Familiares de membros do PCdoB mortos na ditadura recebem novas certidões de óbito
Desde que o governo brasileiro saiu das mãos da extrema direita e passou para as forças populares, democráticas e de esquerda, em 2023, importantes pautas ligadas aos direitos humanos e luta por justiça, memória e verdade ganharam novo fôlego. Entre ações tomadas desde então está a retificação das certidões de óbito de mortos pela ditadura.
Um conjunto de 26 novos documentos foi entregue na quarta-feira (3), durante 2º Encontro Nacional de Familiares de Pessoas Mortas e Desaparecidas Políticas durante a Ditadura Militar Brasileira (Enafam), em Brasília, dando continuidade ao processo de reconstrução da memória coletiva do país acerca do que de fato ocorreu nos “anos de chumbo”.
A cerimônia ocorreu nesta quarta-feira (3), durante 2º Encontro Nacional de Familiares de Pessoas Mortas e Desaparecidas Políticas durante a Ditadura Militar Brasileira (Enafam), em Brasília.
Entre as certidões recém-entregues estão as dos militantes do PCdoB Cilon Brum, Divino Ferreira de Souza, João Carlos Haas Sobrinho e os irmãos Nelson Lima Piauhy Dourado e José Lima Piauhy Dourado. Combatentes na Guerrilha do Araguaia, todos eles foram mortos por agentes da ditadura na região Norte no início dos anos 1970. Seus corpos nunca foram encontrados.
“Conquistar a certidão em que consta que a responsabilidade das mortes são do Estado brasileiro é uma luta de muitos anos. A primeira que recebi resulta da Lei 9.140/95 e a segunda, foi em 2018”, conta Sônia Haas, irmã do médico João Carlos Haas Sobrinho.
A lei em questão estabeleceu o reconhecimento, como mortas, das pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Já em 2018, passou a ser possível o familiar retificar o documento. “Mas, agora essa vem mais completa, pois explicita o papel do Estado e nivela as certidões a que todos temos direito — com isso, também ampliou o número de pessoas que as recebeu e isso é muito importante”, acrescenta.

Sonia ressalta que “a cada ato, a cada homenagem aos nossos familiares, nós sentimos como se fosse uma ratificação das suas mortes. É como se a gente escutasse sempre: ‘Sim, está morto’. Isso sempre cala fundo na gente, mas sabemos que é preciso seguir lutando. Por isso, vamos continuar em busca de abertura dos arquivos, dos remanescentes ósseos e de reparações”.
Reconstrução histórica
O trabalho de reconstrução da história e da passagem das vítimas da ditadura pelos aparelhos de repressão do Estado, bem como o reconhecimento de que foram torturadas e mortas pela ação de agentes públicos a serviço da ditadura, resulta do trabalho de décadas, com avanços e muitos retrocessos impostos pelos que acobertam e defendem o autoritarismo.
O esforço de reconstituir a verdade e buscar por justiça para essas vítimas teve início com a atuação incansável dos familiares, de instituições, partidos e movimentos sociais ligados à causa, chegando às ações e iniciativas de órgãos no âmbito da Justiça (como os Ministérios Públicos) e governamentais, com destaque para a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a Comissão Nacional da Verdade (CNV), bem como a Comissão de Anistia.
O relatório final da CNV, apresentado em 2014, apontou para a existência de ao menos 434 mortos pela ditadura.
Mesmo sem encontrar os corpos, mas tendo como base centenas de documentos e relatos advindos desses trabalhos, foi possível, ao menos, certificar que aquelas pessoas foram, de fato, assassinadas.
A importância das certidões
Após decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de dezembro de 2024, encampada pelo governo Lula, as certidões passaram a ter, como causa, a morte “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
A entrega desses documentos vem sendo feita pelo Ministério dos Direitos Humanos e pela CEMDP, em cerimônias públicas. Até agora, 191 documentos corrigidos foram disponibilizados nesses atos.
À primeira vista, a mudança na descrição da causa da morte pode parecer mera questão burocrática. Mas não Brasil, onde não houve um processo de justiça de transição da ditadura à democracia que garantisse o julgamento e a punição dos responsáveis pelos crimes cometidos, nem ações de memória e verdade que não deixassem dúvidas à sociedade e às futuras gerações de que o período foi marcado por práticas brutais, feitas de maneira planejada e sistemática por agentes do Estado a mando dos ditadores de plantão.
Além disso, o Brasil também nunca mexeu nas estruturas militares — seja na formação, seja nos privilégios de comandantes, seja na desmilitarização das polícias —, bem como nunca entregou os remanescentes ósseos de muitos dos desaparecidos daquele período.
O resultado de todo esse processo é uma sociedade que, em boa parte, ainda minimiza o papel da ditadura no atraso vivido em várias esferas (social, política e econômica); que acha direitos humanos “coisa da esquerda para acobertar bandido” e cuja estrutura estatal ainda hoje conta com agentes, sobretudo nas polícias, que atuam com brutalidade e truculência contra a população, especialmente quando se trata de negros e pobres.
Por tudo isso, iniciativas como a entrega das certidões se revestem de grande importância e simbolismo, para familiares e para a nação. Não porque, em si, resolva os problemas e a dor até hoje vivenciados por quem perdeu alguém que estava lutando contra o arbítrio. Mas, porque reescreve, de maneira oficial e com reconhecimento da União, que seu ente foi torturado e morto — não foi “atropelado” ou se “suicidou” como diziam atestados falsos de muitas dessas vítimas.
“Estamos vivendo uma democracia e a democracia tem que ser consolidada a todo momento. A entrega dessa certidão pelas mãos da ministra Macaé Evaristo e o pedido de desculpas pela voz da doutora Eugênia Gonzaga, presidenta da CEMDP, marcam um momento histórico de evolução rumo a uma democracia consolidada”, aponta Sônia.
Para ela, “o Brasil tem uma ferida muito grande em relação a esse tempo obscuro da ditadura, que precisa ser esclarecido para que o país evolua em busca da sua memória e para que aquelas atrocidades não se repitam”.




