"A Batalha dos Guararapes" (1879), de Vítor Meireles, narra a formação mítica de um Exército multirracial que lutou contra os holandeses em 1648-49

A primeira vez que a palavra “pátria” foi usada em um documento público em terra brasileira foi no pacto assinado em 15 de maio de 1645, no Engenho de São João, por dezoito líderes da insurreição contra a ocupação holandesa de parcela muito grande do território nordestino. Aquele pacto assinalou o compromisso de lutar contra o invasor e disposição de usar todos os recursos disponíveis para expulsá-lo.

Por José Carlos Ruy*

O compromisso que firmaram dizia: “Nós, abaixo assinados, nos conjuramos e prometemos, em serviço da liberdade, não faltar a todo o tempo que for necessário, com toda ajuda de fazendas e de pessoas, contra qualquer inimigo, em restauração de nossa pátria; para o que nos obrigamos a manter todo o segredo que nisto convém; sob pena de quem o contrário fizer será tido como rebelde e traidor e ficará sujeito ao que as leis em tal caso permitam”

Os holandeses atacaram inicialmente a Bahia, em 1623, sem êxito devido à resistência que encontraram. Depois, em 1630, com força militar maior, ocuparam Pernambuco e vários trechos do litoral nordestino – de Sergipe, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte; chegaram até o Maranhão, mas foram expulsos de lá.

A insurreição contra o invasor teve a participação de forças lideradas por João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Filipe Camarão. Forças que enfrentaram os holandeses – então a principal potência econômica e militar do planeta – em confrontos que ficaram célebres, como as batalhas dos Guararapes (1648 e 1649).

O lema adotado no pacto de 15/05/1645 foi “Restauração da Liberdade Divina e da Pátria Independente”, lema daquele que foi o principal acontecimento histórico no século 17. A guerra de libertação envolveu, além de senhores de terras e escravos, o povo brasileiro – brancos, negros, índios, caboclos e mestiços de todo tipo.

Quando os holandeses invadiram e ocuparam terras brasileiras, o Brasil estava sob o jugo espanhol, na chamada União Ibérica (1580-1640).

O holandês João Maurício de Nassau governou o que chamaram de “Nova Holanda” – o território nordestino que invadiram e ocuparam – entre 1637 e 1645. Embora à frente da ocupação, Nassau procurou modernizar o Recife e foi um governante tolerante, do ponto de vista religioso, e principalmente em relação aos comerciantes e latifundiários, com os quais manteve relações amistosas e impediu que a Companhia das Índias Ocidentais, holandesa, cobrasse as grandes dívidas que os senhores de engenho tinham, não aceitando a penhora de suas propriedades.

Quando Nassau voltou para a Holanda, em 1645, tudo isso mudou, numa época em que havia dificuldades adicionais causadas por pragas e seca, que foram acentuadas pelo governo da Companhia das Índias Ocidentais que intensificou a cobrança de impostos e dos empréstimos dos senhores de engenho com os banqueiros holandeses e com a própria Companhia das Índias Ocidentais.

Outro fato que acirrou a rivalidade entre portugueses e holandeses foi a questão religiosa. O catolicismo dos portugueses era mais um elemento de estímulo para expulsar os protestantes holandeses.

João Fernandes Vieira, diz o historiador Charles Ralph Boxer, foi o principal líder da reconquista. Grande senhor de engenho e terras, era de origem humilde e o historiador, baseado em indícios de que sua mãe não era branca, supõe mesmo que tivesse antepassados negros. Ele foi o primeiro signatário do pacto insurrecional no qual figura pioneiramente a palavra “pátria”. O conjunto das forças mobilizadas na guerra contra o ocupante holandês representou de fato todas as forças brasileiras. Além dos senhores de terras e engenho, brancos, lá estavam os índios liderados por Filipe Camarão, cujo nome original era Potiguaçu, e os negros dirigidos por Henrique Dias.

As ações de guerrilha (a já conhecida “guerra do mato”), comandadas por Felipe Camarão, foram essenciais para conter o avanço dos invasores e se destacaram em várias batalhas, mesmo antes do início da insurreição aberta, nas batalhas de São Lourenço (1636), Porto Calvo (1637) e Mata Redonda (1638). Nesse último ano participaram da defesa de Salvador, atacada por tropas de Maurício de Nassau. Os índios de Felipe Camarão também tiveram participação destacada na primeira batalha dos Guararapes, em 1648.

Henrique Dias era nascido no Brasil, filho de escravos. Ele, que ficou conhecido como governador dos pretos, recrutou ex-escravos nos engenhos, e comandou o Terço de Homens Pretos e Mulatos, com importante participação nas duas batalhas dos Guararapes. Suas tropas, chamadas de “henriques”, participaram de muitos combates com bravura notável, em Igaraçu e na retomada de Goiana e Porto Calvo.

Cabe destacar também a ação de Antonio Dias Cardoso, um dos principais comandantes militares da Insurreição que, em muitos momentos não recuou ante a necessidade de mobilizar o conjunto da população para os combates, que treinou em táticas de guerrilha – ele foi apelidado de mestre das emboscadas – e utilizou em batalhas que venceu apesar do número de soldados regulares ser muito menor do que o dos holandeses.

A mobilização do conjunto das forças brasileiras foi uma verdadeira antecipação do conceito de guerra total que iria emergir apenas nos séculos 19 e 20. Outro aspecto que aponta o caráter brasileiro da insurreição pernambucana é o fato de que aquele esforço para derrotar o invasor estrangeiro mobilizou forças de todo o território da Colônia. Nas condições da época, Portugal, que acabara de recuperar a independência ante os espanhóis, não tinha condições nem militares nem financeiras de apoiar um esforço de guerra daquela envergadura.

No Maranhão, os brasileiros se levantaram contra a ocupação holandesa em 30 de setembro de 1642. Logo tomaram o Forte do Calvário, que ficava na foz do rio Itapicuru; a luta contra o ocupante estrangeiro durou até 28 de fevereiro de 1644, quando foi derrotado e expulso. O bandeirante Antônio Raposo Tavares foi mobilizado para a luta na Bahia, em 1639, e em Pernambuco. em 1642. O governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, também agiu contra os invasores. Desde fevereiro de 1639 ele tinha ordens do governador geral para atuar contra o invasor. Entretanto, sua ação mais efetiva deu-se na libertação de Angola, em 1648, que também havia sido ocupada pelos holandeses.

Angola era parte estrutural da economia escravista colonial brasileira; sendo a principal fornecedora dos africanos escravizados para as atividades produtivas da Colônia. Sua ocupação por uma potência estrangeira foi um forte obstáculo para a economia colonial. A reconquista de Angola foi comandada por Salvador Correia de Sá, general das frotas do Brasil, cuja frota derrotou os holandeses e os expulsou do Atlântico Sul. Era formada por 15 navios (cinco cedidos pela Coroa portuguesa) e cerca de 2.000 soldados. Calcula-se que 70% dos recursos usados nela vieram de negociantes e traficantes de escravos do Rio de Janeiro.

Entre os episódios de heroísmo popular na guerra contra os holandeses, se destaca a ação das mulheres de Tejucopapo, em 24 de abril de 1646, quando elas e os meninos daquela vila enfrentaram com bravura 600 invasores de uma esquadra que havia saído de Recife, que estava sitiado, em busca de alimentos nas vizinhanças, e desembarcou soldados perto de Tejucopapo, onde muitas mulheres estavam refugiadas. Quando os holandeses atacaram, as mulheres – sob liderança de Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Joaquina – levantaram-se e resistiram armadas de foices, porretes e armas improvisadas como água fervente ou com pimenta-malagueta, que jogavam sobre o inimigo – e os obrigou a retroceder.

A 14 de janeiro de 1654 começou o assalto final ao Recife, que foi retomado doze dias depois. Os holandeses assinaram a rendição, colocando o ponto final à guerra e à ocupação que durara 23 anos.

A derrota e expulsão dos holandeses foi o principal acontecimento do século 17 e o maior esforço militar que ocorreu em todo o período colonial. O historiador Oliveira Lima, ecoando uma tese enraizada nas batalhas travadas para expulsar o ocupante estrangeiro, escreveu que a insurreição pernambucana favoreceu a formação de um sentimento nacional no Brasil. “A miséria em perspectiva, o rancor suscitado pelas ofensas recebidas, o ardor religioso redobrado pelas perseguições, uma pátria restituída, eram outros tantos motivos que favoreciam a revolta, que foi a primeira afirmação certa e irrecusável , eu poderia quase dizer, na nacionalidade brasileira”.

De qualquer maneira as condições concretas para a autonomia já estavam presentes, tanto do ponto de vista militar quanto financeiro, mas elas não se traduziram, ainda, na percepção subjetiva da contradição colonial, na ideia de uma nação brasileira separada de Portugal. Foram os próprios brasileiros que, na Restauração Pernambucana, venceram aquela que era a maior e principal potência militar da época, e expulsaram os invasores e em seguida os derrotaram também em Angola, praticamente sem ajuda oficial da Metrópole, com forças e recursos mobilizados na Colônia para derrotá-lo.

Caracteristicamente, cerca de duzentos anos depois, o historiador Francisco Adolfo Varnhagen, ideólogo da monarquia e da oligarquia que dominou desde a Independência, valorizou a luta contra a ocupação holandesa no século 17 e viu em sua expulsão a obra dos antepassados da mesma elite latifundiária e escravista que dominava desde 1822. Elite cujo mando ele buscou legitimar e fundamentar no passado histórico, quando os antepassados daquela oligarquia agiram como autêntica vanguarda do povo brasileiro, dirigindo a luta contra o invasor estrangeiro, transmitindo a ideia da continuidade de seu domínio através do tempo.

 

Referências

  • Alencastro, Luiz Felipe de. “O Trato dos Viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII”. São Paulo, Cia das Letras, 2000.
  • Boxer, Charles R “Os holandeses no Brasil, 1624-1654”. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1961.
  • Boxer, Charles. R. “Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola – 1602-1686”. São Paulo, Cia Editoral Nacional, 1973.
  • Exército Brasileiro. “Guerra Holandesa – Quarto período: Insurreição Pernambucana“. Consultado em 26/10/2020.
  • Lima, Oliveira. “Formação histórica da nacionalidade brasileira”. São Paulo, Topbooks, 2000.

__

José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.

 

As opiniões aqui expostas não refletem necessariamente a opinião do Portal PCdoB