Contar a história de Júlia Santiago, pernambucana, comunista, ativista política e sindical e primeira vereadora eleita do Recife é uma forma de homenagear as mulheres, especialmente, as que lutaram e ainda lutam pela emancipação feminina e pelo respeito aos direitos fundamentais das pessoas. Júlia nasceu em novembro de 1917 e para marcar seu centenário de nascimento e os 70 anos do seu mandato legislativo, as Secretarias da Mulher do Recife e de Pernambuco, com apoio da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), realizarão, entre os dias 8 e 10 de novembro, três eventos que buscam mostrar quem foi essa operária da luta.

A programação começa nesta quarta-feira (8) com sessão solene na Câmara Municipal do Recife, a partir das 18h. Na quinta-feira (9) e na sexta-feira (10), a saga de Júlia Santiago será contada em música e vídeo. Tudo acontecerá no Teatro de Santa Isabel, no Recife, a partir das 20h. Primeiramente, será exibido o documentário ‘Júlia, uma operária da luta’ seguida da Ópera ‘Júlia, a tecelã’, a cargo da Academia de Ópera e Repertório da UFPE e da Sinfonieta UFPE.

A ópera abordará, de forma lírica, episódios da vida de Júlia, sua chegada ao Recife, o trabalho nas fábricas e tecelagens, seu papel de liderança, engajamen­to sociopolítico e a eleição como primeira vereadora do Recife. A obra foi composta especialmente para as comemorações do centenário dessa guerreira do século 20.

O espetáculo musical terá a direção artística e regência do maestro Wendell Kattle, regente na Academia do Teatro Mariinsky (São Petersburgo), maestro convidado do Tea­tro “Helikon-Ópera” (Moscou) e, desde junho de 2016, professor de Regência do Departa­mento de Música do Centro de Artes e Comu­nicação da UFPE, onde criou os projetos de extensão “Sinfonieta UFPE” e “Academia de Ópera e Repertório da UFPE”.

O documentário mostra a vida de Júlia em seu contexto histórico, inserindo fatores políticos e sociais que contribuíram para transformar a consciência e vida de uma mulher nascida e criada em uma região dominada pelas desigualdades sociais, econômicas e intrarregionais existentes na primeira metade do século 20 no Brasil. Roteiro e supervisão de Guido Bianchi, direção de Raoni Moreno, além dos atores Hilda Torres e José Neto. A entrada é gratuita.

Atualidade da luta

Para Cida Pedrosa, secretária da Mulher do Recife, Júlia Santiago foi uma mulher à frente de seu tempo e legítima representante das mulheres que se envolveram na luta sindical e política na década de 1940. “Essa foi uma época em que o feminismo estava muito ligado ao empoderamento socioeconômico das mulheres e, principalmente, nos espaços sindicais e da luta política. Afinal, nós tínhamos conquistado o direito de votar há pouco tempo. Além disso, Júlia se tornou operária em um período muito profícuo da luta sindical brasileira em que, em 1943, ocorreu o advento da CLT, e ela foi uma grande lutadora pela sua implantação, particularmente, no caso do tempo de serviço diferente para aposentadoria de homens e mulheres, luta essa muito atual já que estamos em plena luta para barrar uma reforma previdenciária cruel”.

Cida Pedrosa destaca ainda a atualidade da luta da ex-operária. “Nossa Júlia é um exemplo a ser seguido no momento em que foi aprovada pelo Congresso Nacional uma reforma trabalhista que detonou nossa CLT e nossos direitos trabalhistas, que vai trazer sofrimentos, especialmente, para as mulheres. Vermos o direito de proteção à gravidez atingido da forma colocada pela reforma trabalhista é um absurdo. As mulheres hoje não poderão mais contar com a atuação do próprio Ministério do Trabalho dizendo quais profissões são insalubres, quem vai dizer os locais de insalubridade são as empresas, ou seja, acaba-se a mediação do Estado e a mulher fica à disposição da iniciativa privada”.

“Do ponto de vista da participação política, Júlia foi uma mulher adiante do seu tempo. Ela foi vereadora do Recife na década de 1940 e só em 1972 o Recife veio a ter outra vereadora, e hoje, contados 70 anos de seu primeiro mandato, nós só tivemos 16 mulheres na Câmara do Recife. Então, urge que as Câmaras e todos os Parlamentos brasileiros sejam ocupados pelas mulheres”.

Operária da luta

Júlia Santiago veio ao mundo e viveu até os 10 anos de idade no Engenho Penedo, situado no município de São Lourenço da Mata, na Região Metropolitana do Recife. Faleceu em 1989, aos 72 anos, deixando para homens e mulheres seu legado de mais de 50 anos de atuação pioneira contra a exploração burguesa e a desigualdade de gênero, e em defesa dos direitos dos/as trabalhadores/as, além do seu exemplo de luta, coragem e inconformismo diante das injustiças sociais. Em sua trajetória de vida acumulou experiências transformadoras, a partir do despertar de sua consciência política e social em meio a diversas frentes de batalhas pessoais e militante.

Alfabetizou-se em casa e depois da separação dos pais, mudou-se com a mãe e seis irmãos para o Recife, onde começou a trabalhar como empregada doméstica. Em seguida, ela e a irmã Noêmia forjaram documentos e conseguiram se empregar na fábrica de estopa da família Perilo, no bairro do Zumbi. Pouco tempo depois, conseguiu trabalho no Cotonifício Othon Bezerra de Melo, onde começou sua trajetória sindical e política ainda na adolescência.

Articulada e vanguardista, Júlia ajudou a fundar o Sindicato da Fiação e Tecelagem de Pernambuco. Também ingressou no Círculo Operário Católico do Recife e militou nas fileiras do Partido Comunista do Brasil, que na época se encontrava na clandestinidade. Isso, na década de 1930. Em 1947, elegeu-se vereadora do Recife pelo Partido Social Progressista, sendo a mais votada, apesar de campanha eleitoral realizada em apenas 15 dias. Vanguardista, defendeu tempos de serviço diferentes para a aposentadoria de homens e mulheres, já que as mulheres tinham, como ainda têm, dupla jornada de trabalho com os serviços domésticos.

Por conta de suas posições políticas, Júlia foi presa várias vezes. Em 1971, no auge da ditadura militar no Brasil, ela e a sobrinha Maurinete ficaram seis meses sem receber salário em represália ao ativismo da ex-sindicalista, encarregada de arrecadar fundos para os companheiros comunistas que se encontravam na clandestinidade. Nesse período, foi levada várias vezes para interrogatórios no Quartel do Derby, mas nunca esmoreceu.

Do Recife, por Audicéa Rodrigues