Sob fogo cerrado do que o jornal getulista Última Hora chamou de “sindicato da mentira”, João Goulart foi eleito vice-presidente da República em 1955. As votações para presidente e vice eram separadas, mas a chapa, encabeçada por Juscelino Kubitschek, uniu o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ao Partido Social Democrático (PSD). Na convenção petebista que aprovou a coligação, realizada na cidade de Foz do Iguaçu (PR), Goulart afirmou que a eleição de Juscelino garantiria a execução do “Programa Mínimo” do PTB.

Por Osvaldo Bertolino*

Segundo ele, esse “Programa” estava acima dos nomes “porque se inspirava no sacrifício daquele que hoje vive no coração do povo brasileiro: Getúlio Vargas”. “Tenho o dever de não deixar sem resposta nenhum desrespeito à sua memória. E o cumprirei até o fim”, prometeu.

Em uma mensagem pedindo aos trabalhadores que votassem na chapa PSD-PTB, Goulart disse que naquelas eleições o legado varguista estava em questão. “Todos juramos, ante o corpo inerte de Getúlio Vargas, lutar contra a reação e a prepotência, contra os exploradores nacionais e internacionais. Juntos prestamos o compromisso sagrado e de honra de defender com coragem e desassombro os direitos e as conquistas das classes trabalhadoras que devem constituir o alicerce de nossa organização partidária”, afirmou.

Goulart falou que na votação de 3 de outubro os trabalhadores deveriam marchar unidos votando nos candidatos que se identificavam com o povo e com os ideais trabalhistas “para que o sangue de Getúlio Vargas não tenha corrido em vão e o seu sacrifício tenha realmente o preço de um resgate”. “Ele disse: ‘O povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém’. A abolição dessa escravatura, o afastamento para sempre do manto negro do domínio da opressão, é um imperativo de nossos foros de povo livre e civilizado a que se processará com o concurso de todos os brasileiros progressistas e patriotas”, falou.

Naquela luta decisiva e importante para o futuro da “nossa querida pátria e para os destinos das gerações vindouras”, asseverou, “a nossa arma invencível é o voto”. “Desertar nessa hora incerta e decisiva é trair o povo e os nossos destinos históricos. A minha mensagem é para dizer-vos, trabalhadores meus irmãos, que, mais do que nunca, estamos convosco, entre vós, confundindo-nos com a vossa luta e sentindo os vossos ideais e as vossas aspirações. E não estamos sós. Estamos, agora e sempre, com Getúlio Vargas que, ao caminhar serenamente para a eternidade e ao entrar para a história, afirmou que continuaria ao nosso lado, batendo à nossa porta, para que sentíssemos em nosso peito, como agora estamos sentindo, a energia para a luta por nós e por nossos filhos”, complementou.

Carta de Getúlio

Goulart, de acordo com a revista Manchete, recebeu de Vargas, poucos antes do seu suicídio, uma importante missão. O presidente queria que ele fosse para longe do Rio de Janeiro, fugindo do perigoso clima de violência golpista que ameaçava o Palácio do Catete. “23 de agosto, nove horas da noite, no Palácio do Catete, Getúlio interpele João Goulart pela terceira vez. ‘Você ainda não viajou?’ E repete: ‘Não se esqueça que, depois de mim, você é o mais visado. Tome um avião e vá embora. E não abra a carta que lhe dei antes de chegar ao Rio Grande.”

Mas Goulart não queria deixar a cidade. Para fugir às sucessivas interpelações de Getúlio, refugiou-se no seu apartamento, na Avenida Rainha Elizabeth, onde já se encontrava vários amigos. Conversam até às primeiras horas do dia 24 e quando Goulart foi dormir o dia já estava quase amanhecendo. Às oito horas da manhã ele foi chamado para receber a noticia do suicídio de Vargas. “Jango abre os olhos, empalidece. A estupefação lhe tirou a voz. Veste-se devagar, calado”, narrou a Manchete. Mas quando estava no elevador, caiu num pranto solto. “Só no meio da viagem é que se lembra da carta que Vargas lhe entregara na véspera. Abre-a: ‘Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo…’”

Legado de Getúlio

Defendendo o legado de Getúlio, em entrevista ao jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, na Granja São Vicente, sua propriedade em São Borja (RS), ele disse que “a legalidade democrática levará os inimigos de Vargas à derrota”. E voltou a defender os trabalhadores. “A greve é direito assegurado pela nossa Constituição e, assim, arma legal que o trabalhador pode usar na conquista pacífica de seus direitos”, afirmou. “Se quando ministro do trabalho sempre estive ao lado dos trabalhadores, na luta pelas suas justas reivindicações, agora, mais do que nunca, reafirmo minha posição”, enfatizou.

Segundo ele, “os trabalhadores em nosso país sempre foram uma força de ordem e de legalidade democrática”. “Nunca atentaram contra a Constituição. E hoje certamente, quando mais o país necessita de sua firmeza e do seu patriotismo, continuarão fiéis ao seu passado, unidos dentro da lei, na conquista democrática de seus direitos”. Os princípios e diretrizes contidas na carta de Getúlio Vargas, disse Goulart, seriam o “guia seguro no grande e irreprimível movimento que se processa no Brasil, para a libertação econômica do nosso povo, dentro da verdadeira democracia social” A carta-mensagem de Vargas, afirmou, que resumia o mais democrático roteiro para o Brasil se afirmar como nação livre e progressista, seria a grande bandeira de luta do povo brasileiro.

Páginas brilhantes

Falando em um evento, em Porto Alegre, Goulart disse que se cometera algum crime foi apenas o de ter, no Ministério do Trabalho, procurado distribuir justiça a todos aqueles que sempre pediram justiça. “Eu poderia citar dezenas e dezenas de vezes em que ficava surpreso diante da teimosia, da incompreensão, e, por que não dizer, diante da reação de certas empresas que discutiam, no Ministério do Trabalho, o aumento dos seus empregados. Em muitas oportunidades, afirmavam que não podiam fazer esses aumentos por impossibilidade de recursos e depois se verificava, pelo Imposto de Renda, que haviam auferido um lucro muitas vezes superior a 300% do capital que haviam registrado”, denunciou.

Ele falou também que em todas as oportunidades, sempre que eram postos em discussão problemas dos trabalhadores, procurou, com honestidade e justiça, dar razão aos que tinham razão. “Daí a campanha tremenda que a reação movimentou contra o Ministério do Trabalho pelo simples fato de que estava procurando ser justo e dando justiça a quem merecia”, indignou-se.

Ao falar das eleições, Goulart lembrou que delas dependeria não só a “manutenção da conquista das leis trabalhistas vigorantes no país”, mas a certeza de que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) seria aplicada. “Devemos, principalmente, exigir que a Consolidação seja cumprida. De nada adianta páginas brilhantes em defesa do trabalhador, se estas mesmas páginas não forem transformadas em realidade. É necessário que a evolução social não pare”, asseverou.

A locomotiva e os braços

Goulart falou também da campanha movida contra ele pelo “sindicato da mentira”. “Esses senhores que nos acusam e nos injuriam, que pagam folhas e folhas de jornais para nos atacar, deviam meditar, e meditar profundamente, sobre o exemplo dos operários”, falou, lembrando do caso de um trabalhador do estado do Piauí, em uma reunião de ferroviários a que compareceu. “Lembro-me quando um trabalhador maltrapilho, que denunciava em sua fisionomia a fome e a miséria, levantou-se no fundo da sala e pediu licença para falar.”

Este trabalhador, com suas palavras rústicas e sinceras, narrou Goulart, perguntava ao então ministro do Trabalho: “Mas doutor Jango, por que que nos acusam de comunista, e agitador, se aqui no Piauí percebemos 450 cruzeiros por mês e o quilo da carne custa 52 cruzeiros? Porque nos acusam de comunista, quando o que desejamos apenas é sermos alimentados para podermos trabalhar?”

E completou: “Na sua linguagem rude, mas sincera, de um exemplo que há de ficar gravado na minha memória, por toda a minha vida, dizia ele: ‘Eu comparo, doutor Jango, o capital e o trabalho a uma locomotiva e os trilhos. Nós somos os trilhos. Não somos contra a locomotiva que trafega em nossos braços. Nós desejamos que essa locomotiva trafegue a grande velocidade. Desejamos que ela seja boa, brilhante, e que todas as peças funcionem em perfeita ordem. Mas com o que não concordamos é que uma locomotiva brilhante e poderosa trafegue sobre trilhos podres, que não a possam sustentar’.”

 

*Osvaldo Bertolino é Jornalista

 

(PL)