Países de fé muçulmana repelem cruzada anti-islâmica de Macron
Declarações do presidente Emmanuel Macron, estimulando a divulgação na França de charges ofensivas aos crentes islâmicos, que retratam de forma obscena o Profeta Maomé a título de “liberdade de expressão”, desencadearam uma onda de protestos nos países de fé muçulmana e denúncias de mal disfarçado racismo islamofóbico.
Vários governos – como Irã, Turquia, Paquistão, Jordânia, Kuwait, Marrocos e Qatar – manifestaram seu repúdio. Também entidades islâmicas e partidos, como o Hezbollah libanês, a Universidade Al Azhar egípcia, o Partido Islâmico da Argélia e o Alto Conselho dos Ulemás saudita, condenaram a vileza.
Conclamações de boicote aos produtos franceses se espalharam do Oriente Médio ao Oceano Pacífico, passando pelo norte da África.
Em Bangladesh, 40 mil crentes foram às ruas da capital Daca para rechaçar Macron. Atos também se repetiram na Palestina, Iraque, Bahrein e Líbia.
Inicialmente, a reação dos governos desses países de forma generalizada havia sido se solidarizarem com a França, diante do brutal assassinato de um professor, Samuel Paty, por um jovem de 18 anos criado na França de origem chechena. Ainda mais por se tratar de uma decapitação.
O que se transformou em exasperação, quando esses países se viram diante do anúncio de Paris de uma nova cruzada contra a “radicalização” e o “separatismo islâmico”, por meio de uma legislação draconiana que será encaminhada ao parlamento até dezembro e da iminente criminalização da denúncia da islamofobia.
Como registrou o portal HispanTV, a comunidade islâmica no mundo inteiro, além de denunciar vigorosamente que a liberdade de expressão não implica, em absoluto, “em lançar insultos aos valores do Islã e às crenças dos muçulmanos”, advertiu às autoridades francesas de que estão contribuindo para o “incitamento do ódio” nesse país europeu.
Aliás, uma comunidade numerosa, de cerca de seis milhões de pessoas, em grande medida segregadas nas áreas mais pobres dos subúrbios parisienses. O que é o efeito colateral da dominação francesa, durante tantos anos, na África islâmica e no Oriente Médio retalhado pelo acordo Sykes-Pikot, assim como das políticas neoliberais empurradas goela abaixo das ex-colônias.
No Twitter, o porta-voz do governo turco Fahrettin Altun também criticou a lei “anti-separatista” do governo Macron: “Trata-se de intimidar os muçulmanos e lembrá-los de que são bem-vindos para continuar a fazer a economia da Europa funcionar, mas que nunca serão uma parte disso.”
Altun acrescentou que esta política é “estranhamente familiar”, observando que ela lembra “a demonização dos judeus europeus na década de 1920”.
O moderado ministro das Relações Exteriores da Jordânia, Ayman Safadi, transmitiu na segunda-feira à embaixadora da França em Amã, Veronique Folland, o descontentamento de seu país e lembrou a ela a decisão de 2018 da Corte Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) de que insultar Maomé “não constitui liberdade de expressão”.
Ele destacou, ainda, que a Jordânia “condena todos os tipos de violência e terrorismo que alguns cometem em clara oposição à mensagem do Islã”.
O primeiro-ministro do Paquistão, Inram Khan, considerou “lamentável” que Macron haja “escolhido fomentar a islamofobia, com ataques ao Islã e não a terroristas que cometem violência, sejam eles muçulmanos, supremacistas brancos ou apologistas do nazismo”.
“Infelizmente, o presidente Macron decidiu provocar deliberadamente os muçulmanos, incluindo seus próprios cidadãos”, acrescentou. Ele pediu ao presidente francês que siga o exemplo de líderes, como o sul-africano Nelson Mandela, que se esforçou para unir os seres humanos em vez de dividi-los.
“Este é um momento em que Macron poderia ter dado um toque de cura e negado espaço aos extremistas em vez de criar mais polarização e marginalização, que inevitavelmente levam à radicalização”, salientou.
O Ministério das Relações Exteriores do Qatar repudiou o insulto “deliberado” ao Profeta do Islã na França e reiterou sua rejeição total “a todas as formas de discurso de ódio, baseado em crenças raça ou religião”.
O ministro do Exterior iraniano, Mohammad Javad Zarif, denunciou a posição do governo francês, dizendo que insultar quase 2 bilhões de muçulmanos e suas crenças “pelos crimes abomináveis de tais extremistas é um abuso oportunista da liberdade de expressão e só alimenta o extremismo”,
Ele acrescentou ainda que os muçulmanos são as principais vítimas do “culto ao ódio” que foi fortalecido pelos regimes coloniais e exportado por seus próprios clientes.
Já a Organização de Cooperação Islâmica (OIC) – que reúne 57 países – censurou as tentativas de políticos franceses de vincular os muçulmanos e o Islã ao terrorismo, em meio a um sentimento anti-Islã crescente devido às políticas hostis adotadas pelo Estado europeu.
O comunicado repeliu o “discurso de certos políticos franceses, que considera prejudicial para as relações entre muçulmanos e franceses, fomentando o ódio e servindo apenas a interesses políticos partidários”.
A OIC também disse que “sempre condenará as práticas de blasfêmia e de insultos aos profetas do Islã, Cristianismo e Judaísmo”. Repudiou, ainda, o assassinato do professor Paty.
Antes do assassinato do professor Paty, o presidente Macron já havia dado, por conta e risco, uma cutucada nos muçulmanos em geral, tendo afirmado no dia 2 que “o Islã é uma religião em crise no mundo inteiro”.
Analistas têm se perguntado qual é o objetivo de Macron, cuja presidência tem sido um enorme fracasso, em que se dedicou especialmente a aumentar o tempo mínimo de aposentadoria e a cortar direitos, e ainda foi abalroado pela pandemia, que agora parece estar chegando à segunda onda, enquanto o inverno se aproxima.
Na prática, Macron vem flertando com setores da extrema-direita histericamente anti-muçulmanos e anti-imigrantes, na tentativa de recuperar a popularidade, uma espécie de ‘fuga para a frente’.
Entrevistado pela HispanTV, o sheik Ali Qomi disse que parece que os países europeus “ainda continuam a viver nas cruzadas medievais”. Ele ironizou o apego de Macron à “liberdade de expressão”, se referindo à violenta repressão aos protestos dos coletes amarelos e dos sindicatos e estudantes.
Também o presidente turco Recep Tayyp Erdogan confrontou as atitudes de Macron para com os muçulmanos e o Islã. Sem a menor sutileza – essa não é sua praia – em um comício disse que Macron deveria se submeter a um “exame de saúde mental”.
“O que mais pode ser dito a um chefe de Estado que não entende a liberdade de crença e que se comporta dessa maneira com milhões de pessoas que vivem em seu país e que são membros de uma religião diferente?”, sublinhou.
A reação de Paris foi considerar os comentários de Erdogan “inaceitáveis”. “A indignação e o insulto não são um método”, ousaram acrescentar em um episódio que envolve um insulto à religião alheia.
Quanto aos boicotes aos produtos franceses, a chancelaria francesa os considerou “injustificados”, exigindo que “terminassem imediatamente”. Segundo as agências de notícias, estão se intensificando.
Na queda de braço, Paris chamou seu embaixador na Turquia para “consultas”, e vários países islâmicos estão chamando às falas os embaixadores franceses, cobrando esclarecimentos, especialmente sobre a lei “anti-separatismo”, já rebatizada como de “defesa do Estado secular”. Observadores denunciam que a lei estabeleceria o controle do Estado sobre o Islã na França e atropelaria a lei secularista de 1905 que proíbe a interferência do Estado na vida religiosa.
Segundo a referida lei, estão em jogo os “valores republicanos” e os “valores franceses”. Embora não se saiba exatamente porque os “valores franceses” estariam representados por um ‘Maomé’ nu, agachado em direção a Meca, e com uma estrela amarela acoplada ao ânus, com a legenda “nasce uma estrela”. Estranhamente, o amarelo era a cor com que os nazistas identificavam judeus obrigando-os a bordar estrelas de David em suas vestimentas.
Menos ainda a “liberdade de expressão”. É difícil crer que, em pleno século 21, charges ofensivas a outras minorias, como negros, judeus ou gays, ou seja, racistas e discriminatórias, passariam ilesas na França como “liberdade de expressão”.
Faz parte da realidade da França que os subúrbios de Paris estejam apinhados de filhos de imigrantes muçulmanos, cuja integração precisa ser enfrentada e resolvida. O que se faz premente são medidas de dessegregação das comunidades muçulmanas e de outros imigrantes.
Debate no qual não há como esconder a própria responsabilidade da França para com o extremismo sob fachada ‘islâmica’. Como cometeram na Síria, financiando, armando e treinando extremistas para derrubar o governo legítimo, além de dar cobertura na mídia, atendendo a Washington.
Ou na Líbia, em que a França teve um papel chave para a intervenção da Otan como força aérea dos extremistas, culminando, inclusive no assassinato do líder Muammar Kadhafi, operação que destruiu o país, o que já dura nove anos.
Desastre que repete o que foi feito, no Afeganistão, na década de 1980, para barrar uma revolução que distribuía terra aos camponeses e assegurava os direitos das mulheres – e que foi a primeira manifestação do “Islã Americano”.
Operação sob comando da CIA, que formou a Al Qaeda e serviu de modelo para todos os extremistas que se seguiram. Manipulação muito útil para depois esquartejar a Iugoslávia e na frustrada tentativa de abocanhar a Chechênia.
Depois a Al Qaeda saiu de controle, como se repetiria mais tarde com o Estado Islâmico. Na Síria e na Bósnia, o ‘Ocidente’ fazia de conta que não via as cabeças cortadas por ‘jihadistas’.
Macron também anda ensaiando tirar as castanhas do fogo no Líbano, e faturar no genocídio do Iêmen, vendendo armas para os sauditas. Como se vê, os “valores da República” são sinuosos.
No Sahel – a região entre o sul da Líbia e a África negra – Macron também está atolado. A agressão da Otan à Líbia está cobrando seu preço de Paris. Dos barcos apinhados de refugiados ao incêndio no quintal francês. E são esses que querem dar aulas de “humanismo” aos crentes islâmicos.