Multidão ocupou Washington na "Marcha por Nossas Vidas"

Dezenas de milhares de pessoas se reuniram no National Mall em Washington, DC, e em todos os EUA no sábado (11), para exigir a proteção das crianças e medidas efetivas de desarmamento e controle de armas, em resposta ao massacre de 19 estudantes e 2 professores em uma escola primária em Uvalde, Texas em 24 de maio, antecedido em dez dias pela chacina, por um atirador racista, de 10 negros em um supermercado do estado de Nova York. De costa a costa, foram mais de 450 protestos.

“Basta”, disse a prefeita da capital dos EUA, Washington, Muriel Bowser, na manifestação antiarmas. “Falo como prefeita, mãe, e falo por milhões de americanos e prefeitos da América que estão exigindo que o Congresso faça seu trabalho. E seu trabalho é nos proteger, proteger nossos filhos da violência armada”.

A Marcha Por Nossas Vidas foi formada por sobreviventes do massacre de 2018 em uma escola da Flórida, com centralidade em exigir leis contra a insana política, patrocinada pelo Cartel do Rifle, a NRA, de liberalização praticamente total das armas e munição – inclusive fuzis de assalto AR-15 e assemelhados –, cuja base histórica está na caça aos escravos e no extermínio de índios.

“Se nosso governo não pode fazer nada para impedir que 19 crianças sejam mortas e massacradas em sua própria escola e decapitadas, é hora de mudar quem está no governo”, disse David Hogg, sobrevivente da chacina de Parkland. A multidão o acompanhou na conclamação a “vote-os para fora” –em referência à bancada da bala, sempre muito recompensada pela RNA.

A entidade exige a proibição de armas de assalto, verificações universais de antecedentes para quem tenta comprar armas e um sistema nacional de licenciamento, que registraria todos os proprietários de armas.

Na quarta-feira, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou um conjunto abrangente de medidas de controle das armas sem a menor chance de passar no Senado, com a Bancada da Bala firme na manutenção do status quo, em nome de se opor a “infringir a Segunda Emenda da Constituição dos EUA” (direito de portar armas).

Um acordo bipartidário para uma modesta reforma na legislação sobre armas anunciado no domingo por 20 senadores foi recebida por opositores como “pateticamente fraco”, segundo o portal Common Dreams, por não incluir proibição à compra de armas semiautomáticas ou de magazines de munição de alta capacidade, nem impor verificações de antecedentes universais, inclusive nas vendas pela internet e feiras de armas.

“Este projeto é uma piada! Isso faz parecer que a saúde mental é a causa da violência armada. São as malditas armas! Financiamento para a segurança escolar? As malditas armas! Façam melhor!! As crianças estão morrendo”, tuitou Ryan Shead, um veterano com deficiência, defensor do controle de armas.

Se não há como avançar em conter a ‘doença americana’ – a matança de pessoas a esmo, inclusive crianças, em um frenesi de ódio e sangue – sem acabar com o armamento indiscriminado de pessoas com armas de guerra, compradas de supermercado à internet, para muitos observadores da sociedade americana isso só não basta, a questão é bem mais complexa.

São as armas, mas não são só as armas, observou certa vez o cineasta Michael Moore, diretor de Tiros em Columbine, sobre um massacre em uma escola que marcou o país em 1999. Ele lembrou que no vizinho Canadá a posse de armas é enorme, mas não há tais chacinas.

A apresentadora do programa Democracy Now, Amy Goodman, recentemente, ao abordar Uvalde, afirmou que os morticínios com armas, que só acontecem nos Estados Unidos, “são o auge do excepcionalismo americano”.

O premiado jornalista Chris Hedge assinalou, sim, o lobby de armas e os fabricantes de armas alimentam a violência com armas de assalto facilmente disponíveis, mas por trás disso está o fato de que a América “fetichiza armas”.

“Esse fetiche se intensificou entre os homens brancos da classe trabalhadora, que viram tudo escapar de seu alcance: estabilidade econômica, um senso de lugar na sociedade, esperança no futuro e empoderamento político”.

Ele acrescenta que esse medo de perder a arma “é o golpe final na autoestima e na dignidade, uma rendição às forças econômicas e políticas que destruíram suas vidas”. “Eles se agarram à arma como uma ideia, uma crença de que com ela são fortes, inatacáveis e independentes”. As areias movediças da demografia, com pessoas brancas projetadas para se tornar uma minoria nos EUA até 2045, intensifica esse desejo primordial, eles diriam necessidade, de possuir uma arma.

“Os brancos construíram sua supremacia nos Estados Unidos e globalmente com violência”, registra Hedges. “Eles massacraram os nativos americanos e roubaram suas terras. Eles sequestraram africanos, os enviaram como carga para as Américas e depois escravizaram, lincharam, prenderam e empobreceram os negros por gerações”.

“Em nosso DNA”

Citando a historiadora Roxanne Dunbar-Ortiz , o jornalista sublinha que a Segunda Emenda “foi projetada para solidificar os direitos, muitas vezes exigidos pela lei estadual, dos brancos de portar armas. Os homens brancos do sul não eram apenas obrigados a possuir armas, mas também a servir em patrulhas de escravos. Essas armas foram usadas para exterminar a população indígena, caçar escravizados que escaparam da escravidão e esmagar violentamente revoltas de escravos, greves e outras revoltas de grupos oprimidos”.

A violência do vigilante – aponta – “está ligada ao nosso DNA”.

Hedges se refere, ainda, ao “nosso desejo nacional por sacrifício de sangue” como “metáfora estruturante da experiência americana”, uma crença na “regeneração através da violência”, que o historiador Richard Slotkin apontou.

O sacrifício de sangue, escreveu Slotkin “é celebrado como a mais alta forma de bem. Às vezes requer o sangue dos heróis, mas na maioria das vezes requer o sangue dos inimigos”.

Hedges enfatiza que tal sacrifício de sangue, “seja em casa ou em guerras estrangeiras, é racializado”. “Os EUA massacraram milhões de habitantes do mundo, incluindo mulheres e crianças, na Coréia, Vietnã, Afeganistão, Somália, Iraque, Síria e Líbia, bem como em inúmeras guerras por procuração, a mais recente na Ucrânia, para onde o governo Biden enviará outros US$ 700 milhões em armas para complementar US$ 54 bilhões em ajuda militar e humanitária”.

“Quando a mitologia nacional inculca em uma população que ela tem o direito divino de matar outros para expurgar a terra do mal, como essa mitologia não pode ser ingerida por indivíduos ingênuos e alienados? Mate-os no exterior. Mate-os em casa. Quanto mais o império se deteriora, mais cresce o ímpeto de matar. A violência, em desespero, torna-se o único caminho para a salvação”, adverte o jornalista.

Concluindo, para Hedges, a América tem “duas opções”. “Ele pode reintegrar os despossuídos de volta à sociedade por meio de reformas radicais do tipo New Deal, ou pode deixar sua subclasse chafurdar nas toxinas da pobreza, ódio e ressentimento, alimentando os sacrifícios de sangue que nos afligem”. “Esta escolha, eu temo, já foi feita”.