Flávio Dino, governador do Maranhão: "não quero repetir em 2022 a história de 2018"

Empenhado em construir uma frente ampla – que reúna a esquerda e partidos de centro –, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), diz que “ninguém tem força hoje para conter, sozinho, essa avalanche que está aí”. Segundo ele, a esquerda precisa “sentar com quem pensa diferente” para vencer as eleições.

“Não tem nada de pecaminoso”, diz, em entrevista à Folha/UOL, o governador comunista, que se define como um “militante antibolha”. “O Brasil vive uma conjuntura de trevas. Há uma ameaça objetiva à vida democrática, à dissolução da nação”, avalia. “Tenho responsabilidade com o Brasil e, por isso mesmo, não fico olhando preconceitos e rótulos. Sei o tamanho dessa ameaça.”

Confira trechos da entrevista:

UOL/Folha: Como seria a frente que o senhor defende para superar a polarização nas eleições?

Flávio Dino: Num quadro de defensiva estratégica – e é o que vivemos desde 2013 e, mais acentuadamente, desde o impeachment –, temos de reunir forças para retomar as condições de apresentar nosso programa, transformá-lo em vitorioso e implementá-lo. Quando não conseguimos fazer isso sozinho, buscamos alianças, como fizemos no Maranhão. Reuni nove partidos em 2014 para enfrentar o político mais longevo da vida brasileira, o ex-presidente e ex-senador José Sarney. E agora [em 2018], para enfrentar a ex-governadora Roseana Sarney, reunimos 16 partidos exatamente porque reconhecemos que era necessário reunir forças para continuar mudando a realidade do nosso estado. O fundamental da esquerda brasileira é se redesenhar organicamente – algo similar à frente ampla uruguaia, à Concertación Chilena, à aliança socialista em Portugal. Agregar não só filiados aos partidos – mas também pessoas que não têm identidade partidária. O principal desafio da esquerda é reconectar nosso coração, nosso ideário, com o sentimento popular de quem não necessariamente compartilha da nossa ideologia.

Qual seria o papel de Lula? Ele seria o líder dessa frente?

Se Deus quiser – e sou um homem de muita fé, rezo todos os dias. Lula é a maior liderança popular da vida brasileira. Você pode fazer cem pesquisas e, em cem, dará Lula como um dos três melhores presidentes da vida brasileira. É muita coisa, é muita coisa. E ele está vivo, graças a Deus. É claro que meu campo político se referencia na liderança do ex-presidente Lula e, por isso, ele tem um papel muito grande. Espero que Lula faça os movimentos necessários. Sem dúvida, cabe a ele – mais do que a mim ou a qualquer outra pessoa – liderar esse rearranjo de forças.

O senhor entraria numa chapa com o PT, com Lula ou Fernando Haddad, em 2022?

Está muito longe para discutir chapa para 2022, ainda não fui nem convidado. É desrespeitoso discutir chapa agora porque significa estabelecer uma de linha de chegada, antes mesmo da partida. Acaba excluindo pessoas. Minha premissa, minha pré-condição, é que agora, nas eleições municipais de 2020, temos de atuar juntos no maior número de cidades quanto possível, seja em primeiro, seja em segundo turno. Me refiro ao campo da esquerda – mas também à vertente liberal social-democrata da vida brasileira. Ou seja, em segundos turnos, queremos o apoio do centro – e também apoiá-lo nas cidades em que ficarmos fora do segundo turno. É hora de fazer com que a esquerda retome a iniciativa na sociedade. Nunca tivemos um período de tanto retrocesso em direitos. Nem na ditadura militar houve tanta destruição do direito dos mais pobres. É difícil dizer isso, porque sou visceralmente crítico da ditadura militar. Temos de conter isto – e não vai ser a esquerda sozinha, não vai ser o PT, ou qualquer outra liderança.

O antipetismo não foi uma causa disso?

O antipetismo existe, mas foi apropriado e utilizado como instrumento de atalho para chegar ao poder. Isso não é imutável. Em 2018, perdemos a eleição. Hoje, já temos outra conjuntura. Pesquisas recentes mostram que Lula teria todas as condições de ganhar uma eleição, se disputasse hoje contra qualquer candidato. Daqui a pouco, a sociedade vai ver que os seus problemas não se referem aos desacertos que, infelizmente, ocorreram no passado de Dilma e Lula. A política hoje está no caminho errado, de negação de oportunidades, de retrocesso de direitos. Mesmo aqueles que odeiam o PT vão considerar que esse caminho não é capaz de levar o Brasil para onde nós queremos.

É possível a frente sair do papel?

Claro, porque ela já saiu do papel em outros momentos – como na transição da ditadura para a democracia e na campanha da anistia, onde estavam empresários e militares do centro democrático que hoje são do PSDB ou MDB. Não há muro intransponível. Sou um militante da esquerda brasileira, defendo uma perspectiva social, os mais pobres, a soberania do País. Se outras pessoas querem se somar a isto, é nosso papel trazer. Prefiro Luciano Huck dialogando comigo do que com Bolsonaro. Isso é elementar. Se ele está dialogando com outro campo, significa dizer que estamos alienando não apenas ele, mas afastando segmentos sociais que se sentem representados por ele. Quando me reúno com Fernando Henrique, Luciano ou Rodrigo Maia, não estou reunido com o indivíduo – estou mostrando que o segmento social tem representatividade. Eles possuem também legitimidade no jogo político e sempre foi assim. Não é hora de sectarismo. Você pode afirmar sua identidade e ter flexibilidade. Não tem nada de pecaminoso em sentar com quem pensa diferente de você.

Como foi a conversa com Luciano Huck?

Muito positiva. Ele foi muito gentil, apresentou uma concepção dele acerca da necessidade de haver diálogo na vida brasileira. Conversamos um pouco sobre essas experiências. Eu lhe convidei para visitar o Maranhão. Não houve debate sobre 2022 porque não tem sentido prático. Temos uma estrada muito longa até lá.

O que Huck e o grupo dele pensam é muito divergente do que a esquerda pensa?

Certamente é bastante divergente do que pensamos. Luciano não é militante da esquerda brasileira. Ele é do campo liberal. As pessoas com as quais ele dialoga são desse campo, com outra visão em relação aos problemas econômicos do Brasil. Agora, isso exclui o diálogo, a possibilidade de, num segundo turno, um apoiar ao outro? No segundo turno, você escolhe aquele que está mais próximo da sua concepção.

O senhor acredita que essas pessoas vão apoiá-lo?

A origem filosófica do liberalismo político tem mais proximidade conosco do que com a extrema direita. As declarações de Direitos Humanos são conquistas liberais, a separação de poder e democracia. Tancredo Neves era liberal – e qual o problema de a esquerda ter apoiado? Ulisses Guimarães, liberal enorme. O Brasil vive uma conjuntura de trevas. Há uma ameaça objetiva à vida democrática, a dissolução da nação. O nazismo está entronizado como política de Estado. O vídeo desse secretário [Roberto Alvim] não é algo isolado. É preciso ter responsabilidade. Sei do tamanho dessa ameaça. Todos os democratas do Brasil têm a obrigação de saber o risco. Às vezes, a gente ri um pouco, que é uma característica positiva, mas ele tem um lugar na construção dos discursos. Hitler, no início, também era minimizado com algo anedótico e virou o que virou.

O senhor vai furar a chamada “bolha da esquerda”?

Não acho que exista propriamente essa bolha como algo objetivo. Há pessoas que defendem a bolha, concordo. Mas há muitas pessoas que compartilham da minha visão. Não quero deixar a tal da bolha cristalizar porque é ruim para o Brasil. Se você polariza de modo insanável, cultua extremismos, não está sendo fiel ao Brasil, que é um país de 200 milhões de pessoas, plurirregional, pluriétnico, multirreligioso. Hoje sou um militante da esquerda, um militante antibolha, se for possível essa definição.

O senhor não faz um mea-culpa na derrota da esquerda, em 2018?

Houve um processo muito confuso. O ex-presidente Lula foi arbitrariamente preso em abril, faltando pouco tempo para eleição. Depois, não houve tempo para encontrar uma forma de evitar uma situação de isolamento. Mesmo assim, no pior momento, a chapa Haddad/Manuela fez 45% dos votos no segundo turno, o que mostra que nem tudo foi tão errado assim. A ideia de autocrítica acaba sendo injusta. Nas condições adversas que o Haddad estava, ele cumpriu um grande papel em jornada.

Haddad e a esquerda não erraram em nada?

Claro, mas errar é humano. Errou sobretudo em não ter conseguido ampliar, no segundo turno, na disputa com Bolsonaro. Infelizmente, agregamos menos apoio do que ele. Não houve uma preparação para isto – talvez porque não houvesse a compreensão plena de que isso é imprescindível. Agora está demonstrado que é – e não quero repetir em 2022 a história de 2018. Aí não precisa nem de eleição, a gente perde logo de saída.

Há uma relação cada vez mais próxima da política com a religião no governo Bolsonaro. Como o senhor vê esse cenário?

A religião é algo positivo para a sociedade, é algo inerente à vida humana, desde seus primórdios. Tenho minha crença religiosa e a pratico, mas não posso transformar minha concepção religiosa em imposição para as outras pessoas. A laicidade é um mecanismo de proteção da liberdade religiosa de todos os cidadãos, de todas as igrejas, e deve ser preservada. Isso não significa um Estado antirreligioso – mas um Estado que convive, de modo equânime, com todas as religiões. O que estamos vendo é uma fronteira sendo ultrapassada por parte de alguns segmentos extremistas – o que acaba sendo antidemocrático, uma violação à liberdade religiosa.

Há uma dificuldade da esquerda de se aproximar do segmento evangélico?

No lulismo, várias igrejas – inclusive evangélicas e católicas – estiveram bem próximas ao campo da esquerda. Ninguém mais se preocupou com a temática da igualdade do que Jesus Cristo. Com a nossa visão de mundo – de partilha equânime da riqueza, de oportunidades –, temos muito mais proximidade objetiva com o cristianismo do que segmentos que defendem a brutalidade, a barbárie, a venda de órgãos escravihumanos, o nazismo, o assassinato de pessoas, a dão. Isso é anticristão. Temos de procurar retomar esse fio condutor que nos liga à construção da liberdade religiosa de várias igrejas no Brasil.

Pautas como aborto e outras bandeiras que a esquerda costuma levantar são convergentes com essa população?

Eu, por exemplo, sou contra o aborto e contra as drogas. Há pessoas de esquerda com concepções diferentes. Ser contra não significa defender a ideia de que, se criminalizar, vai resolver. Você tem que procurar as convergências. O principal, neste momento, é a agenda social, o emprego, a legião de pobres e excluídos. Compareço frequentemente a eventos religiosos e vejo que isso tem muita intercessão com aquilo que a fé cristã defende.

A segunda ministra mais popular do governo é a Damares, que é evangélica. Como como o senhor vê o apoio às pautas dela?

Ela seguramente representa um segmento e é saudável que todos os segmentos tenham as suas lideranças e representação dentro do jogo democrático. O que não pode haver é a beligerância, a exclusão, agressão. Os governos não podem fazer proselitismo religioso.

Alguns aliados dizem que não seria possível a eleição de um integrante do Partido Comunista do Brasil para presidente. Também dizem que o comunismo é anticristão.

Se hoje, lamentavelmente, esse preconceito ainda é repetido, é por um terrível eco das heranças ditatoriais que o Brasil infelizmente carrega. São os ecos do DOI-Codi, da Operação Bandeirante e da tortura que fazem com que esse preconceito seja alimentado. Mas ele é destituído de base objetiva. Os mesmos que dizem que não posso concorrer à Presidência pelo PCdoB são aqueles que achavam que eu jamais seria governador do Maranhão pelo PCdoB. E nós vencemos duas eleições em primeiro turno, com o apoio de católicos, evangélicos e outras religiões. Isso não constitui um obstáculo, e eu já testei empiricamente. Não é verdade, nos dias de hoje, que o PCdoB seja um partido antirreligioso. Não vou discutir o que, no século 19, no país X ou Y foi feito. Nós somos um partido que tem pluralidade de várias religiões.