Os juristas Lenio Luiz Streck, Gilberto Morbach e Horacio Neiva afirmam em artigo que a denúncia do procurador da República, Wellington Divino de Oliveira, do Ministério Público Federal de Brasília (MPF-DF), contra o jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, não “se sustenta, sequer minimamente”.
A partir de conversas obtidas nas investigações sobre a invasão de celulares de autoridades, entre elas o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador da República, Deltan Dallagnol, o procurador Wellington Divino Marques de Oliveira apresentou uma denúncia contra Glenn Greenwald, jornalista que divulgou as mensagens.
Para os juristas, não “se sustenta, sequer minimamente, nenhuma das alegações do procurador, e os próprios diálogos que servem de base à inclusão do jornalista no rol dos denunciados indicam isso. A denúncia é inepta, arbitrária, abusiva”.
Os juristas lembram que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, concedeu uma medida liminar proibindo que Glenn Greenwald fosse investigado ou responsabilizado pelo crime dos hackers, mas que isso não foi suficiente.
Em artigo publicado no site Consultor Jurídico, os três demonstram que os trechos destacados pelo procurador Wellingon Divino não poderiam ter servido para que Glenn fosse denunciado. “Da leitura dos diálogos e dos trechos destacados [pelo procurador] não é possível derivar nenhuma das alegações contra” o jornalista Glenn Greenwald, sustentam.
Em um dos trechos, Glenn fala para um dos hackers, Luiz Molição, que eles devem deixar claro que as mensagens que iriam divulgar não tinham nada a ver com o que se estava sendo noticiado sobre invasões a celulares de autoridades naquele momento.
“E nós vamos deixar muito claro que nós recebemos muito antes disso, e não tem nada a ver com isso, entendeu?”, disse.
Para os autores do artigo, “o jornalista mostra-se preocupado em deixar claro que as informações por ele recebidas eram anteriores a esse episódio discutido. Não apenas isso é verdade como o diálogo mostra que Greenwald não participou da interceptação das mensagens”.
Em outro momento, Molição fala para Glenn que teria todas as mensagens obtidas das autoridades salvas em um lugar seguro, a fim de não perdê-las. Os hackers enviaram as mensagens para Glenn através de uma memória em nuvem, salvo em um site, a partir da qual o jornalista deveria fazer o download.
“Sobre puxar todas essas pessoas nesse final de semana, pra já manter as conversas salvas que a gente tiver”, diz Molição para Glenn.
“Glenn Greenwald claramente procura preservar o veículo que detém a informação”, argumentam os juristas. “A questão colocada pelo hacker era sobre realizar o download de informações que ainda não haviam sido baixadas”.
“Nesse sentido, o que mais impressiona é que o próprio procurador [Wellington Divino] admite que Greenwald não deu o alegado incentivo. Que agiu com cautela. O assustador é que, pela sua perspectiva, isso não apenas não comprova que não há crime como reforça sua convicção”.
Depois que Molição explica sua ideia para manter as mensagens obtidas em segurança, Glenn diz que “isso é sua escolha”.
“O mais importante, contudo, é que, no trecho citado pelo próprio procurador, Greenwald diz que isso é escolha do hacker. Não há qualquer incentivo, não há qualquer orientação. Há apenas um jornalista preservando sua própria atuação, sua própria fonte”, observam os três juristas.
Em outro momento, Glen diz que “é difícil porque eu não posso te dar conselho, mas eu tenho a obrigação de proteger a minha fonte”.
Para os autores, o procurador, a partir das conversas expostas, apresentar uma denúncia contra Glenn “exaure todos os limites do absurdo. O crime de um jornalista é ter ‘relação próxima’ com sua fonte, que teria praticado crime. Perguntamos: como um jornalista vai investigar algo sem ter relação próxima com fontes, mesmo aquelas que praticaram — sem participação do jornalista — algum crime?”.
“Isso tudo é muito grave, e grave justamente porque, do ponto de vista jurídico, a questão é muito simples. É simples, primeiro, porque a liberdade de imprensa e o sigilo das fontes são garantias constitucionais”, continuam.
“Segundo porque, por razões óbvias, liberdade de imprensa e sigilo de fonte não envolvem apenas um direito que tem o jornalista de não dizer quem é fonte. As garantias constitucionais envolvem os atos necessários para que o jornalista possa efetivamente exercer sua profissão, sob pena de serem reduzidas a meras palavras em um documento sem qualquer pretensão de eficácia. Para que serviriam as garantias de livre exercício da profissão sem a garantia dos meios legítimos para efetivá-la?”.
“Os problemas não param por aí. O áudio já tinha sido analisado pela Polícia Federal, que, em seu relatório final, assim disse: ‘Pelas evidências obtidas até o momento, não é possível identificar a participação moral e material do jornalista Glenn Greenwald nos crimes investigados’”.

“O que queria o procurador, afinal? Que um jornalista não divulgasse material de interesse público? Que Glenn Greenwald, no pleno exercício de suas prerrogativas constitucionais, fiscalizasse a conduta de sua fonte?”, questionam os juristas.
“Se uma ação de hackers é criminosa, o jornalismo não pode ser crime em nenhuma democracia que se pretende digna do nome. Glenn Greenwald foi denunciado pelo legítimo exercício de seus direitos amparados por garantias constitucionais”, concluem os autores.
A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) enviou para o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, uma representação que acusa o procurador Wellington Divino de ter cometido abuso de autoridade na denúncia contra Glenn.
O documento “se justifica a partir de conduta adotada em denúncias sucessivas pelo procurador fora dos parâmetros legais, que claramente destoam e exorbitam das funções atribuídas a um membro do Ministério Público Federal”.
A denúncia apresentada por Wellington foi amplamente rechaçada pela sociedade. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) manifestou “sua irrestrita solidariedade ao jornalista Glenn Greenwald, diante da denúncia absurda apresentada à Justiça por um procurador do Ministério Público Federal (MPF)”.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) afirmou, por meio de nota, que a denúncia apresentada não descreve a prática de crime. Para a entidade, “a acusação representa um risco para a liberdade de imprensa, e não descreve ilegalidades”.
Jair Bolsonaro avalizou a arbitrariedade cometida pelo procurador do DF contra o jornalista. E debochou de Greenwald. “Quem denunciou foi a Justiça. Você não acredita na Justiça?”, disse Bolsonaro, ao sair do Palácio da Alvorada, trocando o MP pela Justiça.
Bolsonaro perguntou se Greenwald estava no Brasil ao ser questionado inicialmente sobre o caso. “O que, o Greenwald, que foi? Não devia nem estar… Onde que está esse cara? Está no Brasil, ele?”.
O jornalista é americano, mas mora no Brasil desde 2005.