Um dos episódios mais graves da ditadura militar brasileira, a operação que exterminou membros do PCdoB na Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 1970,  poderá ter novos e importantes desdobramentos no âmbito da Justiça a partir da acusação de oito militares e um médico pelo Ministério Público Federal, conforme noticiou a Agência Pública nesta segunda-feira (18).

De acordo com a reportagem, após nove anos de investigações, a maior já feita sobre o assunto, a Força Tarefa Araguaia, do MPF, demonstrou haver provas para a responsabilização de oito oficiais e um médico pela execução e ocultação dos corpos de 17 guerrilheiros do PCdoB. Além disso, aponta que dos 68 desaparecidos, 41 foram executados, 32 deles depois de passarem por prisões nas bases militares na região do Araguaia durante a operação Marajoara, realizada o final de 1973 e de 1974. A acusação é mais uma prova de que ao contrário do que defendem os militares e seus apoiadores, as mortes ocorridas não resultaram de um confronto, mas de execuções.

Entre os acusados listados pelo MPF estão Sebastião Curió Rodrigues de Moura, coronel da reserva conhecido como “Major Curió” e que usava o codinome “Dr. Luchini”,  denunciado em sete casos e acusado por 14 homicídios, e Lício Ribeiro Maciel, o “Dr. Asdrubal”, que acumula três denúncias e é acusado por cinco mortes.

Constam ainda na denúncia José Brant Teixeira, o “Dr. Cesar”;  José Conegundes do Nascimento, o “Dr. Cid”; Celso Seixas Marques Ferreira, o “Dr. Brito”, e João Lucena Leal, o “Dr. João”, além de Pedro Cabral, o ex-sargento João Santa Cruz do Nascimento e o médico Manoel Fabiano Cardoso da Costa.

Busca por justiça

A luta para encontrar os corpos dos guerrilheiros assassinados e julgar os responsáveis tem sido intensa desde a redemocratização, com a participação do PCdoB e dos familiares. Porém, os resultados têm sido muito aquém do necessário para esclarecer e punir os crimes, seja pelas limitações impostas pela Lei de Anistia, seja falta de vontade e iniciativa para enfrentar a realidade daquele macabro período.

Para piorar este quadro, o processo de busca pela verdade com relação aos mortos e desaparecidos sofreu mais um revés a partir do golpe de 2016, quando, ao assumir a presidência, Michel Temer estancou ações da União com esse objetivo. E Jair Bolsonaro, defensor da ditadura e dos métodos utilizados pelos militares contra os que se insurgiam contra o regime, certamente não contribuirá com o esclarecimento desses fatos.

Não por acaso, o Brasil é um dos países mais atrasados da América Latina no que diz respeito aos crimes da ditadura e nunca teve um processo de justiça de transição capaz de contar a história verdadeira e criar mecanismos de punição e de valorização dos direitos humanos — especialmente no âmbito das Forças Armadas e das polícias que herdaram os métodos daquele período — de maneira a criar anteparos contra iniciativas futuras dessa natureza.

Investigações e iniciativas de familiares e entidades e ações pontuais no âmbito do Estado brasileiro — como as Caravanas da Anistia, a Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos e a Comissão da Verdade e seus desdobramentos locais — bem como no campo jurídico, buscam punir, reparar e reconstruir a memória, mas ainda esbarram em muitos desses obstáculos.

Sentença da CIDH

A acusação do MPF contra os oito militares e o médico, encaminhada ao Judiciário, procura dar prosseguimento à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), de 2010, no caso Gomes Lund versus Brasil (Guerrilha do Araguaia), que determinou a responsabilidade do Estado brasileiro devido à detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre militantes do PCdoB e camponeses da região.

A sentença da CIDH destacava, entre outras questões, que “os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de lesa-humanidade. Como tal merecem tratamento diferenciado, isto é, seu julgamento não pode ser obstado pelo decurso do tempo, como a prescrição, ou por dispositivos normativos de anistia”.

Embora o Brasil esteja submetido à jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos desde 1998, a Lei da Anistia segue sendo um entrave. Nas diferentes instâncias, a lei tem sido usada para absolver ou anular sentenças relacionadas aos crimes da ditadura.

Em 2010, o STF decidiu pela validade da Lei de Anistia após julgar ação proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que questionava se a lei deveria valer para casos de tortura e crimes comuns, cometidos por civis e agentes do Estado na ditadura.

Já no início deste ano, no âmbito da denúncia envolvendo o assassinato do então deputado federal Rubens Paiva, o MPF apresentou recurso ao STF solicitando que a Corte reavalie a compatibilidade da Lei da Anistia com a Constituição brasileira.

“As sucessivas condenações sofridas pelo Brasil e por outros países na Corte Interamericana de Direitos Humanos em função da incompatibilidade existente entre suas Leis de Anistia e a persecução de crimes de lesa-humanidade, que, conforme a Ordem jurídica internacional, são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, demonstram a urgência de a Suprema Corte revisitar o tema, que diz respeito diretamente à incompatibilidade entre a Lei de Anistia e o bloco de constitucionalidade do ordenamento jurídico brasileiro”, apontou a subprocuradora-geral da República, Samantha Dobrowolski, ao apresentar o recurso junto ao Supremo.

Em junho deste ano, ocorreu a primeira a condenação de um réu que atuou na repressão: a do delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carlinhos Metralha” ou “Carteira Preta”, acusado pelo Ministério Público Federal pelo crime de sequestro qualificado do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte. A decisão pode sinalizar uma mudança importante na aplicação da lei para possibilitar a punição dos culpados pelos crimes da ditadura.

Ainda em 2003, a juíza federal Solange Salgado determinou que o Estado brasileiro bucasse e entregasse os corpos às famílias. Mas, a grande maioria continua perdida. Ao todo, existem 27 ossadas sob tutela do Estado aguardando a análise necessária para que seja possível identificar de quem são.

 

Por Priscila Lobregatte

Com agências