O Supremo Tribunal Federal realizará no próximo dia 4 de abril uma reunião de elevado significado político. Esse destaque desmesurado decorre da anormalidade existente hoje no Brasil, onde o equilíbrio entre os três Poderes da União deixou de existir, o Judiciário tutela os demais Poderes e o STF assume cada vez mais um papel político que não lhe cabe. O quadro é embrulhado e a sessão do dia 4 vai acontecer em um processo tumultuado pelo próprio STF.

Por Haroldo Lima*

As consequências políticas esperadas dependerão das decisões a serem tomadas pela Corte, mas essas decisões dependem também do que vai ser discutido.

Está previsto que tudo começará pela apreciação de habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula. Ele aguardaria em liberdade o julgamento de seus recursos às Cortes superiores. Mas isto pode inviabilizar certos resultados, razão pela qual é preciso aparecer outros encaminhamentos, que possam conduzir a desfechos diferentes.

A ministra Carmem Lúcia, presidenta do Supremo, assumiu uma posição imprevista, para não dizer estranha, quando seu colega Marco Aurélio Mello, relator das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44, as liberou para julgamento no dia 7 de dezembro passado. Ao invés de pautar logo para o plenário da Corte as duas ADCs, como é normal nesses casos, Carmem Lúcia começou a fazer simplesmente uma obstrução na pauta do Supremo e a justifica-la. Disse que pautar essas ADCs por causa de Lula seria “apequenar o Supremo”.

Na realidade, a Constituição estabelece, em seu art. 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. É o que se chama de “presunção da inocência”, um dos princípios basilares de nosso direito, a partir do que o condenado só pode ser preso após esgotado seus recursos nos níveis superiores, STJ ou STF.
O Supremo, a partir de 2016, adotou um entendimento diferente, o de que um condenado em segunda instância, pode começar a cumprir a pena, sendo-lhe possível recorrer às instâncias superiores, porem preso. Essa nova compreensão foi sufragada no Supremo por 6 votos favoráveis e 5 contrários.

A força do argumento dos cinco votos derrotados foi fazendo aparecer, entre os seis vencedores, declarações que mostravam estar havendo uma mudança de entendimento entre eles, de tal sorte que a posição do Supremo, hoje, já seria a oposta, e o placar de 6 a 5 continuaria, porem invertido.

As duas ADCs, impetradas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pelo Partido Ecológico, questionam justamente a constitucionalidade da prisão antecipada e, ao serem discutidas, levarão a uma votação sobre a matéria, portanto à constatação de que para o Supremo, hoje, a prisão antecipada é ilegal.

A ministra Carmem Lúcia, que preside a Corte, e que votou a favor da antecipação da prisão, é quem coloca os temas em pauta, para serem discutidos e votados. Com essa prerrogativa, e não pondo as duas ADCs em discussão e votação, ela impede que o Supremo revele a opinião que hoje tem sobre a matéria e permaneça vigorando no Brasil, como se fosse posição do Supremo, um ordenamento jurídico que já não é o dele.

A Carmem Lúcia disse que pôr as duas ADCs em pauta agora, por causa de Lula, seria “apequenar” a Corte. Não percebe a ministra que, não apreciar as duas ADCs agora, por causa de Lula, aí sim é que é apequenar o Supremo, com um agravante, o de que o assunto não seria votado porque poderia beneficiar alguns cidadãos. Pela opinião da Carmem Lúcia, pessoas poderiam ser presas por conta de um entendimento jurídico que já não é o do Supremo. Isto é que é escamotear a verdade, para sequestrar a liberdade de alguns e esconder da população que a letra da Constituição voltou a vigorar.

Com o objetivo de pressionar abertamente e constranger os membros do STF, um abaixo assinado insólito lhes foi dirigido, subscrito, segundo dizem, por mais de mil participantes do Ministério Público e do Judiciário, esses personagens que insistem em fazer política com a toga. O abaixo-assinado apela para que o STF não rediscuta esse assunto, não recolha os votos atuais dos ministros da Corte, julgue com a maioria de um voto que teve há cerca de dois anos, apesar dessa maioria já não mais existir. O que essas figuras estão dizendo aos membros do Supremo é que fiquem quietos, aceitem a obstrução da pauta, finjam que a prisão antecipada conta com o apoio dos senhores, o que não é verdade, e deixem Lula ser preso.

Entra aí a questão do encaminhamento. A Carmem Lúcia, depois de ter jurado que não reabriria a questão da prisão antecipada, nem algo que parecesse beneficiar Lula, resolve pautar um habeas-corpus impetrado pela defesa do ex-presidente, para permitir que ele permaneça em liberdade enquanto apela aos tribunais superiores. E é isso que, em princípio, os ministros do Supremo começarão a discutir e votar no dia 4. Sucede problemas.

Por hipótese, um ministro que seja legalista, mesmo que queira ser contra a prisão antecipada, pode não estar disposto a votar um benefício específico, para uma pessoa específica, o Lula, antes do Supremo mudar sua posição. Ou seja, pode entender que, sendo a posição formal do Supremo a de permitir a prisão antecipada, essa posição teria que prevalecer em todos os casos, até que fosse mudada. Daí porque a proposta de Carmem Lúcia para pautar o habeas corpus que beneficia o Lula especificamente, pode não beneficia-lo e até prejudicá-lo.

Por isso, é arriscado discutir um caso concreto, especifico, antes de discutir a questão geral. Na verdade, não há porque se aceitar a continuidade da obstrução à pauta do STF que sua presidenta está fazendo. É um contrassenso e um desrespeito. O encaminhamento mais correto e natural a ser seguido na próxima sessão é o de discutir e votar, em primeiro lugar, as duas ADCs que alterariam a posição genérica do STF sobre o tema e, posteriormente, discutir casos específicos, como o de Lula. Isto ainda é possível? Possível é, depende dos ministros, ou de alguns.

A despeito de ter membros apegados a seus deveres constitucionais, o STF vê-se hoje muito envolvido com injunções políticas, daí transmitir à sociedade sinais confusos e insegurança jurídica. Por exemplo, tendo estado conivente o tempo todo com práticas abusivas da Operação Lava Jato, que prende por meses pessoas para depor, um ministro inesperadamente manda prender mais de uma dezena de amigos do Michel Temer por cinco dias e, passados três dias, manda soltar todos “os amigos do presidente”.

O Supremo estará na sessão do dia 4 submetido a muitas pressões, uma especialmente atrevida de setores corporativos que lhe enviam abaixo-assinado para que não revelem o que pensam sobre um assunto crucial. A despeito disso, espera-se que uma maioria, ou alguns, dentro do Supremo encontre o caminho de romper com a obstrução da pauta que ali perdura, ou encontre outro caminho, de tal forma que não venha a prejudicar quem, condenado, sem provas, é a pessoa que povo brasileiro diz querer para ser o presidente da República.