Boris Johnson: mais desastre thatcherista à vista?

“Deixe a cura acontecer”, anunciou o primeiro-ministro Boris Johnson, no discurso de comemoração da vitória na aposta que fizera, de antecipar as eleições gerais para dezembro, pela primeira vez em um século, para torná-las um referendo do seu acordo Brexit, sob o lema de campanha ‘Get Brexit Done’ (‘Garanta o Brexit feito’). O Partido Conservador saiu das urnas com 365 deputados eleitos, tendo ganho 47 deputados em relação à eleição de 2017, e a saída da Grã-Bretanha da União Europeia será mesmo em 31 de janeiro. Sua proposta de acordo do Brexit será submetida ao parlamento antes do Natal.

Já o principal partido da oposição, o Trabalhismo, sofreu o que vem sendo chamado de “a maior derrota desde 1935” – tendo perdido 59 cadeiras, ficando com 203 deputados -, diante do que, segundo certas análises desinteressadas, se trataria de uma “volta triunfal do thatcherismo” e um “rechaço ao programa progressista de Jeremy Corbyn”.

Ainda mais grave, bases operárias que há um século votavam no Trabalho, no norte e nas áreas centrais da Inglaterra, e que em massa haviam sufragado o Brexit, elegeram pela primeira vez um conservador no que, até à véspera, boa parte da mídia britânica ainda percebia como uma eleição “imprevisível”, e vantagem dos conservadores em queda.

Os liberal-democratas, que se assumiram como a principal legenda pró-permanência na Europa, obtiveram 11 deputados mas viram sua líder, Jo Swinson, perder o mandato por 146 votos (para os nacionalistas escoceses).

Ao final da apuração, o líder trabalhista Corbyn, após lamentar “uma noite tão desapontadora para o partido”, reconheceu que a questão do Brexit “polarizou” a política e “suplantou em muito o debate político normal”. Ele anunciou sua renúncia, após um “processo de reflexão interno”, sem marcar data.

Para a ex-primeira-ministra Theresa May – que se reelegeu deputada -, o povo escolheu “encerrar este impasse, obter que o Brexit fosse feito e se mover em frente”.

A participação na eleição, apesar do dia chuvoso, foi de 67,3% – 1,5 ponto percentual a menos que em 2017. Os trabalhistas perderam 7,9 pontos percentuais em relação à eleição anterior, enquanto os conservadores aumentaram 1,2 ponto percentual. Na Grã-Bretanha, o voto é distrital, e leva quem ficar em primeiro, mesmo que por 1 voto de diferença.

Assim, depois de três anos e meio de idas e vindas, protelações da decisão do Brexit do referendo de 2016, balbúrdia no parlamento, economia derrapando e o país rachado ao meio, a população concluiu que resolver essa parada era a questão da hora, e que tudo mais não passava de embromação.

E, quanto a isso, o Partido Trabalhista não conseguiu responder, em decorrência das enormes divergências internas, na prática, dois partidos em um, o dos blairistas pró-EU, e o dos pró-Brexit.

A decisão de último minuto do líder Jeremy Corbyn, historicamente um eurocético, de aceitar a pressão dos blairistas para um segundo referendo, acabou por fazer bases históricas trabalhistas da Inglaterra e de Gales, que haviam votado em peso pelo Brexit, se deslocarem para candidatos conservadores pro-Brexit. O que aconteceu no histórico distrito mineiro de Blyth Valley, onde um conservador não se elegia há um século, em Leigh, Wrexham e Workington. Assim, na Inglaterra os trabalhistas perderam 47 cadeiras enquanto os conservadores ganharam 48. E são localidades que odeiam Thatcher.

Pesada derrota que, como enfatizou o jornal progressista Morning Star, aconteceu “após a decisão para fazer um segundo referendo sobre a adesão à EU”.

Quando se erra sobre a principal questão em disputa em uma eleição, do ponto de vista que o povo percebe, dificilmente se escapa do desastre. Sobre o Brexit, a proposta concreta do trabalhismo era “realizar um segundo referendo”, uma completa fuga da questão de que a eleição de dezembro já era o referendo.

Não se deve subestimar as dificuldades para Corbyn, diante da complexa situação em que Johnson jogava para impor um Brexit sem acordo, que facilitasse o pulo no colo de Trump – o que precisava ser barrado -, ao mesmo tempo em que na bancada parlamentar trabalhista, grande parte era blairista e histericamente contrária a Corbyn e suas políticas progressistas.

Conforme o Morning Star, o Partido Trabalhista “foi percebido como um partido ‘Remainer’ (pró-EU), ao entrar nas eleições prometendo um segundo referendo e com muitos do seu ministério-paralelo promovendo uma mensagem inequívoca de ‘ficar’ durante meses a fio”.

A impressão que ficou para boa parte do público foi de que o partido “tentava frustrar por completo o Brexit”. Líderes do partido haviam advertido de que essa abordagem seria desastrosa em dois terços dos círculos eleitorais britânicos que haviam votado a favor do Brexit em 2016.

A questão do “segundo referendo” do Brexit também pode ser percebida de outro ângulo, a retumbante vitória do Partido Nacionalista Escocês (SNP), que obteve 48 dos 55 mandatos disputados na região, fazendo uma campanha com uma mensagem muito direta pela permanência na União Europeia e por um novo plebiscito pela independência. E a inédita vitória na Irlanda do Norte dos republicanos – que são pró-UE e pró-reunificação – sobre os unionistas pró-britânicos.

Outros fatores também contribuíram para que o resultado fosse esse. A cruzada de “assassinato de reputação” contra Corbyn, em vigor desde 2015, xingado de “antissemita” e “amigo de terroristas” durante a campanha. Ainda, cartazes o representavam com feições demoníacas, por ameaçar a propriedade e taxar os ricos.

O acobertamento, pela mídia, da fuga de Johnson dos debates, enquanto essa mesma mídia batia duro o tempo todo contra as propostas progressistas de Corbyn para que a alternativa para a Grã Bretanha pós-Brexit não fosse o pulo no colo de Trump, e seus corolários, como a privatização do NHS, o serviço público de saúde inglês.

Ao mesmo tempo, numa eleição caracterizada pelo jornal The Independent como a “mais capciosa” e “suja” da história, não faltaram as fake newks e as histórias sórdidas sobre a iminente avalanche de imigrantes, que acabaram, ao lado da demagógica campanha de Boris Johnson, gerando, no dizer do Star, “a bizarra ilusão de que um conservador educado em Eton [a detestada escola da alta elite britânica] era o candidato ‘anti-establishment’”.

Outro aspecto da avalanche eleitoral foi a estratégia do guru de Johnson, de manter unidos os votos pró-Brexit, e estimular a divisão entre os opositores. O Partido do Brexit optou por não apresentar candidato em muitos distritos, para não pôr em risco a eleição dos pupilos de Johnson. O primeiro-ministro também expurgou dos Tories os principais cabeças pró-EU.

O próprio Boris Johnson gosta de se apresentar como o “Trump britânico”, ainda que haja sido, na rodinha da cúpula da Otan de Londres, um dos mais acesos na galhofa geral sobre o bilionário.

Esse resultado colocou no poder “o gabinete mais de extrema-direita que vimos em nossa história”, advertiu o número dois do Trabalhismo, John McDonnel.

Para ele, as pessoas “quase em desespero queriam concluir o Brexit porque estão fartas com o que está acontecendo” – se referindo ao impasse que racha sociedade britânica, ao cansaço com as sucessivas postergações da saída da EU, e após uma década perdida de arrocho pós-crash, que é a exacerbação da herança maldita do Thatcherismo.

Em certa autocrítica, McDonnell disse que os trabalhistas haviam chegado a achar que “outras questões poderiam ser resolvidas e haveria um debate mais amplo, com base em evidências que claramente não existiam”.

Nem mesmo o encorpado placar eleitoral tem o condão de abafar o acúmulo de materiais inflamáveis nas Ilhas Britânicas, por mais que Johnson assevere ter recebido um cheque em branco dos eleitores.

O boletim semi-oficial da City londrina, The Economist, depois de registrar a “escala da vitória” de Boris nas eleições, advertiu que ele deve se lembrar que “o muro vermelho do Partido Trabalhista [os distritos operários que votam há um século no trabalhismo] apenas lhe deu seu voto. O realinhamento político que ele conseguiu ainda está longe de ser seguro”.

Ainda segundo a revista, “os votos do norte são meramente emprestados” e para mantê-los Johnson terá que dar às pessoas o que elas querem – “o que significa infraestrutura, gastos em saúde e bem-estar” e – acrescenta cinicamente – “uma política rígida de imigração”.

Nessa análise, The Economist assevera que ao longo de várias décadas, “as atitudes diante da economia foram substituídas por questões culturais” como “o principal fator” para decidir voto e que Trump mostrou “como posições conservadoras sobre questões culturais podem reunir uma coalizão de eleitores ricos e pobres”. Mas é obrigada a admitir que se trata de uma coalizão “ideologicamente incoerente” essa de “colarinhos azuis [operários] e calças vermelhas [realeza e especuladores]”.

Apesar de antever que nos próximos tempos não haverá oposição de monta a Johnson e que o Brexit ocorrerá em janeiro com fanfarras, a revista adverte que os problemas estão só começando e que, ao contrário de Trump, que foi ajudado por uma economia em expansão, a Grã-Bretanha pós-Brexit “provavelmente ficará estancada”.

“A parte difícil, negociar o futuro relacionamento com a Europa” – ressalta -, está à frente. Os argumentos mais difíceis, sobre renunciar ao acesso ao mercado em troca da capacidade de desregular, “não começaram’. Johnson terá que “enfrentar seus próprios ultras do Brexit ou baquear a economia com um acordo mínimo da UE”.

O Morning Star conclama os trabalhistas a, sem desconhecer a rudeza do resultado, não ignorarem o acúmulo do processo de retomada como um partido de massa, que alcançou 400 mil militantes, sob a liderança de Corbyn. Nessa “pior eleição”, os trabalhistas tiveram mais votos do que em 2005, 2010, 2015 e só retrocederam em relação ao resultado “inesperadamente bom” de 2017. Foram 10,3 milhões de votos, e 32,1% dos votantes nesta eleição.

Corbyn falou do seu orgulho por resgatar os grandes temas para superação da herança maldita do Thatcherismo e do enorme ingresso de jovens nas fileiras do partido.

O debate interno será polarizado entre os próceres do blairismo, os neoliberais com dó no coração, e os progressistas, que lutam pela reconstrução britânica, com reindustrialização, investimento público, manutenção do NHS e programas sociais. A proposta blairista de mimetizar o trabalhismo como o partido pró-europeu, como advertiu o Star, mataria o trabalhismo em qualquer canto fora de Londres.

Quando ao acordo com Bruxelas, os líderes europeus já disseram que o tempo de 11 meses será exíguo. Trump reiterou sua oferta de um acordo bilateral ao seu estilo.

A forte campanha da oposição em defesa do NHS e de denúncia da cobiça de Trump e dos cartéis hospitalares norte-americanos sobre o sistema de saúde público inglês dificulta os planos de Johnson.

Acabada a marquetagem, a dura realidade insiste em emergir – da foto do menino com pneumonia deitado no chão de um hospital inglês, que Johnson tentou ignorar, às declarações dos escoceses de que querem seu referendo de independência e ficar na UE. Na Irlanda do Norte, o líder unionista em Westminster perdeu o mandato e pela primeira vez os republicanos ganharam a eleição.

Como conclamou o Star, não é porque foi eleito um congresso de incompetentes – e provavelmente, acrescentaríamos, vários cretinos -, que a crise política, econômica, social e ambiental que aflige a Grã Bretanha deixará de se agravar. O Reino está cada vez mais desunido e o príncipe Andrew foi flagrado como pedófilo. São materiais inflamáveis em profusão, e o bombeiro escalado é o louro Boris, aliás o BoJo. Você confiaria a ele um extintor de incêndio?