam o emprego, ou estão ameaçadas de despejo, como consequência da inépcia de Trump, que não pode sequer usar mais o obscurantismo como folha de parreira. E os seis milhões de famílias, cujos integrantes ficaram infectados e temeram por suas vidas.
Entre os infectologistas, é corrente que se o enfrentamento da pandemia tivesse começado duas semanas antes, uma parte substancial dessas mortes teria sido evitada. Ao enfrentar a pandemia de frente, e não com tergiversações e mentiras, muito da devastação econômica poderia ter sido evitada.
Pelo menos esse é o exemplo dado pela China. Colocou a ciência no posto de comando, chamou o povo inteiro a vencer a “guerra popular científica”, recuou organizadamente a economia, socorreu e apoiou a população de Wuhan e da província de Hubei, foi reativando de forma disciplinada e, depois de cair 6,8% no primeiro trimestre, no segundo já teve crescimento (3,2% ano sobre ano).
Mas talvez o mais importante sobre a eleição seja a última observação do diretor do Instituto Nacional de Saúde, Collins, à CNN, em que lamentou que as medidas de mitigação de senso comum haviam se tornado politizadas e acrescentou que se alienígenas chegassem à Terra, vendo o comportamento dos norte-americanos em meio à pandemia, concluiriam que o planeta não tinha futuro.
“Como chegamos aqui?”, questionou Collin. “Imagine que você fosse um alienígena que pousou no planeta Terra e viu que nosso planeta estava afligido por uma doença infecciosa e que as máscaras eram uma forma eficaz de prevenir a propagação”, disse o cientista, ao ser indagado sobre o comício de Trump na noite de quinta-feira.
“E, no entanto, quando você circulava, via algumas pessoas que usavam e outras que não as usavam. E, ao tentar descobrir o porquê, descobrisse que dependia do partido político deles”, acrescentou.
Para finalizar: “e você coçaria a cabeça e pensaria: ‘este não é um planeta cujo futuro promete, se algo tão simples pode ser de tal forma distorcido na tomada de decisões, de um modo que realmente não faz sentido.”
Bem, o alienígena poderia ter um pouco mais de sorte e não aterrar nos EUA ou no Brasil, o que dá uma margem ao futuro do planeta.
Mas quanto ao problema em curso nos EUA, a descrição é consistente. Como disse um ex-chefe do Pentágono, Trump é o primeiro presidente norte-americano que não se preocupa em unir os americanos – e nem finge tentar.
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