Três gerações de mulheres se uniram nas ruas e nas reivindicações e um número expressivo de homens apoiou os atos públicos

Multidões de mulheres foram às ruas na Suíça na “greve feminina geral” na sexta-feira 14 de junho – data do referendo em 1981 que colocou na constituição o princípio do salário igual para trabalho igual – e exigiram o fim da discriminação salarial, igualdade real e tolerância zero para a violência de gênero. 38 anos após a conquista constitucional, as mulheres suíças ainda ganham em média 19,6% a menos que os homens na mesma função. A manifestação foi convocada pelas entidades de mulheres, Confederação Suíça dos Sindicatos (USS), diversificados partidos e organizações populares, e reedita a greve das mulheres de 1991, quando se completavam dez anos de vigência. Este 14 de Julho “entra na história recente da Suíça como sua maior manifestação política”, assinalou a central sindical.

Em Zurique, 70 mil. Berna, 50 mil. Lausane, 40 mil. Basileia, 40 mil. Genebra, 12 mil. Friburgo e Sion, 5 mil cada. E mais uma infinidade de atos, passeatas, performances e até desfiles de carrinhos de bebê, que se estenderam a cada recanto do país.

Na capital, Berna, deputados interromperam por 15 minutos a sessão para irem saudar as participantes que passavam junto ao parlamento.

“Mais salário, mais tempo, mais respeito”, exigiram as mulheres em todos os cantões da Suíça. O momento a partir do qual, na jornada profissional diária, as mulheres passam a trabalhar de graça, em relação aos homens de mesma função, em decorrência do salário 19,6% menor – 15h24 -, foi marcado em todos os atos no país inteiro. Como registrou o jornal Tribune de Genève, o violeta tomou conta das ruas.

A inclusão do princípio da igualdade na constituição suíça foi aprovada com maioria de 60% e os legisladores ainda se deram ao trabalho de explicitar na carta magna que “homens e mulheres têm direito a pagamento igual para trabalho de igual valor”. Quase quatro décadas depois, a luta ainda está inacabada.

O princípio do “salário igual para trabalho igual” só virou lei em 1996, cinco anos depois da primeira ‘greve feminina’ com 500 mil mulheres nas ruas. Revisão da lei de igualdade de salário no parlamento no ano passado diluiu a proposta de tornar obrigatório o respeito ao preceito constitucional (e, portanto, passível de sanções), limitando-se a determinar que as empresas com mais de 100 empregados notifiquem a situação existente.

Agora está sendo discutido sua extensão às empresas com mais de 50 funcionários, questão que estimulou a mobilização. Outra motivação foi o projeto de licença-paternidade em debate, de quatro semanas; atualmente, só as mães têm direito.

De acordo com pesquisa do grupo de mídia Tamedia, quase dois terços da população suíça, 63,5%, apoiam a greve. É como disse uma das organizadoras do protesto em Zurique, Tâmara Knezevic: “nos demos conta de que a igualdade é um direito constitucional que não existe de maneira real, material, efetiva, para as mulheres”.

A co-presidente do secretariado das Mulheres do Partido Socialista suíço, Natasha Wey, em entrevista ao jornal Tribune de Genève, afirmou que não faltam razões para as mulheres suíças se manifestarem: “diferença de salários, mais mulheres em empregos que pagam salários mais baixos, assédio sexual e violência de gênero”, bem como a dupla jornada e o principal fardo no cuidado de crianças e idosos. Ela também sublinhou uma questão que muitas vezes passa despercebida: as aposentadorias recebidas pelas mulheres são até 37% menores.

Três gerações de mulheres se uniram nas ruas e nas reivindicações e um número expressivo de homens apoiou os atos públicos. “As mulheres mudam a sociedade. Agora”, registrava uma grande faixa na Bundesplatz na capital, Berna. Outra faixa brincava com a dupla jornada: “normalmente nós arrumamos, hoje nós bagunçamos”. A catedral de Lausane – cujo sino foi acionado pela primeira vez em 614 anos por uma mulher para marcar o início da ##Grevedesfemmes2019 #14juin – foi iluminada em violeta. Um símbolo feminista foi projetado na fachada do maior prédio da Suíça, o Roche Tower, em Basileia.

A confederação patronal considerou a greve abusiva, embora algumas empresas hajam liberado o dia àquelas que pediram, enquanto em outros locais de trabalho foram realizadas pausas largas ou homens cobriram o trabalho de suas colegas para que pudessem participar dos atos.

“COMPROMISSO”

A escritora Silvia Ricci Lempen, que se encantou com a inventividade e graça mostradas na greve, disse que o slogan que mais a tocou foi “se você tem 40 anos e não é feminista…. você perdeu sua vida” – e lembrou de uma recomendação do [ou talvez atribuída ao] ex-presidente francês Nicolas Sarkozy de que é preciso para ser bem sucedido conseguir um Rolex de ouro “ao mais tardar aos 50”. Ela também se impressionou com “a juventude da maioria das participantes”, que redescobria, como ela mesma fizera há 25 anos, “a emoção incomparável do compromisso feminino coletivo, não contra os homens, mas contra o patriarcado”.

As mulheres suíças devem ter seus motivos para a prevenção contra o “patriarcado”: afinal, elas só conquistaram o direito de voto em 1971 e isso, em nível federal. Nos cantões, o direito de voto para as mulheres só se completou em 1990, por intervenção da Suprema Corte.

Os avanços demoraram um pouco mais. A descriminalização do aborto foi aprovada em 2002. A licença-maternidade remunerada de 14 semanas, três anos depois. A falta de creches continua penalizando as mulheres e as que existem são caras.

A dirigente sindical Marie-Hélène Thies, que dedicou a greve à neta, Nella, de cinco anos, relembrou como era a vida das mulheres quando se casou em 1981. Para abrir uma conta bancária precisou do consentimento do marido, que também assinou a compra de uma casa comum. Quando lutou para que os trabalhos de casa fossem supervisionados na própria escola, foi um escândalo: “que mãe desnaturada, que não quer cuidar de seus filhos”. Debaixo dessa ponte, muita água rolou.

HIATO

Embora tenha diminuído quase um terço desde a primeira greve, a de 1991, o hiato da discriminação – as diferenças que não podem ser explicadas por cargo ou função – piorou desde 2000.

Seis em cada dez mulheres na Suíça têm emprego de meio período, comparado com 1,8 para cada dez homens: o que conduz a aposentadorias mais baixas e menos oportunidades de treinamento e carreira.

No parlamento, as mulheres são 31,7% dos mandatos, contra 47,4% na Espanha, por exemplo. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) colocou a Suíça nos últimos lugares na Europa e Ásia Central quando trata da diferença salarial entre homens e mulheres em cargos de alto escalão. Apenas a Itália, o Cazaquistão e Israel foram considerados piores.

A violência contra mulheres, embora numa escala incomparavelmente menos drástica em relação aos padrões latino-americanos, também paga seu triste pedágio. Conforme Wey, a cada duas semanas uma mulher é morta por seu parceiro ou ex-parceiro.

Mesmo sendo um país rico, com renda per capita de US$ 82.411 segundo o FMI, a desigualdade persiste. Como assinalou Wey em entrevista ao El País, a riqueza de um país “também está relacionada com que as mulheres a repartam, que a vejam em seus salários e patrimônio”.

Outra característica da ‘greve geral feminina’ suíça foi a descentralização sob múltiplas formas, mas que convergiram às 11 horas da manhã na leitura do manifesto das mulheres, e às 15h27 no chamado simbólico à greve pelo salário igual para trabalho igual. Como em Delémont, na Place de la Gare, onde nesse momento elevou-se um enorme clamor, com assobios e também conchas e outros utensílios de cozinha. A causa das mulheres imigrantes também foi lembrada nos atos.

As sexistas também deram uma força. Em Zurique, desfilaram com “uma gigantesca reprodução de um clitóris” – a descrição é de um jornal local – puxado em um carrinho, e empinaram balões-tampões de péssimo gosto. Em Lausane, ativistas passaram a noite, reunidas em volta de uma fogueira numa das principais praças da cidade, e queimaram sutiãs, gravatas e outros apetrechos. Faz parte.

Como uma das associações femininas que co-organizaram o protesto de sexta-feira escreveu em um manifesto, “nós mulheres somos impressionantes, mesmo ganhando menos pelo mesmo trabalho, mesmo deixadas para trás na hora das promoções, mesmo dificilmente representadas no nível executivo e mesmo tipicamente sendo mal pagas”. Para a central sindical suíça USS, este 14 de junho é “o início de um movimento pela igualdade ainda mais amplo, melhor interconectado e, portanto, mais forte”. A resistência, no governo, à aprovação de qualquer modalidade remunerada de licença-paternidade continua forte.