Gregos derrotam nas urnas o premiê Tsipras após sua adesão à Troika
Nas eleições de domingo (7), o povo grego pôs fim ao governo de Aléxis Tsipras, que se elegera em 2015 prometendo enfrentar o arrocho da Troika e até encenou um referendo, cujo rotundo “não” dado por 62% dos votantes foi imediatamente traído, com adesão instantânea ao austericídio, depois da ameaça do então ministro das Finanças alemão de expulsar a Grécia do euro. Volta ao poder a Nova Democracia (ND) – a direita grega tradicional -, e o ex-banqueiro Kyriakos Mitsotakis tomou posse nesta segunda-feira (8) como primeiro-ministro.
A ND granjeou votos ao encabeçar a rejeição ao impopular acordo com a Macedônia ex-iugoslava para mudança de nome e ao prometer reativar a economia com “menos impostos”, “empregos com bons salários” e “estado eficiente”. Cortejou os xenófobos com a pregação do voto útil anti-imigração.
Em suma, entre os neoliberais fantasiados de esquerda que cumpriram nos últimos anos o papel de denodados feitores da Troika, e os neoliberais de carteirinha, mas sem culpa direta nos últimos quatro anos, os eleitores acabaram ficando com os originais – por enquanto.
Com 42%, a abstenção foi a maior desde a redemocratização, há 45 anos, depois da sangrenta ditadura de 1967-1974 da “junta dos coronéis” apoiada pela CIA.
A derrota de Tsipras já era esperada desde as eleições de maio locais e para o parlamento europeu, em que o Syriza afundara e a ND vencera em 11 das 13 regiões e conquistara a prefeitura de Atenas. Tsipras tentara reduzir o dano, antecipando as eleições para o auge do verão, o que não acontecia desde 1928.
O PIB da Grécia chegou a cair 25%, salários e pensões foram drasticamente cortados e quase tudo foi privatizado, até o Porto de Pireus, sob os pacotes de maldades da Troika – Comissão Europeia/Banco Central Europeu/FMI -, para salvar bancos alemães e franceses e fundos norte-americanos pendurados nos títulos podres da dívida grega.
O triplo “resgate” de 280 bilhões de euros ficou pelo caminho, indo direto para os cofres dos bancos estrangeiros alquebrados, enquanto para o povo grego ficava a conta amarga e a dívida impagável, agora de inacreditáveis 181% do PIB.
Filho do ex-primeiro-ministro Konstantinos Mitsotakis, o novo chefe de governo grego é irmão da ex-prefeita de Atenas e ex-chanceler, Dora Bakoyannis, e tio do novo prefeito da capital, Costas Bakoyannis. A dinastia voltou. Entre 2012-2014, ele fizera parte do governo pró-Troika de Antonis Samaras (o que Tsipras vencera), como ministro da Reforma Administrativa, com a incumbência de demitir 15 mil servidores públicos.
NEONAZISTAS FORA
A ND recebeu 39,7% dos votos, enquanto o Syriza ficou com 31,6%. A social-democracia tradicional, mesmo mudando de nome de Pasok para Kinal (Movimento pela Mudança), mal chegou aos 7,9%. O que é revelador de que segue torrada por ter sido o instrumento para desencadear o complô dos bancos para pilhar a Grécia e o primeiro algoz a serviço da Troika.
Os neonazistas da Aurora Dourada, que chegaram a ser a terceira maior bancada, com 18 deputados no parlamento anterior, vários deles processados pelo envolvimento no assassinato de um músico antifascista e agressões a imigrantes e ativistas progressistas, não conseguiram ultrapassar a cláusula de barreira de 3%. Mas o ultraconservador Solução Grega (SG), que advoga pena de morte para traficantes de drogas e pedófilos, passou, com 3,8%.
O Partido Comunista Grego (KKE), radicalmente contra a austeridade, euro e Otan, e pelo socialismo, e que desde o início alertou o povo sobre Tsipras, obteve 5,4%.
O DiEM25, o novo partido do ex-ministro das Finanças de Tsipras, e que rompeu com ele por sua rendição à Troika e traição ao referendo, Yanis Varoufakis, obteve 3,5% dos votos.
Ficou marcado o voto de protesto: a juventude, que sufragara em massa o Syriza em 2015 na proporção de 3 para 1, se dividiu agora entre a suposta esquerda radical e a ND. Mesmo deslocamento entre os aposentados, que desta vez votaram 46,4% na ND, contra apenas 25,5% no Syriza.
Como ainda está válido nesta eleição o bônus de 50 deputados para o partido vencedor, a ND terá maioria absoluta, 158 deputados, e vai virar vidraça já, já. O Syriza terá 86, seguido do Kinal, com 22, KKE, com 15, Solução Grega, com 10, e o partido de Varoufakis, com nove.
Apesar de formalmente encerrado o processo de “resgate”, o povo grego segue sendo o prisioneiro mais seviciado da prisão de povos em que a União Europeia se tornou, sob o marco alemão travestido de euro.
A Troika disse no ano passado que se foi, mas o arrocho terá de continuar até 2060, já que foi exigida da Grécia uma meta de superávit primário de 3,5% da renda nacional até 2022, e de 2,2% dali até 2060.
O que implica no pagamento impossível de 60% das receitas de impostos de 2023 a 2060, a “austeridade até o infinito”, na definição do ex-ministro Varoufakis, e na “servidão da dívida”.
Metade da juventude grega continua desempregada e centenas de milhares deixaram o país em busca de trabalho. Metade dos gregos com idade entre 18 e 35 anos continua dependente de ajuda financeira dos pais e avós.
O desemprego geral caiu de 23% para 18%, em grande parte, apelando para biscates, mas segue o maior do bloco europeu. Um trabalhador grego em cada três só consegue trabalho em tempo parcial, pela metade (317 euros) do salário mínimo oficial. 34,8% da população grega vive na pobreza segundo a agência de estatística europeia, Eurostat.
THEODORAKIS
A hecatombe vivida nesses longos anos pelos gregos foi mostrada em manifesto contra a Troika de 2012 do genial compositor Mikis Theodorakis, herói da resistência e ex-torturado da Gestapo, em que registrou que “milhares de pessoas que tinham uma boa posição até recentemente agora procuram comida nas latas de lixo e dormem nas calçadas” e lembrou que a “última vez que tivemos uma situação de fome generalizada no nosso país foi no início da ocupação alemã em 1941”. Então, quase 473 mil empresas gregas já tinham sido levadas à falência.
Nessa situação desesperadora, o povo grego legou a Tsipras o comando da luta por sua superação, e aplaudiu no discurso da vitória de 2015 sua declaração de que a Grécia “deixa para trás a austeridade catastrófica, deixa para trás o medo e o autoritarismo, deixa para trás cinco anos de humilhação e angústia”.
Foi abjetamente traído, com a rendição de Tsipras ao infame terceiro memorando. Numa entrevista à revista Jacobin, Varoufakis narrou a noite de terror da vitória do referendo contra a Troika, no palácio de governo, quando era máximo o apoio popular à decisão de resistir: “eles estavam se abraçando e chorando nos braços um do outro. Era como a sensação de perda após um grande desastre natural, exceto que era ainda pior porque não era um desastre natural, mas uma derrota imposta pelo líder do Syriza, a quem eles adoravam”.
É também lapidar sua análise do que se sucedeu. A razão da perda da “janela de oportunidade” para barrar a bancarrota grega em curso não se deveu, como observou, ao “tratamento da Troika à Grécia”. “Não devemos culpar nossos inimigos por nossas derrotas, assim como não culpamos o escorpião por nos atormentar – isso está em sua natureza”, assinalou. “A culpa recai sobre aqueles que decidiram negociar a agenda anti-austeridade na qual foram eleitos em troca de alguns anos no poder – ao mesmo tempo em que tiveram suas costas afagadas pelo inimigo”.
ODISSEIA
Os poucos meses de alívio ao achaque foram substituídos pela mais cínica adesão à cartilha da Troika. Aposentadorias e salários foram brutalmente arrochados. O corte de direitos trabalhistas chegou ao ponto de aumentar o quorum de decretação de greve de um terço – já arbitrário – para 50% do total de trabalhadores. O despejo das famílias inadimplentes foi liberado. O imposto sobre valor agregado (IVA), quase duplicou, para até 23%. As privatizações conseguiam ser mais indecentes do que as feitas antes pela ND e o Pasok.
No ano passado, Tsipras voltou a insultar a inteligência do povo, dizendo que os memorandos tinham acabado, era o “fim de uma Odisséia dos tempos modernos”, e que começava a recuperação econômica. No primeiro trimestre de 2019, a economia se arrastou a 0,3%. Pelas projeções mais otimistas, o PIB grego terá que esperar até 2033 para recuperar seu nível de 2009, ou seja, o anterior à crise. Um quarto de século perdido.
Após o fiasco de maio nas urnas, o camaleão do Syriza, na tentativa de reverter a cólera popular, decretou um aumento de 11% no salário mínimo, restabeleceu a negociação coletiva que cassara e, na campanha, jurou que iria criar “meio milhão de empregos” e reduzir o imposto de renda.
Um dirigente do novo partido oposicionista DiEM25, o escritor David Adler, analisou o voto de agora na ND como um esforço dos eleitores “para resolverem essa dissonância – para sentir um retorno à realidade, por mais dura que fosse, diante da celebração circense de Tsipras de uma recuperação econômica inexistente”.
É de Adler também o registro da memorável declaração de Tsipras ao Financial Times, a bíblia britânica do neoliberalismo: “As reformas são como uma bicicleta. Se você não as fizer, você cai.”
Também a corrupção passou batida sob o governo de Tsipras – a dos velhos oligarcas, a dos novos favoritos e a das corporações estrangeiras, como a Siemens, que tinha um departamento de propinas para garantir que a Grécia fizesse as compras certas.
A auditoria da dívida ficou para as calendas, para não incomodar Herr Schäuble, o chefe alemão do garrote vil contra a Grécia.
Ficou inexplicada a estranha operação desencadeada em 2009 pelo recém eleito governo do Pasok, em que o déficit grego foi artificialmente expandido de 12% para 15%. Maior que o da Irlanda, de 14%, e, portanto, declarado elo fraco da dívida pública europeia. O que desencadeou o ataque dos especuladores contra a dívida soberana, jogando o risco na estratosfera e inviabilizando sua rolagem, até à Grécia ir ao chão.
Também falta saber qual foi o papel do Goldman Sachs em tudo isso, já que foi a ‘instituição’ financeira que ajudou o governo conservador grego a fazer as manipulações contábeis – como os demais países europeus estavam fazendo, aliás – para caber nas normas de ingresso na União Europeia. E, curiosamente, também a que forneceu subsídios para a investida dos especuladores.
40 ANOS EM 4
Um comentarista político observou que as piores deformidades políticas que a ND e o Pasok tinham levado décadas para desenvolver e aperfeiçoar, o Syriza conseguiu aprender a cometer em quatro anos.
Como convocar um referendo na expectativa de perder e servir de biombo para sua traição. Seu ministro Varoufakis, até o último minuto, acreditava em um plano B e na possibilidade de resistir para abrir negociação para cancelamento de pelo menos parte da dívida impagável – sem o que, não haveria como sair da bancarrota e da crise.
O ignóbil terceiro memorando, considerado a cereja do bolo dos pacotes antipovo. A concessão dos aeroportos aos alemães e dos portos aos chineses.
O acordo sobre o nome com a Macedônia ex-iugoslava, que ele assinou contra a vontade popular, apenas para atender às ordens da Otan para viabilizar a anexação da república ex-iugoslava, cuja adesão dependia do fim do veto grego.
A construção, sob ordens de Berlim e de Bruxelas, de uma rede de campos de concentração que servisse de dique para conter os refugiados do Oriente Médio em fuga das guerras imperialistas na Síria e no Iraque, onde faltavam médicos, remédios e até água potável.
A deriva de Tsipras o levou a vender armas ao príncipe saudita MBS para seu genocídio no Iêmen, a comprar jatos de guerra de Trump e a trocar gentilezas com o primeiro-ministro do apartheid, Benjamin Netanyahu.
Mas há quem veja mérito em toda essa trajetória, como o líder do Podemos, Pablo Iglesias, que enviou mensagem de consolo a Tsipras por ter “a coragem de governar com todas as potências gregas e européias contra ele.” Acrescentou ainda: “aqueles que nunca tentam nunca correrão o risco de errar. Nós não tomamos Manhattan, mas você foi digno e corajoso”.
Em centenas de greves, manifestações e bloqueios de estradas e portos nesses quatro anos, a população grega expressou outro tipo de sentimento sobre a “audácia” de Tsipras.
Este disse aceitar “o veredicto do povo”, de “cabeça erguida”. Excedendo-se em farisaísmo, asseverou que “para trazer a Grécia para onde ela está hoje tivemos que tomar decisões difíceis a um alto custo político”.
Já a mensagem de felicitações do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, ao novo primeiro-ministro Mitsotakis, parece coisa de sádico: “muito foi alcançado. Mas muito ainda precisa ser feito”. Pelo que foi assinado por Tsipras, o garrote vil – aliás, “a supervisão enfática” – está marcado para durar pelos próximos 42 anos, com os bancos podendo vetar leis gregas que considerem incompatíveis com o pagamento da dívida.