Jose Carlos Ruy: Palmares, a “Tróia negra”
Esse apelido, “Tróia negra”, foi dado a Palmares pelo historiador Ernesto Ennes, autor do importante livro que reúne os documentos existentes na Torre do Tombo, em Lisboa, sobre a resistência negra no século 17.
Por José Carlos Ruy*
Faz 325 anos que, em 20 de novembro de 1695, o líder de Palmares, Zumbi, foi morto na Serra Dois Irmãos, à beira do rio Paraíba, no território que hoje é do estado de Alagoas.
Há um livro, em Brasília, com páginas de aço, guardado no Panteão da Pátria Tancredo Neves, intitulado “Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria“. Nele estão relacionados os nomes dos personagens que o Brasil reconhece oficialmente como heróis do povo. Essa lista nobilitante inclui, desde 21 de março de 1997, o nome de Zumbi dos Palmares, o maior líder da luta escrava pela liberdade no Brasil. Desde 1978 o 20 de novembro é comemorado pelo movimento negro como Dia da Consciência Negra, que desde 2003 faz parte do calendário escolar e, em 2011, foi oficializada como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, sendo feriado em centenas de municípios e vários estados brasileiros.
Palmares foi uma velha pedra no sapato das autoridades coloniais no Brasil. Seu embrião já devia existir na serra da Barriga no final do século 16: em 1597 o padre Pero Lopes dizia que havia negros aquilombados ali. Em 1694, Caetano de Melo e Castro, governador de Pernambuco, escreveu ao rei dizendo que há “cento e tantos anos” os negros se refugiavam naquela região. Seu cálculo estava certo – Palmares existiu como um Estado livre dentro do território colonial brasileiro, por mais de cem anos, desde o final do século 16 até mais ou menos 1716, quando seus últimos traços foram apagados pela repressão escravista,
Um documento oficial escrito por volta de 1680 dá uma ideia da extensão da ameaça representada pelo grande quilombo, décadas depois da expulsão dos holandeses que haviam ocupado Pernambuco e boa parte do Nordeste (1630-1654): “Restituídas as Capitanias de Pernambuco ao domínio de Sua Alteza, livres já dos inimigos que de fora as vieram conquistar; sendo poderosas as nossas armas para sacudir os inimigos, que tantos anos nos oprimiu; nunca foram eficazes para destruir o contrário, que das portas adentro nos infestou; não sendo menos os danos deste do que tinham sido as hostilidades daqueles”.
Essa comparação entre a ameaça externa e a “das portas adentro” é comum em textos da época. Os inimigos de fora eram os holandeses que ocuparam Pernambuco e o litoral do Nordeste. A desorganização social e econômica consequente à ocupação holandesa levou ao crescimento inaudito dos quilombos, alimentado pelos escravos que fugiam dos engenhos.
Até 1630, a população de Palmares devia ser de 10 mil moradores. Nos anos seguintes aumentou, e os historiadores falam que teria entre 20 a 25 mil habitantes na década de 1660. Francisco de Brito Freire, que governou Pernambuco entre 1661 e 1664, falou em 30 mil moradores.
Era um número respeitável para a época. A cidade de Salvador, a capital da Colônia, tinha 8 mil moradores brancos e alguns milhares de índios e negros no começo do século 17. O termo da vila de Salvador (isto é, a cidade e seus arredores) tinha 12 mil brancos, 8 mil índios aldeados e uns 4 mil negros, diz o historiador Thales de Azevedo (“Povoamento da cidade do Salvador“. Salvador, Editora Itapuã, 1969).
Local de refúgio para os escravos dos engenhos vizinhos, Palmares mantinha o sul de Pernambuco em uma intranquilidade permanente. Os moradores reclamavam que os atacantes agiam “diariamente”, e “levavam tudo o que podiam” dos engenhos e povoações. Depois da expulsão dos holandeses, quando as incursões portuguesas se tornaram mais constantes, os ataques dos quilombolas alcançaram as vilas de Porto Calvo, Alagoas (atual Maceió), Serinhaém e Rio de São Francisco (atual Penedo). As comunicações terrestres entre Pernambuco e a Bahia chegaram a ficar impraticáveis devido aos ataques dos quilombolas. Os palmarinos buscavam pólvora, armas de fogo e prata e metais preciosos que podiam ser usados para a compra de munições.
Palmares mantinha um comércio florescente com as vilas vizinhas. Relações às quais os fazendeiros eram movidos pela imposição de manter a convivência pacífica, pelo desejo de obter os produtos (principalmente agrícolas) que Palmares produzia em abundância, ou mesmo para obter a permissão de deixar seu gado pastar nas férteis campinas dominadas pelos quilombolas.
Esse comércio com as vilas vizinhas era uma outra dimensão da ameaça representada por Palmares. Lá, a economia estava organizada para atender às necessidades de seus moradores, e não ao mercado externo, como era a economia colonial. Assim, dizem alguns historiadores, aquela era – apesar de todas as dificuldades decorrentes da guerra – uma economia de abundância, para os padrões coloniais, um exemplo que podia ser atraente para as populações pobres e para os escravos, mas que era nocivo para os interesses da economia colonial exportadora.
Os palmarinos estavam estabelecidos numa região de grande fertilidade, protegida pelo relevo montanhoso e pela floresta, numa área de 27 mil quilômetros quadrados (semelhante à de Alagoas) entre os atuais Pernambuco e Alagoas.
Suas povoações tornaram-se verdadeiras cidades depois de 1630. Macaco, a capital, tinha 1.500 casas e 8.000 habitantes; Amaro tinha 5.000; Subupira, um centro de treinamento militar, tinha 800 casas. Conhece-se cerca de 10 povoações principais, e um grande número de outras menores.
No início, as povoações eram autônomas, e dedicavam-se às atividades de subsistência. Todos trabalhavam, inclusive aqueles poucos que, presos nos latifúndios, se recusavam a aderir à república negra e eram, então, forçados a trabalhar para a coletividade.
Nas ações bélicas, prevaleciam as táticas de guerrilha, fustigando as tropas coloniais e desaparecendo na mata, evitando o combate direto.
Com o crescimento da população, as técnicas de defesa se sofisticaram. Um segmento militar especializado se organizou, embora nas épocas de guerra todo o povo fosse mobilizado, diz o historiador Clóvis Moura.
Com o tempo, os palmarinos criaram um governo centralizado, a partir das lembranças que mantinham das origens africanas, formado por um conselho de notáveis, onde a autonomia local de cada aldeia coexistia com o governo central. Sobreviveu até o final da década de 1670 quando o líder Ganga Zumba aceitou um tratado de paz proposto pelas autoridades coloniais, provocando a cisão entre os palmarinos. Zumbi, um jovem general que se destacara nas lutas em defesa da República negra, assumiu a liderança.
A defesa das vilas palmarinas era meticulosa. Construíram fortificações, paliçadas de troncos e pedras, plataformas, fossos e estrepes em torno das principais povoações. Entre a população, um setor artesanal e metalúrgico voltava “grande parte das suas atividades para a fabricação de material bélico indispensável para que esse exército estivesse em condições operacionais satisfatórias”.
A “guerra do mato”, como a chamavam então, assustava as autoridades coloniais, que se referem a ela como uma tática para a qual seus exércitos não estavam preparados. Um exemplo foi uma carta que Câmara Coutinho, governador de Pernambuco em 1690, escreveu ao Rei: “Para este gênero de guerra nem a infantaria paga nem a de ordenança se achou nunca capaz”.
Até que, na década de 1690, o paulista Domingos Jorge Velho – que estava envolvido no combate à rebelião dos Janduins, indígenas do sertão do Nordeste – ofereceu ao governo colonial de Pernambuco seus serviços contra Palmares – oferta que foi aceita depois de alguma vacilação. Parecia não haver outra alternativa. As tropas coloniais não tinham preparo para a espécie de guerra que ali se travava. Uma realidade que talvez explique por que Palmares estava invicto há décadas, tendo resistido a inúmeras expedições enviadas pelo governo colonial. Segundo o historiador Ivan Alves Filho, foram duas entre 1596 e 1630, quatro entre 1631 e 1654, 31 entre 1655 e 1694, quando o quilombo sofreu sua maior derrota, e mais 29 entre 1695 e 1716, até sua liquidação total.
O historiador Décio Freitas cita um documento da época que resume as dificuldades militares. Ele aponta “a dificuldade dos caminhos, a falta de águas, o descômodo dos soldados, porque são monstruosas as serras, para se abrirem é o trabalho excessivo, porque os espinhos são infinitos, as ladeiras muito precipitadas e incapazes de carruagens para os mantimentos; com o que é forçoso que cada soldado leve às costas a arma, pólvora, balas, capote, farinha, água, peixe, carne e rede com que possa dormir”. Muitos adoecem “pelo excesso do trabalho como pelo rigor do frio; e estes, ou se conduzem a ombros ou se desamparam às feras”.
Em consequência era comum que as expedições contra Palmares tivessem problemas provocados pela baixa moral dos soldados, com fugas e deserções. Os palmarinos se beneficiavam “da inadequação da estrutura militar colonial a esse tipo de luta”, diz Freitas. Inadequação enfatizada inclusive pelo uso de armas de fogo (arcabuzes, mosquetes, espingardas, trabucos, clavinas, escopetas, etc) – que criavam problemas de tipo variado; usavam munição diferentes, eram mal conservadas, pesadas e de manuseio difícil. Muitas vezes exigiam dois homens para funcionar (um para apontar, outro para pôr fogo ao pavio). A repetição dos tiros era lenta, permitindo o ataque adversário com armas brancas ou flechas nos intervalos entre um tiro e outro.
Foi lenta a aprendizagem dos segredos daquela guerra. E os bandeirantes pareciam os únicos capazes de enfrentar aquelas condições difíceis. Fixaram arraiais nas fronteiras de Palmares, que serviam de bases permanentes de operação contra o quilombo e para a destruição das roças palmarinas, criando dificuldades para seu abastecimento. Descobriram também a eficiência das unidades móveis de ataque e as virtudes das linhas regulares de abastecimento.
Décio Freitas mostra que, na metade do século 17, demorava-se de vinte a trinta dias para chegar-se do Recife à serra da Barriga; Domingos Jorge Velho demorou cerca de uma semana.
O acerto com Domingos Jorge Velho foi ratificado pelo Marquês de Montebelo, governador de Pernambuco, em julho de 1691, mas os paulistas demoraram para entrar em ação – atacaram só ano e meio depois, no fim de 1692 (“afoitamente”, diz o historiador Edison Carneiro), sendo derrotados na primeira investida. Demoraram pouco mais de um ano até entrar em ação outra vez. A concentração final das tropas contra Palmares começou a acontecer em dezembro de 1693, em Porto Calvo. Foi uma das maiores mobilizações militares de todo o período colonial, para derrotar Zumbi e seus seguidores – foram mobilizados mais ou menos 9 mil homens, um volume de tropas que nem mesmo a guerra contra os holandeses assistiu, e que só voltou a se reunir nas guerras da independência, em 1822/1823, na Bahia, Maranhão e Piauí, que envolveram cerca de 14 mil homens.
Os homens de Domingos Jorge Velho “ficaram atônitos quando chegaram à vista de Macaco”, diz Décio Freitas. Eles não esperavam o que viram: uma imensa muralha de troncos e pedras, formada por uma tríplice cerca, com a altura equivalente à de dez homens postos uns sobre os ombros dos outros, e com quase seis quilômetros de extensão. Dotada de aberturas para se fazer fogo, de flancos, de redutos, faces, guaritas, parecia inexpugnável. Fora dela, estavam fossos fundos e largos, dissimulados por vegetais, e crivados de estrepes, puas pontiagudas, verdadeiro campo minado que impedia a aproximação das tropas atacantes.
Domingos Jorge Velho e os seus ficaram durante um mês praticamente sem ação, até que, no fim de janeiro de 1694, Bernardo Vieira de Melo (que era irmão do padre Antônio Vieira), um dos comandantes, teve a ideia de construir uma contra-cerca que protegesse as tropas coloniais e permitisse o ataque. Foram construídas então três contra-cercas, com perto de 500 metros cada. Quando ficaram prontas Domingos Jorge Velho repartiu as forças em três corpos principais e iniciou o ataque. Mas a tropa não conseguiu chegar à metade do caminho – os soldados caiam nos fossos, ou eram alvo fácil dos petardos dos defensores de Macaco. As baixas devem ter sido numerosas, pois depois do ataque fracassado Domingos Jorge Velho pediu mais tropas e armas. Tentou novo ataque em 29 de janeiro, igualmente sem êxito. Mesmo os canhões, que chegaram no dia 3 de fevereiro, pareciam inúteis pois seus tiros não alcançavam a muralha. Alguém teve a idéia, então, de construir – à noite – uma segunda cerca oblíqua, que fosse da contra-cerca à muralha de Macaco, permitindo a aproximação dos canhões. A obra foi feita em silêncio, na noite do dia 4 para o dia 5 de fevereiro. Percebendo o perigo, Zumbi e seus homens decidiram abandonar Macaco na madrugada do dia 6, através de uma brecha que havia entre a cerca dos atacantes e o despenhadeiro onde a povoação estava localizada. Quase conseguiram. Uma pedra rolou, despertando a atenção de uma sentinela atacante. A batalha teve início então; um grupo de cerca de 200 guerreiros conseguiu escapar. Os canhões abriram fendas na muralha, Macaco foi arrasada e os clarões do incêndio puderam ser vistos em Porto Calvo. Os defensores de Macaco – que resistiu ao cerco durante 22 dias – deviam ser mais ou menos mil, mas “apenas quinhentos e dez negros apareceram vivos como prisioneiros”, diz Décio Freitas. Os soldados degolaram os que puderam. Nos dias seguintes, as povoações menores foram dizimadas, mas Zumbi escapou. Com seus homens, ele retomou a mesma tática de guerrilha usada antes de 1630. Vagou ainda por quase dois anos pela mata, atacando engenhos e povoados e tentando rearticular o que sobrou de Palmares. Morreu devido à delação do mulato Antonio Soares que, torturado por homens de Domingos Jorge Velho, e com garantia de vida e liberdade do governador de Pernambuco, levou os soldados até a grota onde Zumbi se ocultava, na Serra Dois Irmãos, à beira do rio Paraíba, onde ele esfaqueou Zumbi, no dia 20 de novembro de 1695.
Foi a cena final de um drama cujo clímax começou a ser armado dez anos antes, quando Domingos Jorge Velho ofereceu às autoridades coloniais seus serviços para eliminar aquela que era tida, de forma unânime, como a maior ameaça à ordem social escravista.
Comentário bibliográfico
A resistência dos escravos, particularmente em Palmares, foi tema de uma produção historiográfica fértil. O pioneiro foi Raimundo Nina Rodrigues, autor de “Os Africanos no Brasil” (1904), onde aparece a primeira descrição moderna da República negra, fortemente marcada pelo racismo do autor. Outra obra importante – importantíssima, pela quantidade de documentos que transcreve, é “As Guerras nos Palmares: subsídios para a sua história”, do historiador português Ernesto Ennes, que reúne documentos existentes na Torre do Tombo, em Lisboa.
A revisão da história de Palmares e o começo do esforço para uma compreensão mais aprofundada apareceu nos anos 50, com o livro de Edison Carneiro, “O quilombo dos Palmares“, que abriu a senda seguida por Décio Freitas, com “Palmares, a guerra dos escravos“, e Ivan Alves Filho, com “Memorial dos Palmares“. Um panorama da história dos quilombos e das rebeliões escravas pode ser obtido na obra de Clovis Moura, particularmente em “Rebeliões da Senzala“, “Sociologia do negro brasileiro” e “Os quilombos e a rebelião negra“.
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José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.
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