Pessoas foram mortas em operação militar na refinaria Senkata

“Em Senkata os militares miravam, acertavam e riam muito quando alguém caía. Estávamos indefesos, não tínhamos armas, nada. Eles vieram com tanques e helicópteros, os mesmos que o presidente Evo Morales os havia equipado para defender nossas fronteiras”. O relato do massacre em El Alto foi dado em seu leito por Ruben Hidalgo, uma das vítimas, ainda hospitalizado. Com a tíbia completamente estraçalhada por um tiro de fuzil, ele relatou tudo o que viu e viveu naquela terça-feira, 19 de novembro, com a convicção de que “é preciso lutar por justiça”.

Naquele dia, “em que havia muita fumaça e helicópteros” em El Alto, a autoproclamada presidenta Jeanine Áñez determinou uma megaoperação policial-militar para retomar a unidade da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), ocupada por manifestantes contrários ao golpe.

Nacionalizada pelo governo de Evo Morales, a estatal é um dos símbolos maiores do orgulho e da autoestima bolivianas, e tem sido central no aporte ao desenvolvimento soberano e à redistribuição de renda.

Trabalhador da construção civil e chofer, Ruben estava sem ter o seu ganha pão diário, pois tudo estava paralisado do ponto de vista das obras e dos caminhos, devido aos bloqueios.

“Para ganhar algum dinheiro, eu e minha esposa decidimos vender suco. Deixei ela com um balde e avancei com dois para mais perto dos manifestantes. Foi tudo muito rápido, quando vi estávamos sendo perseguidos por tanques. Fizeram uma pequena pausa e nem senti a dor. Voltei a cair. Vi que não conseguir ficar em pé. Então uns moradores me subiram de carona numa bicicleta e me levaram a um centro de saúde muito humilde onde nos disseram que não tinham o equipamento necessário para fazer aquele tipo de cirurgia. E cheguei ao Hospital Holandês e fui privilegiado de ter sido salvo porque muitos morreram pelo sangue que perderam”.

“Diferente dos profissionais de saúde que foram extremamente ágeis e excepcionais, salvando nossas vidas”, relatou Ruben, “havia gente na porta que agredia e até roubava nossos familiares, e eu me senti impotente”.

Sua esposa, Marley Losa, recordou com muita raiva de ter o seu celular roubado, “com todas as fotos e filmagens daquela covardia” e que logo mais viu no canal 4 alguns dos vídeos sendo utilizados fora de contexto.

“Lembro que os helicópteros sobrevoavam e que as pessoas gritavam: ajudem, e se desesperavam dizendo haver uma criança baleada. Não deu tempo. Seis tanques baixaram e começaram a disparar. Os helicópteros também lançavam gases e disparavam. Eu me joguei no chão e, antes que o meu marido conseguisse se proteger, foi atingido. Tentaram cozer a perna para parar a hemorragia”, disse Marley.

O comando racista era tão evidente, explica Marley, “que havia um ódio dirigido especialmente contra as senhoras de pollera (as saias indígenas), que os soldados faziam com que se ajoelhassem. Um senhor mais velho se ajoelhou e abriu os braços suplicando para que o matassem, mas poupassem os seus filhos, os jovens, que tinham muito ainda para viver. Mas os militares os mataram a sangue frio. E foram muitos”.

O número de vítimas relatado pelas testemunhas destoam completamente das cifras oficiais. É ela quem reitera que “são tantos os desaparecidos, os corpos jogados no monte Ilimany, no vale Achocalla e no monte de Villa Ingenio”.

“O fato é que todos têm medo de falar, por nada no mundo querem se arriscar, mas o fato é que há muito mais mortos. Logo vão me parar porque os policiais e militares estão vendidos”, acrescentou.

De acordo com Marley, “diferente do governo de Evo, em que tínhamos as nossas coisas e vivíamos bem, hoje, para eles, os humildes não temos boca, somos inservíveis, um lixo”. “Agora que já tiraram Evo podem matar a troco de nada e contam com o silêncio cúmplice dos meios de comunicação local para esconder a verdade. Prova disso é que depois do massacre desviaram o trânsito para fazer uma varredura e limpar as provas e ninguém informou sobre isso”, relatou.

Marley disse ainda que seus filhos, um casal que preferiu não dizer o nome, “por medo de que sejam perseguidos”, ainda não foram informados da gravidade das feridas do pai. “No Acordo de Paz o governo disse que ia custear os gastos das famílias com a saúde, mas nós estamos pagando do próprio bolso vários medicamentos que o hospital não dispõe. Nós não temos mais dinheiro e Ruben está aguardando a placa ortopédica para que possa voltar a andar”, frisou.

Estudante e trabalhador de 18 anos, Félix Calle Figueroa ajudava a mãe na venda de chunio, a gostosa papa desidratada dos aymarás, “quando do nada senti uma bala na minha perna”. “Eu não sabia de onde vinham os tiros, só que eram muitos, como muitos eram os militares. Eu sangrava de montão e me levaram para uma casa em que um enfermeiro me salvou amarrando um pano bem forte para que parasse a hemorragia. Não lembro de mais nada”, descreveu.

Depois disso denunciou que viu quatro policiais indo até o hospital para ameaçar de que seria levado até a penitenciária em que teria de responder por vários crimes. “Tenho uma bala alojada numa zona de risco, ao lado do testículo, e que dizem que vai demorar mais de um ano para o corpo repelir ou se adaptar. Dizem que vamos ter de responder por processos. Vou perder o ano letivo e estou me sentindo muito mal. Porque agora não temos mais um presidente, temos ditadores, gente que queima nossa Whipala, que nos discrimina”.

Neste sábado, o “ministro” da Defesa, Fernando López, voltou a afirmar que “o Exército não disparou um só projétil em Senkata”, ao mesmo tempo em que o governo alega que está pagando os gastos clínicos das vítimas.