Medea: “se cúpula fosse democrática, Assange teria lugar de honra”
A fundadora da entidade pacifista norte-americana Code Pink e escritora, Medea Benjamin, e seu colaborador, o jornalista Nicolas Davies, questionaram, em artigo que recebeu destaque no Common Dreams, a assim chamada ‘cúpula pela democracia’ do governo Biden, que se encerra na sexta-feira (10).
“Assim como o povo da Venezuela não elegeu ou indicou Juan Guaidó como seu presidente, o povo do mundo não elegeu ou indicou os Estados Unidos como presidente ou líder de todos os terráqueos”, observam com fina ironia Medea e Davies.
Eles acrescentaram que o “maior valor” de tal conclave é ser uma oportunidade para pessoas e governos ao redor do mundo expressem suas preocupações sobre “as falhas na democracia dos EUA e a forma não democrática como os Estados Unidos lidam com o resto do mundo”.
“Se esta fosse uma cúpula de democracia real, denunciantes como Daniel Hale , Chelsea Manning e Julian Assange , que arriscaram tanto para expor a realidade dos crimes de guerra dos EUA para o mundo, seriam convidados de honra na cúpula, em vez de prisioneiros políticos nos gulag norte-americanos”, acrescentam.
Os autores sugeriram 10 pontos a serem abordados. Para começar, os dois polemizam com a Casa Branca e sua pretensão de os EUA serem líder da democracia global “no momento em que sua própria democracia já profundamente falha está desmoronando, como evidenciado pelo chocante ataque de 6 de janeiro ao Capitólio”.
Sobre a falta de credenciais democráticas dos EUA, Medea e Davies assinalam que, além do problema sistêmico de “um duopólio que mantém outros partidos políticos bloqueados e da influência obscena do dinheiro na política”, o sistema eleitoral dos EUA está sendo “ainda mais corroído pela tendência crescente de contestar resultados eleitorais confiáveis e esforços generalizados para suprimir a participação dos eleitores (19 estados promulgaram 33 leis que tornam mais difícil para os cidadãos votar)”.
Eles apontam, ainda, que uma ampla classificação global de países por várias medidas de democracia “coloca os EUA em 33º”, enquanto a Freedom House, financiada pelo governo dos EUA, classifica os EUA em 61º em termos de liberdade política e civil, “no mesmo nível que a Mongólia, Panamá e Romênia”.
Medea e Davies advertem que a agenda tácita dos EUA nesta ‘cúpula’ é “demonizar e isolar a China e a Rússia”.
“Mas se concordarmos que as democracias devem ser julgadas pela forma como tratam seu povo, então por que o Congresso dos EUA não aprovou um projeto de lei para fornecer serviços básicos como saúde, creche, habitação e educação, que são garantidos à maioria dos cidadãos chineses por grátis ou com custo mínimo?”, questionam.
Eles também destacam o extraordinário sucesso da China no alívio da pobreza. “Como disse o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres , ‘cada vez que visito a China, fico surpreso com a velocidade da mudança e do progresso. Você criou uma das economias mais dinâmicas do mundo, enquanto ajudava mais de 800 milhões de pessoas a sair da pobreza – a maior conquista antipobreza da história’”.
A China também ultrapassou em muito os EUA no tratamento da pandemia, eles acrescentam. “Não é de admirar que um relatório da Universidade de Harvard descobrisse que mais de 90% dos chineses gostam de seu governo”.
Alguém poderia pensar – sublinham – “que as extraordinárias realizações domésticas da China tornariam o governo Biden um pouco mais humilde quanto ao seu conceito de democracia ‘tamanho único’”.
Medea e Davies ressaltaram ainda que a crise climática e a pandemia são “um alerta para a cooperação global”, denunciando que a cúpula de Biden foi concebida “para exacerbar as divisões”.
Os embaixadores da China e da Rússia em Washington “acusaram publicamente os Estados Unidos de encenar a cúpula para fomentar o confronto ideológico e dividir o mundo em campos hostis, enquanto a China realizou um Fórum Democrático Internacional com 120 países participantes no fim de semana antes da cúpula dos EUA”.
“Convidar o governo de Taiwan para a cúpula dos Estados Unidos corrói ainda mais o Comunicado de Xangai de 1972, no qual os Estados Unidos reconheceram a política de Uma China e concordaram em reduzir as instalações militares em Taiwan”, adverte o artigo.
Medea e Davies também sublinharam o convite de Biden ao “governo anti-russo corrupto instalado pelo golpe de 2014 apoiado pelos EUA na Ucrânia, que supostamente tem metade de suas forças militares prontas para invadir as autodeclaradas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk no leste da Ucrânia, que declararam independência em resposta ao golpe de 2014”. Eles denunciam, ainda, que EUA e a OTAN “até agora apoiaram esta grande escalada de uma guerra civil que já matou 14.000 pessoas”.
“EUA e seus aliados ocidentais – os auto-ungidos líderes dos direitos humanos – simplesmente são os principais fornecedores de armas e treinamento para alguns dos ditadores mais cruéis do mundo”, denunciam os dois integrantes do Code Pink .
“Apesar de seu compromisso verbal com os direitos humanos, o governo Biden e o Congresso aprovaram recentemente um acordo de US$ 650 milhões com armas para a Arábia Saudita, em um momento em que este reino repressivo está bombardeando e matando de fome o povo do Iêmen”, registraram, também, sobre a hipocrisia de tais ‘defensores dos direitos’.
“Talvez alguém devesse informar a Biden que o direito de sobreviver é um direito humano básico” e que o direito à alimentação “é reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948”, enfatizaram Medea e Davies.
“Então, por que os EUA estão impondo sanções brutais a países da Venezuela à Coréia do Norte que estão causando inflação, escassez e desnutrição entre as crianças? O ex-relator especial da ONU Alfred de Zayas criticou os Estados Unidos por se engajarem em ‘guerra econômica’ e comparou suas sanções ilegais unilaterais aos cercos medievais”.
Como aponta o artigo, “nenhum país que propositalmente nega às crianças o direito à alimentação e as deixa com fome até a morte pode se considerar um campeão da democracia”.
Medea e Davies também repudiaram o fato de os EUA – após derrotados pelo Talibã e forçados à retirada do Afeganistão – estarem “agindo como um perdedor dolorido e renegando seus compromissos internacionais e humanitários básicos”.
Os Estados Unidos estão negando ao novo governo o acesso a bilhões de dólares em reservas de moeda estrangeira do Afeganistão mantidas em bancos americanos, causando um colapso no sistema bancário. Centenas de milhares de servidores públicos não foram pagos. A ONU – acrescentam – está alertando que milhões de afegãos correm o risco de morrer de fome neste inverno como resultado dessas medidas coercitivas dos Estados Unidos e seus aliados.
Medea e Davies registram, ainda, a dificuldade de Biden em encontrar países do Oriente Médio para convidar para a cúpula. “Os Estados Unidos gastaram 20 anos e US $ 8 trilhões tentando impor sua marca de democracia no Oriente Médio e no Afeganistão, então você pensaria que eles teriam alguns protegidos para mostrar”.
“Mas não. No final, eles só puderam concordar em convidar o estado de Israel, um regime de apartheid que impõe a supremacia judaica sobre todas as terras que ocupa, legalmente ou não. Constrangido por não ter nenhum Estado árabe presente, o governo Biden acrescentou o Iraque, cujo governo instável tem sido atormentado pela corrupção e divisões sectárias desde a invasão dos Estados Unidos em 2003”.
Democracia made in Guantánamo
“O que, por favor, diga, é democrático no gulag dos Estados Unidos na Baía de Guantánamo?”, questiona o artigo, que lembra que o governo norte-americano abriu o centro de detenção de Guantánamo em janeiro de 2002 como forma de contornar o estado de direito, para sequestrar, torturar e manter presas pessoas sem julgamento após o 11 de setembro de 2001.
“No entanto, este país que prendeu centenas de homens inocentes sem o devido processo por até 20 anos ainda reivindica a autoridade para julgar os processos legais de outros países, em particular sobre os esforços da China para lidar com o radicalismo islâmico e o terrorismo entre sua minoria uigur”.
Com as recentes investigações sobre o bombardeio americano de março de 2019 na Síria, que deixou 70 civis mortos, e o ataque de drones que matou uma família afegã de dez pessoas em agosto de 2021, a verdade sobre as massivas baixas de civis em ataques de drones e ataques aéreos dos EUA está emergindo gradualmente, e também como esses crimes de guerra perpetuaram e alimentaram a “guerra ao terror”, em vez de vencê-la ou encerrá-la, apontam.
Medea e Davies também registraram como no caso da Venezuela, Washington convidou um ‘presidente’ imaginário nomeado pelos EUA, em vez do governo real do país. Segundo pesquisa de opinião recente, Guaidó obteve “a maior desaprovação pública de qualquer figura da oposição na Venezuela com 83%, e o menor índice de aprovação com 13%”. E o “ministro interino das Relações Exteriores” de Guaidó recentemente renunciou, acusando-o de “corrupção”.
À guisa de conclusão, os pacifistas norte-americanos lembraram que, quando os Estados Unidos emergiram da II Guerra Mundial como a potência econômica e militar mais forte do mundo, seus líderes tiveram a sabedoria de não reivindicar tal papel. “Em vez disso, eles reuniram o mundo inteiro para formar as Nações Unidas, com base nos princípios da igualdade soberana, não interferência nos assuntos internos um do outro, um compromisso universal com a resolução pacífica de disputas e uma proibição da ameaça ou uso da força contra cada um de outros”.
No pós-Guerra Fria – acrescentaram – “os líderes dos EUA sedentos de poder passaram a ver a Carta da ONU e o Estado de Direito Internacional como obstáculos para suas ambições insaciáveis”. “Pleitearam domínio global universal, contando com a ameaça e o uso da força que a Carta da ONU proíbe. Os resultados foram catastróficos para milhões de pessoas em muitos países, incluindo americanos”.
Para Medea e Davies, os convidados por Washington deveriam usar a ocasião “para tentar persuadir seu amigo armado a reconhecer que sua tentativa de obter um poder global unilateral falhou, e que deveria em vez disso, assumir um compromisso real com a paz, a cooperação e a democracia internacional de acordo com a ordem baseada em regras da Carta das Nações Unidas”.