Macron e Trump durante a animada cúpula dos 70 anos da Otan em Londres.

 A cúpula dos 70 anos da Otan chega ao fim na quarta-feira (4) tendo como principal destaque o entrevero entre os presidentes Emmanuel Macron, da França, e Donald Trump, dos EUA, sobre a “morte cerebral” da aliança agressiva, anunciada pelo francês no mês passado.

Macron, na cara de Trump, reafirmou seu diagnóstico, enquanto o presidente norte-americano dizia que as declarações do presidente francês haviam sido “muito, muito desagradáveis e desrespeitosas”, acrescentando logo depois a qualificação de “muito insultantes”.

Trump também xingou de “delinquentes” os países da Otan que seguem resistindo ao aumento que decretou do pagamento pela ocupação, que ele exige que seja de 2% do PIB (claro que para gastar em armas de fabricação norte-americana, senão, qual é a graça que tem?). “Não é correto tirar proveito da OTAN e também tirar proveito do comércio, e é isso que acontece. Não podemos deixar que isso aconteça”, insistiu o biliardário.

Ele ainda asseverou que “ninguém precisa mais da Otan que a França”. Declaração que deve ter feito o grande De Gaulle se remexer no mausoléu.

Criada para “manter os americanos dentro; os russos, fora; e os alemães por baixo”, na clássica definição, a Otan vê sua crise se agravar diante dos gestos de Trump de exigir que os países europeus paguem mais pela ocupação por tropas e bases ianques e de rasgar o Tratado INF, que desde 1987 banira do teatro europeu os mísseis nucleares de alcance curto e intermediário que mantinham as capitais europeias a não mais que minutos da hecatombe nuclear.

Na célebre entrevista à revista The Economist de novembro, o presidente Macron havia apontado que a atual atitude dos EUA – sob Trump, evidentemente – havia colocado a Europa “à beira do precipício” e levado à necessidade de que os europeus tivessem uma política de defesa própria, voltasse a atuar como uma potência geopolítica independente e que reiniciasse o diálogo com a Rússia.

Nas palavras de Macron, “o que estamos experimentando é a morte cerebral da OTAN”.

O bate-boca continuou, agora no terreno econômico, com Trump atacando Paris pelo recém criado imposto sobre serviços digitais, o que, para Trump, discrimina empresas dos EUA, como o Google, a Apple, o Facebook e a Amazon, que deveriam poder manter sua atual evasão fiscal impunemente.

Na segunda-feira, o representante americano para o Comércio disse que os EUA vão retaliar e impor tarifas em produtos como queijo e vinho. A resposta veio do ministro das Finanças da França, Bruno Le Maire, que chamou a ameaça norte-americana de “inaceitável”, e alertou que, “em caso de novas sanções norte-americanas, a UE estaria disposta a respondê-las”. Há ainda o imbróglio sobre os subsídios à Boeing e à Airbus.

O ponto de partida para a troca de safanões entre Macron e Trump foi a iniciativa de Washington, sem avisar Paris, de retirar seus soldados da fronteira com a Turquia, na prática deixando na mão as tropas especiais francesas ilegalmente no norte da Síria, sua ex-colônia, envolvidas na intervenção a pretexto de combate ao terrorismo, assim como abandonando as milícias curdas.

Desde o colapso da União Soviética, a Otan tem se dedicado a uma expansão para leste, isto é, anexando países e se aproximando das fronteiras da Rússia, o que adquiriu um tom dramático com o golpe na Ucrânia, ao mesmo tempo em que se repetem as provocações e sanções contra Moscou.

Possivelmente a parcela principal do establisment norte-americano continua considerando que, para deter a ascensão da China e deter a própria decadência, precisa primeiro quebrar a Rússia, que funciona como a retaguarda estratégica de Pequim, dentro da Doutrina Primakov.

Macron tem evoluído para que a questão central para os europeus é manter a paz no continente, o que exige um diálogo com a Rússia.

A França foi o único país europeu que acenou positivamente para a proposta de Putin de moratória da instalação dos mísseis nucleares intermediários, com Paris propondo uma “nova arquitetura de segurança europeia”.

Macron inclusive respondeu à carta de Putin e divulgou o retorno, enquanto outros países europeus a rechaçaram ou simplesmente ignoraram. O presidente francês tem insistido em que é imprescindível restaurar os laços da União Europeia com a Rússia e advertido que isolar um país “profundamente europeu” será “um erro estratégico”.

Em uma ilustração do clima embaraçoso que envolve a cúpula, Macron, Johnson e os primeiros-ministros do Canadá e da Holanda foram flagrados em vídeo na recepção no Palácio de Buckinghan, com Justin Trudeau dizendo, e a princesa Anne ouvindo, que “acabei de ver o queixo do seu time cair no chão”, sobre a “conferência de imprensa de 40 minutos”.

Pelo Twitter, Macron capitalizou sua atuação no debate interno da Otan. “É um fardo que compartilhamos: não podemos colocar dinheiro e pagar o custo da vida de nossos soldados sem esclarecer os fundamentos do que a OTAN deveria ser”, registrou. “Acho que é nossa responsabilidade levantar diferenças que podem ser prejudiciais e ter um verdadeiro debate estratégico”, afirmou. “Tudo começou, então estou satisfeito.”

Várias centenas de manifestantes se reuniram na Trafalgar Square, em Londres, segurando cartazes onde se lia: “Joga Trump no lixo” e “Não ao racismo, não a Trump”. Protegidos pela polícia, um pequeno grupo de apoiadores de Trump, que usava bonés Make America Great Again e agitava bandeiras norte-americanas, aos berros gritava “construa o muro”. A cúpula da Otan está tendo outra serventia para Trump: não estar em Washington no momento em que a Câmara de Deputados dá os retoques finais para aprovar o processo de impeachment até o Natal.