O debate para reerguer La France Insoumise
O futuro de La France Insoumise (A França Insubmissa) não é certo. A disputa sobre a frente que reúne a esquerda francesa mascara um problema maior – a frente não está explorando a ira popular. Um dia após o anúncio do resultado da eleição para o Parlamento Europeu, Clémentine Autain, de La France Insoumise (LFI) lançou contra a frente uma crítica inesperadamente violenta.
Por Cole Stangler (*)
Em entrevista à revista liberal L’Obs depois que o movimento de esquerda terminou com apenas 6,3% dos votos na eleição para o Parlamento Europeu – bem atrás do presidente Emmanuel Macron e da candidata de extrema direita, Marine Le Pen, mas também atrás dos Verdes – a parlamentar criticou a falta de “democracia interna” na frente e questionou sua estratégia política.
La France Insoumise (LFI), disse Autain, erroneamente ignorou os pedidos para reformular sua estrutura – uma referência à falta de liderança eleita no partido/movimento. Em sua opinião, também julgou mal o humor do eleitorado, optando por uma política de “ressentimento” e apostando em um “confronto” crescente com Macron, em vez de construir uma alternativa mais positiva com potenciais aliados.
Então veio a última bomba. Autain pediu um “Big Bang” – um apelo em aberto para políticos e ativistas de esquerda deixarem de lado suas diferenças e trabalharem juntos, unindo sindicalistas, ambientalistas, feministas e grupos anti-racistas. Assinada por vários intelectuais e duas outras deputadas – Elsa Faucillon e Stéphane Peu, do Partido Comunista Francês (PCF) – esse projeto começa em 30 de junho em Paris.
FrançaSejam quais forem os méritos ou limitações dessa iniciativa, o apelo de Autain desencadeou o debate entre líderes e simpatizantes da LFI. De um lado, aqueles que acreditam precisar se envolver com os demais da esquerda, melhorar seus laços com outras organizações e defender valores amplamente internacionalistas. No outro lado estão aqueles que acreditam que a frente precisa manter sua postura popular, enfatizando questões como a soberania e seu compromisso com os valores universais da França. Enquanto isso, para a grande maioria, o caminho para o futuro está em algum lugar no meio – uma continuação do delicado equilíbrio que o líder carismático da LFI, Jean-Luc Mélenchon, conseguiu até agora. Mas o que une a todos é um claro sentimento de que as coisas não podem continuar como antes.
Elsa Faucillon insiste que o “Big Bang” não é outra tentativa vã de “salvar a esquerda” através de uma nova aliança eleitoral. Afinal, é exatamente isso que o grupo de ideias recém-formado, Place Publique, fez no início deste ano – realizou uma série de reuniões públicas sob o pretexto de reconstruir a “democracia direta” antes de passar a endossar o Partido Socialista. Em última análise, conseguiu colocar seu fundador, o jovem Raphaël Glucksmann, no topo da lista desse partido para as eleições europeias de maio.
“Nossa ambição não é criar um cartel de organizações políticas”, diz Faucillon, que, como Autain, representa um bairro do subúrbio, ao norte de Paris. “Adicionar muitos partidos de esquerda não cria uma dinâmica política. Uma dinâmica é algo que vem junto com ingredientes e tempo, você tem que criar esperança também”.
Faucillon insiste que o “Big Bang” é menos voltado para a construção de laços entre líderes partidários do que para estimular a discussão entre ativistas. Discussão que, segundo seu raciocínio, ajudará a impulsionar o processo de construção de uma alternativa à divisão cada vez mais sombria que hoje domina a política francesa: o presidente Emmanuel Macron e seu liberalismo pró-negócios versus Marine Le Pen e seu nacionalismo racista. Três anos antes das próximas eleições presidenciais, esses dois campos não mostram sinais de desvanecimento – mesmo após a eclosão dos protestos dos Coletes Amarelos e suas demandas populares em defesa dos serviços públicos, tributar os ricos e capacitar os cidadãos através de referendos.
“Há muito trabalho a ser feito”, diz Faucillon. “Mas não podemos ficar imobilizados diante da atual situação política e do perigo de um longo duelo [Macron-Le Pen]. Além disso, há o perigo de se ver não apenas organizações de esquerda desaparecerem, mas valores de esquerda também, aspirações de esquerda na sociedade.”
Desde pelo menos as últimas semanas da campanha presidencial de 2017, a tarefa de defender esses valores caiu em grande parte sobre os ombros de La France Insoumise. Na opinião de Faucillon, aquela campanha foi bem sucedida porque foi reconhecida como a melhor opção para os eleitores de esquerda e construiu uma plataforma ambiciosa que refletia os valores clássicos de esquerda: coisas como aumentar o gasto público para combater a pobreza, combater a desigualdade de riqueza e abordar as mudanças climáticas. Em última análise, essa plataforma ganhou cerca de 20% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial. Dois anos depois, os eleitores estavam claramente menos entusiasmados com isso.
Com certeza, a principal razão por trás do resultado ruim de maio passado foi a própria natureza da eleição. A campanha para o Parlamento Europeu, um órgão legislativo que não tem autoridade sequer para propor sua própria legislação, tende a interessar mais aos entusiastas da União Europeia, e também a seus críticos mais severos – em outras palavras, os que são atraídos por Macron e Le Pen. Mesmo com uma participação eleitoral relativamente alta, o comparecimento à eleição de maio foi cerca de 25% mais baixo do que nos dois turnos da disputa presidencial. Muitos dos que votaram em Mélenchon em 2017 simplesmente ficaram em casa. Não ajudou que muitos na LFI tivessem pontos de vista diferentes sobre a União Européia, desde aqueles que querem deixar diretamente os tratados da UE até aqueles que aceitam atuar dentro de seus limites, pelo menos no curto prazo.
No entanto, isso por si só não explica o fraco desempenho de LFI na eleição europeia. De acordo com uma pesquisa feita no dia da votação, apenas um quinto dos eleitores (20%) de Mélenchon em 2017 votaram nas eleições do mês passado. E enquanto há dois anos La France Insoumise conquistou a maior parcela dos votos dos jovens entre dezoito a vinte e quatro anos, desta vez apenas 8% deles optaram pelo partido. Em vez disso, foram os Verdes que receberam a maior parcela de apoio dos mais jovens.
Faucillon, que apoiou Mélenchon na eleição de 2017, atribui a culpa, em parte, a uma mudança na retórica de La France Insoumise. “Acho que perderam a força para convencer as pessoas”, diz ela. “É importante representar a raiva das pessoas, mas não podemos apenas reunir diferentes fontes de raiva. É preciso que haja um resultado final emancipatório e progressista, senão você vai em direção ao ressentimento ”.
Na verdade, para muitos, LFI foi bloqueada em uma disputa cansativa com o partido de Le Pen, sobre quem pode criticar melhor o presidente Macron – uma política de fogo e fúria que foi simbolizadas pela reação a recentes ataques policiais.
Em novembro 2018, escritórios de LFI foram invadidos por autoridades judiciais como parte de uma investigação sobre financiamento de campanha. Os líderes de LFI fizeram uma reunião de emergência em resposta – e então as coisas foram ao mar. Como os oficiais do Tribunal bloquearam as portas e apreenderam informações – um procedimento judicial padrão na França -Mélenchon foi filmado confrontando um deles. “Eu sou a República!”, gritou, numa referência visceral e estranha ao seu papel como parlamentar, sendo amplamente ridicularizada nas redes sociais.
“Eu acho que a exibição dos ataques nas redes sociais, que foram vistos maciçamente por jovens, provocou uma ruptura com os eleitores de primeira vez e os jovens que foram um dos motores da campanha presidencial”, disse Lenny Benbara, fundador e editor de “Le Vent se lève”, da mídia on-line que muitas vezes publica comentários simpáticos sobre La France Insoumise. “Eles perderam muito da energia que essas centenas de milhares de jovens trouxeram para a campanha.”
Benbara também concorda que o tom negativo afastou eleitores. Por outro lado, ele não acredita que a organização deva se unir a outros partidos de esquerda, como os comunistas ou grupos como o Génération, inspirado no grego Yanis Varoufakis. Ou deliberadamente buscar eleitores de esquerda. Para os defensores da chamada estratégia popular, o sucesso de La France Insoumise vem precisamente de sua capacidade de atrair eleitores desencantados que muitas vezes decidem ficar longe das urnas.
Na verdade, desde que a chamada para um “Big Bang” saiu, a ala popular de La France Insoumise tem se oposto a ela publicamente. Raquel Garrido, uma conselheira da campanha de 2017 de Melenchon, tem atacado as esperanças de Autain de recriar um bloco de esquerda como fora de moda e ineficaz. Outro grupo de apoiadores de LFI – incluindo antigos membros de seu círculo interno, Djordje Kuzmanovic e Charlotte Girard – lamentaram o “colapso” da “esperança” trazida pela campanha 2017. “É hora de alimentarmos o apetite democrático mostrado pelos coletes amarelos,” escreveram, convocando um “amplo movimento dos cidadãos”.
“Precisamos nos convencer do fato de que somos uma organização, não apenas um movimento”, disse David Guiraud, porta-voz da juventude de La France Insoumise. “Precisamos de uma organização menos gasosa. A estrutura solta de nossos grupos de ação é útil, mas quando algo dá errado, há poucas pessoas a quem recorrer… Precisamos solidificar as coisas um pouco.”
Quando se trata da visão política mais ampla do movimento, o debate fica mais forte. Como a maioria na bancada de LFI na Assembleia Nacional, Guiraud rejeita o apelo para um Big Bang.
“Para mim, o maior problema é pensar que temos que refazer tudo desde o zero”, diz ele. “Como se não tivéssemos uma base social. Ou que precisamos de uma nova organização com novas pessoas. Temos uma base social, mesmo que esta base nem sempre se mobilize… Quando vamos para bairros operários, estamos em maioria, em termos de idéias e apego a Jean-Luc Mélenchon.”
Rejeitando o debate entre esquerdistas e populistas como uma disputa teórica, Guiraud diz que La France Insoumise enfrenta questões mais importantes e urgentes: a quem se aliar nas eleições municipais do ano que vem e em que condições, como fortalecer os laços com sindicatos e outros ativistas locais, e, finalmente, o papel do próprio Mélenchon.
Este último poderia ser o mais desafiador de todos. A figura mais reconhecível do movimento provou ser capaz de superar as divisões internas e apresentar as ideias de La France Insoumise a uma audiência de massa. Após as eleições europeias, Mélenchon disse que está refletindo sobre o seu futuro político, alimentando a especulação de que poderia recuar do centro das atenções. “A pergunta é: temos outra pessoa capaz de fazer isso?”, diz Guiraud.
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(*) Cole Stangler jornalista de Paris, escreve sobre trabalho e política.
Tradução, seleção de trechos e adaptação: José Carlos Ruy