Desde que Donald Trump assumiu a presidência dos Estados Unidos, as relações sino-estadunidenses entraram em um período de grande instabilidade. Se antes, a administração Obama adotava uma estratégia de contenção velada da ascensão chinesa, com Trump os Estados Unidos passaram para uma postura mais assertiva e de confronto aberto. A retórica anti-chinesa do período eleitoral rapidamente se converteu em orientação diplomática.
Por Gaio Doria, Diego Pautasso e Walter Sorrentino*Por um lado, há o recrudescimento do protecionismo estadunidense na tentativa de barganhar com a China diante dos gigantescos déficits comerciais. Desde o começo de 2018, quando o presidente estadunidense anunciou tarifas sobre produtos chineses, acirraram-se as contradições entre as duas maiores economias do mundo. Diversas tentativas de acordo foram feitas, mas os rompimentos de tréguas com novos anúncios e ameaças de retaliações tornaram-se uma constante e frustrando qualquer expectativa de solução.

Por outro, a Guerra Comercial parece ser apenas a face superficial de uma contradição de médio alcance pela liderança técnico-produtiva e, de longo alcance, pela liderança mundial no quadro de transição sistema.

É dentro deste contexto que a rivalidade sino-estadunidense ganha contornos complexos. O crescente unilateralismo e recurso à força dos Estados Unidos tem sido insuficiente para administrar as estruturas hegemônicas de poder num mundo cada vez mais multipolar.

No dia 4 de dezembro de 2019, Trump afirmou a repórteres que gosta da ideia de “esperar até depois das eleições para fechar um acordo”. Esta intenção não é por acaso. É uma estratégia deliberada onde os Estados Unidos pretendem aumentar a pressão sobre a RPC ao internacionalizar questões domésticas da China. Trump sinalizou apoio aos manifestantes de Hong Kong e o congresso estadunidense e se mobilizou para aprovar legislação em suporte aos protestos no território especial e aos mulçumanos separatistas de Xinjiang.

Evidentemente, a China vem lidando com retaliações e cercos em múltiplos níveis: acusações de desrespeito aos direitos humanos; apoio a separatismo no Tibet, Xinjiang e Taiwan; ameaça de escalada militar no Mar do Sul da China; forte cerco militar na região (Guam, Filipinas, Coreia do Sul, etc.), entre outros.

Não resta dúvida de que o processo de desenvolvimento da China é eivado de contradições, que são, aliás, motores de sucessivos ciclos de inovações institucionais no país. Não se realiza o mais notável processo de mobilidade social sem assimetrias. Contudo, desigualdades sociais, étnicas e regionais na China não são maiores que aquelas nos EUA. Registre-se que a potência liberal tem a maior população carcerária do mundo, gigantesca disparidade étnicas, sem falar no emprego na força em escala global.

Nesse contexto a declaração de Pompeo, Secretário de Estado estadunidense, no dia 2 dezembro, onde fala sobre os protestos na América Latina, expõe a hipocrisia e o duplo padrão do Ocidente liberal: “nós da administração Trump continuaremos apoiando os países que tentam impedir Cuba e Venezuela de sequestrar esses protestos e trabalharemos com governos legítimos para impedir que os protestos se transformem em tumultos e violências que não refletem a vontade democrática do povo.”

A ingerência – muitas vezes com amplas evidências- nos assuntos internos na América Latina, principalmente no Brasil, não parece incomodar o Senado estadunidense – tão preocupado em aprovar legislação sobre questões domésticas de outros países. Esta preocupação com a democracia, direitos humanos e liberdade é seletiva, só existe quando se coaduna com os interesses estratégicos dos Estados Unidos.

Enfim, o tensionamento é grave num quadro de crise do capitalismo, instabilidade política global e escalada de forças reacionárias. Trata-se de um cenário temerário próprio de épocas de transição sistêmica.