Beirute é palco de manifestações exigindo punição aos responsáveis e mudanças

“Não é possível para o país sair da crise estrutural exceto através de eleições parlamentares antecipadas”, afirmou o primeiro-ministro libanês, Hassan Diab, no sábado, dia 8.

Diab, que assumiu em janeiro deste ano, tem apoio do bloco patriótico formado majoritariamente pelos partidos Amal (Esperança), Hezbollah e Movimento Patriótico Livre.

Este bloco assumiu o governo depois das vastas manifestações de outubro de 2019 que levaram ao afastamento do governo comandado pelo neoliberal Saad Hariri (filho do ex-premiê Rafik Hariri, morto em 2005, em uma explosão sob seu veículo).

O primeiro-ministro assumiu prometendo mudanças em um país com a inflação tendo, no ano anterior, levado a moeda local, Lira Libanesa (LL) a uma perda de 80% de seu valor face ao dólar.

Para infelicidade do país, assim que assumiu o novo governo, veio a pandemia trazendo um agravamento da sua situação financeira.

Dois meses após assumir o mandato, Diab anunciou que o seu governo não tinha como pagar uma parcela que vencia em títulos europeus no valor de US$ 1,2 bilhão. (As parcelas de abril US$ 700 milhões e junho, US$ 600 milhões também não foram pagas). O endividamento somente nestes títulos está em US$ 31 bilhões

Diab, junto com seu gabinete elaboraram uma proposta – incluindo o argumento de necessidade premente de ajuda humanitária diante da pandemia – de reestruturação da dívida e de liberação de recursos para a retomada do crescimento, como única forma de possibilitar o retorno aos pagamentos refinanciados.

Esse projeto foi assinado no mês de abril e endereçado ao FMI.

A proposta incluía a proibição aos bancos de realizar remessas ao exterior e uma intervenção para a reestruturação das finanças bancárias com base nos grandes depositantes e no rebaixamento dos juros.

O plano foi sabotado pela Associação dos Bancos do Líbano (ABL) que tomou providências na direção oposta. Informou ao FMI que rejeitava a proposta, impôs aos correntistas um limite de retiradas a um valor equivalente da US$ 100 por semana, tornado a vida dos libaneses ainda mais difícil.

Ao mesmo tempo, de acordo com o diretor-geral de Finanças Públicas, Alain Bifani, que renunciou no início de julho (em matéria publicada pelo portal Middle East Monitor) denuncia que foram desviados US$ 6 bilhões dos ativos bancários para fora do país, quando tais envios estavam proibidos desde o início do governo de Diab.

No mesmo período em que o governo libanês iniciava as negociações a ABL enviou documento ao parlamento pedindo que os deputados o rejeitassem pois, segundo os bancos, “a reestruturação doméstica dos bancos vai destruir ainda mais a confiança no Líbano tanto doméstica quanto internacionalmente. Deve deter os investimentos e, portanto, dificultar qualquer perspectiva de recuperação”.

Essa opinião é oposta à dos economistas que ajudaram a formular o plano, a exemplo do ex-ministro da Economia, Nasser Saidi. Para ele, o plano significava, “a colocação de sérias negociações com o FMI. Isso é importante e é boa nova, pois remove uma série de incertezas”.

A proposta

A proposta formulada pelo governo de Diab iniciava com uma radiografia da grave situação do país: com 85% do que é consumido vindo do exterior, a perda de valor da moeda tem sido profundamente sentida, com os produtos da cesta básica tendo passado por uma elevação de 53% em termos da moeda local no ano de 2020, até o mês de abril.

Na proposta se informa que o país, endividado em 170% do PIB – cuja produção industrial perfaz apenas 8% do PIB – teria que desembolsar, nos termos atuais, insustentáveis US$ 28 bilhões até 2024.
Nestas condições, dizia o informe do governo, avalia-se que 48% da população está abaixo da linha de pobreza.

A ideia exposta pelo governo era de uma injeção de recursos para apoiar um início de industrialização, de produção agrícola para substituir a importação de alimentos e um estímulo ao turismo pós-pandemia para que pudesse se levantar divisas.

Também se comprometia a lutar contra a corrupção com levantamento de sigilo bancário de suspeitos em movimentações de até 30 anos atrás. Esse foi, aliás, mais um item ao qual os bancos libaneses se opuseram dizendo que isso “afastaria investidores”.

Do ponto de vista do financiamento, além da suspensão temporária dos pagamentos da dívida, o Líbano solicitava a liberação de um recurso de US$ 11 bilhões aprovado por uma comissão especial (que levou 50 países a Paris em 2018) para que o Líbano retomasse o desenvolvimento (antes da guerra provocada na Síria, o crescimento do país chegara a 9,5% em 2011). Nos anos de 2011 a 2017, o crescimento caiu para 1,7% ao ano em média e a dívida externa cresceu.

Acontece que o dinheiro estava vinculado a “reformas” o que incluía a liberação para o capital estrangeiro de patrimônio público libanês, desde o porto, incluindo a alfândega, até os prédios públicos, passando pelas empresas de energia e água.

A resistência a essas concessões fez com que o recurso não fosse liberado, mesmo diante da calamitosa situação no Líbano que, por questões humanitárias chegou a receber mais de um milhão de refugiados sírios no período recente.

Além disso, depois que o governo Hariri foi substituído por uma coalizão com a participação do Hezbollah (principal força na luta contra a ocupação israelenses de 1982 a 2000) os Estados Unidos atentaram contra o país, como denunciou o presidente do judiciário iraniano, Ebrahim Raeisi, que apontou para “as sanções cruéis e desumanas impostas pelo regime criminoso dos EUA contra o povo libanês nos meses recentes, que constituem um sério obstáculo para que se atenda às necessidades básicas do povo libanês. A lista engloba ainda um vasto leque de alvos, desde a indústria farmacêutica até a organizações religiosas e comunitárias, chegando a bancos e empresas dedicadas ao comércio exterior.

Na proposta libanesa ainda se solicitava mais um apoio no valor de US$ 10 bilhões em cinco anos. Além disso, os organismos internacionais apoiariam negociações com os credores europeus para lhes assegurar que o plano de retomada seria a forma de garantir o ressarcimento posterior da dívida.

De abril até junho foram realizados 16 encontros entre delegados do FMI e integrantes do governo e, no último, deles, segundo a agência de notícias France Press, o representante do FMI deixou a reunião no meio, interrompendo as negociações em meio a uma grave crise humanitária (crise econômica agravada pela pandemia). A situação no Líbano já estava extremamente grave como exemplificam os apagões de energia cada vez mais constantes, lixo acumulado nas ruas e má qualidade da água tratada.

Antes da interrupção das negociações, o norte-americano, vice-secretário para Assuntos do Oriente Médio, David Schenker, também contribuiu para a negativa de apoio afirmando que “o Líbano primeiro precisa provar que está disposto a implementar as reformas”, ou seja, entregar seu patrimônio.

Fica claro que não é pura coincidência que o presidente francês, Emmanuel Macron, o primeiro chefe de Estado a ir ao Líbano depois do desastre em Beirute, chegar dizendo que a França daria apoio ao Líbano, mas que – independente da necessidade premente de ajuda humanitária – o governo libanês teria que “implementar reformas”.

Quem é o responsável?

Desde o desastre que destruiu o porto de Beirute, os relatos sobre a responsabilidade na explosão se acumulam.

Diretores e funcionários do porto estão presos. Entre os 16 detidos estão Hassan Koraytem, diretor do porto e Badri Daher, chefe da Alfândega.

Acontece que eles e outras personalidades civis e militares falam de mais de 10 correspondências alertando para o risco que a carga localizada no porto representava, sem que nenhuma providência fosse tomada.

As 2.750 toneladas de nitrato de amônia foram parar no Armazém 12 do porto depois que a mercadoria foi apreendida de um navio que ia da Geórgia com destina a Moçambique e que, após fundear no porto de Beirute, teve sua companhia apresentado pedido de falência e o dono do navio alegado que não podia pagar as taxas pela permanência no porto.

Isso aconteceu em 2013. Já em 21 de fevereiro de 2014, quando o material ainda estava a bordo, o coronel Joseph Skaff escreveu para as autoridades antifurto alertando que o material era “extremamente perigoso e coloca em risco a segurança pública”.

Agora a TV libanesa LBC relata que o exército enviou um especialista que detectou que o nível de nitrogênio no material era de 34,7% considerado explosivo em alto nível.

O exército reportou ao departamento da Alfândega de que o material deveria ser rapidamente removido. A Alfândega reenviou o informe ao juiz de questões emergenciais sem nenhuma providência correspondente. Agora a TV LBC declara que não conseguiu contatar nem com as autoridades militares, nem as judiciárias para confirmar essa história.

Daher, o chefe da Alfândega declarou, antes de ser preso, que enviou pelo menos seis cartas ao juiz pedindo providências legais, inclusive autorização para a venda do produto, que também serve como fertilizante, sem obter qualquer resposta.

Logo após a explosão, o presidente Michel Aoun declarou que as investigações em curso vão mostrar se a causa foi local ou se por uma interferência externa, míssil ou bomba.

Já o premiê Diab afirmou em rede de TV que “a dor é de todos nós. Todos estamos feridos” e que “as investigações vão revelar a verdade e isso não vai demorar muito”.

Jornais libaneses falam em 780 feridos nas manifestações, realizadas principalmente em Beirute, na Praça dos Mártires, no sábado e domingo. Os atos pedindo punição aos responsáveis e mudanças no país começaram pacíficas mas acabaram em confronto com forças policiais e militares, quando parte dos manifestantes (mais de 10 mil) tentaram entrar na sede do parlamento e invadiram os ministérios da Economia, da Energia e das Relações Internacionais.

Cinco parlamentares e dois ministros renunciaram, o do Meio Ambiente, Damianos Kattar e a da Informação Manal Abdel Samad.

Em sua carta de renúncia, a ministra da Informação destaca que “dada a magnitude da catástrofe causada pelo terremoto de Beirute, que sacudiu a nação e feriu nossos corações e mentes, e em respeito aos mártires e à dor dos feridos, desaparecidos e desabrigados e, em resposta à vontade popular por mudanças, eu renuncio de meu posto no governo”.