O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a censura imposta pelo desembargador Benedicto Abicair ao filme “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo”.
A decisão do presidente do STF, o ministro Dias Toffoli, considera que não é de se supor, contudo, “que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede há mais de 2 (dois) mil anos, estando insculpida na crença da maioria dos cidadãos brasileiros”.
Ele também citou que no julgamento da ADPF nº 130, o STF se debruçou “com percuciência sobre a temática, ressaltando, na ocasião, a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana e como meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais”.
A empresa protocolou no Supremo uma reclamação diante da censura imposta pelo TJ do Rio. “Nós apoiamos fortemente a expressão artística e vamos lutar para defender esse importante princípio, que é o coração de grandes histórias”, aponta nota da plataforma Netflix.
Até hoje a Netflix só havia sido censurada na Arábia Saudita, também por motivo religioso.
Na ação, a defesa da Netflix afirma que “isso constitui patente censura prévia emanada do Poder Judiciário a veículo de comunicação social que dissemina, na obra objeto da ação civil pública, conteúdo artístico – expressamente vedado pela Constituição, nos termos do art. 220, §2º”.
O desembargador Benedicto Abicair, da 6ª Câmara Cível do Rio de Janeiro (RJ) exigiu a retirada do ar do “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo” para, segundo ele, “acalmar ânimos”.
A determinação da retirada do vídeo do ar ocorreu após liminar concedida a uma ação da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura. Em primeira instância, o pedido havia sido negado.
“Por todo o exposto, se me aparenta, portanto, mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã, até que se julgue o mérito do Agravo, recorrer-se à cautela, para acalmar ânimos, pelo que concedo a liminar na forma requerida”, disse o desembargador em seu parecer.
O vídeo de 46 minutos de duração da produtora Porta dos Fundos está disponível na plataforma desde o início de dezembro. No dia 24 de dezembro, a sede do Porta dos Fundos foi atacada com “coquetéis molotov” em retaliação ao especial. Um grupo de integralistas assumiu a autoria do ataque.
Um dos autores do ato terrorista que já foi identificado, Eduardo Fauzi, fugiu do país um dia antes de ter o pedido de prisão decretado.
O Ministério da Justiça do governo Bolsonaro e o Itamaraty negaram oficialmente que esteja em andamento um pedido de extradição ter dado prosseguimento a pedido de extradição do criminoso.
Eduardo Fauzi permanece na Rússia, onde, segundo ele, visita a namorada. Em vídeo publicado nas redes sócias, ele comemorou a censura ao filme do Porta dos Fundos. “Estou muito feliz. Anauê!”, diz Eduardo Fauzi, após confessar a autoria do ataque terrorista afirmando: “O Brasil tem macho para defender a igreja de Cristo e a Pátria brasileira”.
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, criticou duramente a decisão do desembargador Benedicto Abicair.
Para Santa Cruz, no conflito entre a liberdade religiosa e a liberdade de expressão, é preciso garantir a segunda. “Ela é fundamental para vida democrática”.
Na sua conclusão, o desembargador Abicair diz considerar “mais adequado e benéfico” para a sociedade brasileira “majoritariamente cristã” que o programa seja retirado do ar até que se julgue o mérito da ação promovida pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura.
Felipe Santa Cruz salienta que o desembargador “na verdade está dando razão a um pensamento que já gerou um ato de violência que ainda não foi coibido pelas autoridades, porque os autores não foram identificados em sua totalidade (o atentado com coquetel molotov à sede do Porta dos Fundos). O desembargador está julgando os artistas monocraticamente”. O presidente da OAB considera que a decisão foi equivocada e espera que seja revista. “Não posso só permitir que transite na sociedade aquilo que me agrade ou agrade à maioria”, diz ele. “Muito pelo contrário: o direito serve para garantir que a minoria se expresse”.