Ministro das Finanças Le Maire: “A União Europeia deve constituir sua independência estratégica”

“Os nossos parceiros europeus têm que abrir os olhos” para o fato de que “não podemos continuar a contar com os Estados Unidos para garantir a nossa proteção estratégica”, ressaltou na quinta-feira (23) o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, um peso pesado no governo do presidente Emmanuel Macron.

A declaração foi feita à emissora France Info, no dia seguinte ao telefonema de Biden a Macron, que resultou na decisão de Paris de enviar de volta a Washington na próxima semana o embaixador chamado para consultas e na programação para outubro de “consultas aprofundadas” visando restaurar “a confiança”.

A convocação, sem precedentes, do embaixador francês para “consultas”, considerado o gesto mais extremo no terreno da diplomacia, havia sido determinada por Paris após o anúncio do cancelamento, pelas costas da França, do ‘contrato do século’ de US$ 66 bilhões de submarinos convencionais franceses para a Austrália, substituídos por encomenda de submarinos nucleares norte-americanos, em meio ao anúncio da formação de novo pacto bélico no Pacífico (Aukus), cujo alvo qualquer um percebe ser a China.

“A primeira lição que se deve retirar do episódio do cancelamento do contrato de fornecimento de submarinos é que a União Europeia deve construir a sua independência estratégica”, enfatizou Le Maire.

Na opinião dele, “é um erro” acreditar, como a primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, que os Estados Unidos continuarão a proteger os europeus em quaisquer circunstâncias. “Se amanhã houver um enorme problema de imigração ilegal, se houver um problema de terrorismo vindo do continente africano, quem nos vai proteger? Só nós. Só podemos contar conosco próprios”, acrescentou.

Segundo a análise do ministro francês, os EUA “têm apenas uma preocupação estratégica, que é a China, e conter o poder crescente da China”. Neste contexto, “os seus aliados têm de ser dóceis”.

Le Maire afirmou que, embora se tenha dado esse passo para a conciliação, o telefonema de Biden a Macron, este tipo de disputa “deixa sempre vestígios porque foi tomada uma decisão brutal”. Ou, nas palavras do surpreendido ministro francês das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, uma “facada pelas costas”

O golpe tinha ainda outros agravantes: a França irá a eleições, em que a situação de Macron não é propriamente confortável, o país assume a presidência rotativa da União Europeia com o intuito de discutir maior autonomia europeia no terreno da defesa e coincidiu com a divulgação, pela UE, da ‘estratégia’ europeia para o Indo-Pacífico.

Assim, não é de surpreender que, da esquerda à direita, tenham havido manifestações de discordância com o que consideram a ligeireza com que Macron parece disposto a digerir a ofensa. François Asselineau, da União Patriótica Francesa, postou um vídeo de alguém que infla um balãozinho, que sai rodopiando, se esvazia e cai.

Eric Ciotti, candidato às primárias dos republicanos, na esteira do telefonema, voltou a exigir a saída de Paris do comando integrado da Otan “para reconquistar [sua] independência e [sua] soberania”.

O candidatíssimo líder da França Insubmissa, Jean-Luc Melenchón, optou pelo escracho no Twitter: “Macron exibe sua coleira à França humilhada”. Antes, classificara o telefonema de “rendição incondicional” de Macron.

No próprio ministério de Macron, as reações haviam sido enfáticas. Clemente Beaume, ministro das Relações Europeias, em entrevista no início da semana à emissora France24 exortou a União Europeia a impulsionar a “autonomia estratégica” em relação aos EUA, a “fortalecer [suas] capacidades de reflexão, autonomia estratégica e defesa”, a exemplo de agora do posicionamento do ministro Le Maire.

“Porque os americanos garantiriam a nossa defesa [nesta] questão? Cabe-nos a nós fazê-lo!”, disse Beaume, sublinhando que os europeus têm “a perícia, os meios financeiros e a capacidade para fazê-lo na Europa”. Sobre a atitude do governo britânico, ele acrescentou que, ao deixar a UE, Londres “retornou ao rebanho americano com uma forma aceita de vassalagem”.

O chanceler Le Drian falou com seu homólogo Antony Blinken após o telefonema Biden-Macron. Comunicado francês sobre esse intercâmbio, sem maiores detalhes, registrava Le Drian dizendo que “um primeiro passo foi dado” [o telefonema de Biden] “mas a saída da crise entre nossos dois países levaria tempo e exigiria ação”.

Na semana passada, o chanceler francês Le Drian havia sido o interlocutor mais direto da indignação francesa.

“Esta decisão unilateral, brutal e imprevisível é muito parecida com o que o Sr. Trump costumava fazer. Soubemos brutalmente, por uma declaração do presidente Biden, que o contrato entre os australianos e os franceses foi rompido e que os Estados Unidos proporão aos australianos um acordo nuclear de conteúdo desconhecido. … Não é assim que se tratam aliados ou outras potências que desejam desenvolver uma estratégia indo-pacífica coerente e estruturada.”

Le Drian disse ainda que os EUA “estão mudando seus interesses fundamentais. Eles estão renegando certo número de promessas que fizeram em nível global, e há uma ligação real entre o Afeganistão e o que acabou de acontecer com o acordo da Austrália”.

E concluiu: “Tudo isso nos leva a perguntar o quão forte é a aliança com os Estados Unidos”, disse ele. “Os verdadeiros aliados falam uns com os outros e se respeitam. Não foi isso que aconteceu.”

Jornais como o Le Monde compararam o episódio à crise nas relações EUA-França de 2002, quando Paris, Berlim e Moscou se opuseram aos planos dos EUA de invadir o Iraque: “É a guerra do Iraque (2003), lançada pelo governo Bush, a última crise de tal magnitude ? Após a retirada caótica e unilateral dos EUA do Afeganistão, é um novo aviso para os europeus construírem sua soberania estratégica, especialmente no Indo-Pacífico”.

Questões sobre as quais a ministra da Defesa de Macron, Florence Parly, tentou argumentar perante a Assembleia Nacional, dizendo não acreditar que valia a pena “bater a porta da Otan”, mas acrescentando que a “razão de ser da Otan não é o confronto com a China, mas sim a segurança transatlântica”.

Ela anunciou que na próxima cúpula da Otan em Madrid, a França proporia uma atualização “em linha com a bússola estratégica europeia de fortalecer a defesa da Europa”. “Ser aliado não é ser refém dos interesses do outro”, acrescentou.

O documento da ‘estratégia da União Europeia para a região Indo-Pacífico’ observava que a UE é o “principal investidor” e um “parceiro natural” na região Indo-Pacífico. “Juntos, o Indo-Pacífico e a Europa respondem por mais de 70 por cento do comércio global de bens e serviços, e mais 60 por cento dos fluxos de investimento direto estrangeiro.”

O documento chamava ainda a União Europeia a “prosseguir o seu compromisso multifacetado com a China” e a “proteger os seus interesses essenciais” lá, ao mesmo tempo em que acenava à manutenção da colaboração com “parceiros que já têm abordagens Indo-Pacífico” – leia-se Washington e Londres.

Por sua vez o jornal Le Humanité, que expressa pontos de vista próximos aos comunistas franceses, assinalou em editorial que, no lugar da “resposta contundente” a crise diplomática “esvaziou-se como um balão”.

Na análise do Humanité, “para virar a página sobre o escândalo do submarino, o presidente francês barganhou por ajuda para se livrar do atoleiro do Sahel”, o que chamou de “ilusão”.

Pior, Macron estaria acreditando que Biden “lhe permitirá relançar o seu grande sonho de um pilar europeu dentro da própria Otan, que seria a promessa de uma maior presença da União Europeia na região Indo-Pacífico”.

O jornal observou que as promessas “são vinculativas apenas para aqueles que acreditam nelas”. O Pentágono – acrescentou – nunca compartilhará seu poder absoluto sobre a Aliança Atlântica. “Pelo contrário. Para proteger o muito influente complexo militar-industrial dos Estados Unidos, sua estratégia deriva da corporalização dos exércitos europeus”.

Como um aspecto positivo dessa crise, o Humanité assinalou ter vindo à tona o debate sobre a saída do comando integrado da Otan e inclusive sobre a saída da aliança pró-americana.

“A explosão de gastos militares, a proliferação de armas nucleares, a persistência de conflitos mortais que desestabilizam o mundo e as relações internacionais devem levar a França a rever seu papel e seu lugar dentro desta organização herdada da Guerra Fria. Os Estados Unidos, obcecados com sua rivalidade com a China, querem fortalecer esse instrumento de dissuasão e dominação”, enfatizou.

E concluiu: A França “teria tudo a perder se os seguisse nessa corrida precipitada e violenta”.