O assassino, um jovem de 18 anos, filho de refugiados chechenos, foi morto a tiros pela polícia | Foto Michel Euler/AP

O assassinato e decapitação de um professor que exibira em uma aula as charges do profeta Maomé do jornal Charlie Hebdo, ofensivas para os muçulmanos no mundo inteiro, causou comoção na França, com milhares de pessoas em Paris e em outras cidades repudiando no domingo (18) o bárbaro crime, assim como partidos, sindicatos e o governo Macron.

Na quarta-feira (21), será realizada uma homenagem nacional à vítima, Samuel Paty, 47, encabeçada pelo governo francês e pela família. Ele foi morto a facadas na sexta-feira após deixar por volta de 17 horas a escola Bois d’Aulne onde lecionava, em Conflans-Sainte-Honourine, Yvelines, pequena cidade de 35 mil habitantes a 44 quilômetros a noroeste de Paris.

Em seguida, foi degolado. O presidente francês visitou o local do atentado na noite de sexta-feira e apelou à “união diante do obscurantismo”.

O assassino, um jovem de 18 anos, filho de refugiados chechenos que chegaram à França em 2008 quando ele tinha seis anos, foi morto a tiros pela polícia em uma cidade vizinha, para onde fugira a pé.

Ele foi identificado como Abdullah Anzorov, com visto de permanência até 2030, emitido há seis meses. Morava com a família em outra cidade, Evreux, e se deslocou quase 100 quilômetros para chegar até a escola de Paty.

Após o crime, ele postou no Twitter a foto da degola e uma mensagem dirigida a Macron, o “chefe dos infiéis”, anunciando ter morto “um cão do inferno que havia menosprezado Maomé”.

O ataque foi desencadeado após redes sociais divulgarem uma semana antes vídeos de denúncia contra o professor, pela exibição das charges do Charlie Hebdo em aula, depois de mandar, quem não quisesse ver, sair da sala.

O pai de uma aluna foi à escola pedir a demissão do professor por racismo e ameaçou fazer manifestações na porta. Também apresentou queixa em uma delegacia, com Paty tendo negado tudo. Nenhuma providência foi tomada em relação à segurança do professor.

Há a acusação de que foi o “linchamento do professor nas redes sociais” que abriu espaço para o crime. Em um país onde muitos já foram guilhotinados, uma degola em pleno século XXI causa perplexidade: “aqui é a França, não Cabul”, bradaram manifestantes em Paris.

O governo anunciou que poderá tornar mais rígida a chamada lei contra o separatismo, que tem como alvo comunidades muçulmanas na França e cuja apreciação no parlamento está marcada para o dia 9 de dezembro. Aliás, rebatizada de “Projeto de lei que reforça o secularismo e os princípios republicanos”.

Reunião de emergência do Conselho de Defesa também decidiu pela expulsão do país de 231 estrangeiros considerados “radicalizados”.

Setores políticos notórios pela fobia a imigrantes estão tentando fazer do crime um pretexto para aumentar a perseguição a estrangeiros – como o Rally Nacional, ex-Frente Nacional, de Marine Le Pen, e políticos do conservador Republicanos.

Em 2015, as charges ofensivas – cujo caráter de provocação aos muçulmanos é evidente por si só – levaram à invasão e metralhamento da redação do Charlie Hebdo em Paris, em que foram mortas 12 pessoas, entre chargistas, jornalistas e auxiliares, atentado que chocou o mundo.

O julgamento de vários acusados de envolvimento no ataque ao Charlie está acontecendo agora. Há três semanas, duas pessoas foram feridas por um extremista paquistanês nas imediações da antiga sede do jornal.

Em reunião no sábado com os sindicatos de professores, o ministro da Educação Jean-Michel Blanquer prometeu garantir a segurança dos docentes e anunciou que na abertura do ano letivo no dia 2 de novembro haverá em todas as escolas um minuto de silêncio em homenagem a Paty.

11 pessoas foram presas para prestarem esclarecimentos sobre o ataque em Yvelines. Os pais do assassino, seu avô e seu irmão mais novo, em Evreux; o pai da aluna que postou mensagens contra Paty, e um amigo que estava em sua residência no momento da incursão policial, em Chanteloup-les-Vignes; mais outros cinco suspeitos em Paris.

Nessas manifestações, foram ainda repetidas as proclamações de que o tresloucado ato contra o professor constitui uma “ameaça aos valores republicanos”, “à liberdade de expressão” e aos “valores franceses”.

Embora não se saiba exatamente porque os “valores franceses” estariam representados por um Maomé nu, agachado em direção a Meca, e com uma estrela tatuada nas nádegas, com a legenda “nasce uma estrela”.

Ou mesmo a “liberdade de expressão”, já que se fossem charges ofensivas a outras minorias, por exemplo, negros ou gays, dificilmente não seriam consideradas abertamente racistas ou discriminatórias na França.

A separação Igreja-estado e o ensino laico são conquistas gigantescas da grande Revolução Francesa, valor que deve ser preservado sem ultraje a ninguém.

E é parte da realidade da França que os subúrbios de Paris estejam cheios de filhos de imigrantes muçulmanos, cuja integração precisa ser enfrentada e resolvida a bom termo.

Também o líder da República da Chechenia – que faz parte da Federação Russa -, Ramzan Kadyrov, condenou o “ato terrorista” e expressou condolências aos familiares dos falecidos. Kadyrov salientou que Anzorov “passou a maior parte de sua vida na França, para onde se mudou quando criança com seus pais, tendo crescido ao lado dos franceses, se comunicando, falando e escrevendo nessa língua”.

Esta tragédia – sublinhou – sugere que a sociedade francesa, quando fala de democracia, “muitas vezes a confunde com permissividade, a demonstração de uma atitude inaceitável para com os valores islâmicos”, acrescentou. Ele exortou a França a “não provocar os fiéis, a não ferir os seus sentimentos religiosos”.

O promotor responsável pelas investigações, Jean-François Ricard, revelou que, no início de outubro, em uma aula de moral e cívica, Paty resolveu usar como material de análise as charges do Charlie Hebdo para um debate sobre “liberdade de expressão”, e recomendou aos alunos que fossem muçulmanos ou que não quisessem ver as charges, para se retirarem.

O pai de uma aluna reagiu postando no Facebook uma conclamação pela demissão do professor e exortando as pessoas a denunciarem o caso à entidade Coletivo contra a Islamofobia na França (CCIF) e também à Inspetoria Acadêmica, ao Ministério da Educação Nacional e ao Presidente da República.

No dia 8 de outubro, um dia após sua postagem, o pai da aluna, acompanhado de uma segunda pessoa, foi ao colégio de Bois-d’Aulne, onde exigiu do diretor a demissão do professor por promover a islamofobia, sob ameaça de convocar protestos para a porta do estabelecimento de ensino, sem conseguir.

No mesmo dia, à noite, esse pai postou um vídeo acompanhado de um texto em sua conta do Facebook, em que designava o professor pelo nome, dava o endereço do colégio e incentivava a dizer “pare”. Depois compareceu com a filha a uma delegacia, onde acusou o professor de compartilhar material pornográfico. A questão também foi repercutida pela CCIF.

Uma investigação foi aberta e em 12 de outubro, o professor depôs, contestando “veementemente” ter pedido aos alunos muçulmanos que se identificassem e abandonassem a aula, mas dizendo ter tido o cuidado de alertar os alunos para quem não desejasse ver os desenhos na sala de aula devido à hipótese de que alguns poderiam se sentir atingidos por essas imagens.

Paty retrucou à acusação, com uma queixa por “difamação pública”.

Ainda no dia 12 de outubro, foi postado no Youtube um segundo vídeo de dez minutos em que o pai e a filha estudante foram entrevistados. O vídeo era intitulado “Islã e o Profeta insultados em uma faculdade pública”.

Uma terceira pessoa, depois identificada como Abdelhakim Sefrioui, também pedia no vídeo a demissão de Paty e acusava, ainda, o presidente Macron de “incitar o ódio aos muçulmanos”. Após o vídeo, a escola começou a receber ameaças por telefone.

“Uma explosão de ódio nas redes sociais e a irresponsabilidade de certos indivíduos levaram a esse horror”, afirmou uma autoridade francesa.

Entidades muçulmanas francesas têm procurado se distanciar dos extremistas, como registrou o jornal Figaro. “Estou aqui para expressar minha repulsa”, afirmou Latifa no ato em Paris uma comissária de bordo de 46 anos, que veio com o sobrinho neto. “Já estava lá em 2015. Esse ato bárbaro não representa a minha religião”, acrescentou.

Em nota, o vice-presidente do Conselho de Culto Muçulmano da Normandia, Hakim Miftah, deplorou que “o ataque tenha sido cometido em nome da religião, o Islã”.

Ele apelou a “todas as mesquitas da Normandia a condenarem veementemente este ato bárbaro, sem demora” porque “todos, cidadãos franceses, muçulmanos, devemos lutar juntos contra o terrorismo islâmico em nosso país”.

Por sua vez, o reitor da Grande Mesquita de Paris, Hafiz Chems-eddine, assinalou que já não pode “ser suficiente convicções”. Ele exortou “todas as mesquitas” a agirem “rapidamente”.

No entanto, como acabou deixando passar o Figaro, a questão é mais complexa. “Alertados pelas redes sociais, um punhado de adolescentes [alunos da escola Bois d’Aulne] foi para lá. Ninguém aprovou a decapitação, mas as reações de alguns, alegando ser de fé muçulmana, pareciam muito distantes de “Je suis Charlie” ou “Je suis Samuel”, registrou o jornal francês.

“Apresentando-se como aluna do professor de história-geografia, uma jovem garantiu ‘que ele tinha fama de racista’, e um amigo a seu lado notou que “é uma ofensa [contra Maomé]” ao mesmo tempo em que acrescentou imediatamente que ‘morrer por uma caricatura é uma loucura’”.

“’Vai longe demais’, deixou escapar outro adolescente, ex-aluno de Samuel Paty. ‘Ele insultou nosso profeta’, observou outro estudante universitário, ‘conversamos sobre isso no parquinho’”, acrescenta o Figaro.

A matéria descreve a “estranha vigília noturna” na escola, bem como a “atmosfera surrealista” em que alguns adolescentes “não podiam deixar de ser idiotas na frente de uma câmera. Mesmo com um certo distanciamento”. “’Quer ver o rosto dele ?’, perguntou uma jovem, ‘a foto está no Twitter’”. E – finaliza – a colegial “mostra sem muita emoção a cabeça decepada e ensanguentada de seu professor”.

A outra face da mesma moeda foi flagrada no protesto em Paris, em que “Veronique, 56 anos” se disse muito preocupada: “Antes podíamos falar mais coisas. Vim porque não quero que nossa liberdade de pensar seja tomada por outros. Sermos capazes de nos expressar e debater em nosso país sem sermos acusados de racismo”.

Realidade diante da qual muitas vozes mais ponderadas pedem que a França assuma medidas concretas para a dessegregação das comunidades muçulmanas e de outros imigrantes, que é a realidade atual nos subúrbios de Paris.

Outro aspecto da questão, que o governo francês prefere varrer para baixo do tapete é a própria responsabilidade da França para que o extremismo, sob a folha de parreira da fé islâmica, tenha chegado até onde chegou.

Como fez e ainda vem fazendo na Síria. Onde os extremistas eram fantasiados como ‘moderados’, para justificar a operação de derrubada do presidente sírio Bashar Al Assad, e recebiam armas, dinheiro e cobertura na mídia. Também não havia enorme repulsa quando as cabeças degoladas eram de soldados de Assad.

Ou na Líbia, em que extremistas, muitos deles operando sob orientação direta francesa, e sob cobertura aérea da Otan, destruíram o país e seviciaram, lincharam e assassinaram o líder Muammar Kadhafi. Onde atualmente até a escravidão voltou.

Devastação que repete o que foi feito, no Afeganistão, na década de 1980, para barrar uma revolução que distribuía terra aos camponeses e assegurava os direitos das mulheres – a primeira manifestação do “Islã Americano”.

Em que os serviços secretos sauditas e paquistaneses, mais os mais extremistas imãs já vistos, operavam sob orientação da CIA o que ficou conhecido como Al Qaeda. Que depois saiu de controle.

Como se repetiria depois, na Síria/Iraque, em relação ao ‘Estado Islâmico’.

Na operação de esquartejamento da Iugoslávia na década de 1990, os ‘jihadistas’ também eram bem-vindos em Paris ou Washington, que olhavam para o outro lado quando Belgrado publicava fotos de cabeças de iugoslavos decepadas pelos novos ‘combatentes da liberdade’.

Paris também segue vendendo armas aos sauditas e seu genocídio no Iêmen. De modo que a conversa de Macron sobre o “Iluminismo” e os “valores da República” deve ser observada com o devido desconto.

A França também está atolada no Sahel e experimentando o conhecido ditado do “feitiço virar contra o feiticeiro”. O Sahel – até os franceses entrarem na agressão da Otan à Líbia – era bem mais estável.