O parlamento também negou a Johnson o arremedo de eleição com que pretendia empurrar a Grã Bretanha para um acordo unilateral com Trump

Em nova estocada de sua campanha pelo ‘Brexit direto nos braços de Trump’, o primeiro-ministro Boris Johnson, depois de sua sexta derrota consecutiva em seis dias no parlamento britânico, procedeu na noite de segunda-feira (9) ao fechamento do poder legislativo por cinco cruciais semanas, até 14 de outubro, sob um indignado coro de “vergonha” e dos cartazes de “silenciados”.

O parlamento, antes de ter as luzes apagadas, também negou a Johnson, pela segunda vez, o arremedo de eleição com que pretendia empurrar a Grã Bretanha para um acordo comercial unilateral com Trump – aquele que o presidente bilionário sugerira servir para privatizar a saúde pública britânica ao cartel hospitalar norte-americano.

No mesmo dia, a rainha Elizabeth assinara a lei que veta o Brexit sem acordo, ao estabelecer que Boris Johnson tenha de chegar a um acordo com Bruxelas até o dia 19 que seja aprovado pelo parlamento, ou então pedir uma prorrogação do prazo de saída (artigo 50), marcado para 31 de outubro.

O fechamento do parlamento britânico, já condenado como “golpe” por manifestações em 80 cidades, não passa de uma manobra do autodeclarado “Trump britânico”, louro como o tuitador da Casa Branca e de gostos, gestos e falta de noção assemelhados, em que a antecipação de eleição funciona apenas como um biombo para o objetivo de desvirtuar a decisão do referendo de 2016 – de um Brexit que restaure a soberania, reindustrialize o país e remova os miasmas do thatcherismo – para no lugar por a vassalagem aos EUA.

Na votação da antecipação da eleição, a bancada de Johnson ficou bem aquém dos 434 votos (dois terços) necessários. Pesquisa da BMG Research para o jornal The Independent registrou que 44% dos eleitores disseram que o fechamento do parlamento por cinco semanas era ‘inaceitável’, contra apenas 36% que consideraram ‘aceitável’. Quando os ‘não sabe’ foram removidos, a margem foi clara: 55-45. Só 1 em cada 5 se mostrou favorável à antecipação das eleições para antes de 31 de outubro, pedida por Boris.

Mas a razão de fundo para a maioria do parlamento britânico se recusar à antecipação de eleição sob Boris é porque seu Brexit sem acordo não passa de um desacoplamento selvagem, anárquico, da economia britânica em relação à Europa, à qual esteve integrada por 46 anos.

Os parlamentares exigiram, ainda, a publicação dos estudos oficiais sobre os efeitos do Brexit sem acordo, após vazamento da operação Yellowhammer ter alertado sobre escassez de alimentos e remédios. Também quiseram saber porque Johnson resolveu reduzir logo agora a equipe de negociação com Bruxelas.

A Câmara dos Comuns também aprovou a divulgação dos memorandos secretos entre os assessores do primeiro-ministro, inclusive o guru Dominic Cummings, durante o planejamento da suspensão do poder legislativo.

O ex-procurador-geral Dominic Grieve, que apresentou a resolução, disse ter recebido informação de que se trata de um “escândalo”: o governo Johnson mentiu aos parlamentares e ao público ao alegar que a decisão de fechar o parlamento por cinco semanas não era para frustrar o debate sobre o Brexit.

A verdade é que os deputados foram escanteados em meio à mais grave crise nacional em décadas, com o parlamento fechado até à véspera do Conselho Europeu de 17-18 de outubro, convocado para decidir, pelo lado europeu, a questão. Mais cínico, ainda, é o uso do tradicional discurso da rainha para adiar por mais seis dias que o Brexit seja discutido. Um descalabro completo.

Diante da persistência no achincalhe do parlamento de parte do governo Johnson, o presidente da Câmara dos Comuns, o conservador John Bercow, anunciou que irá se retirar do cargo em 31 de outubro – acarretando que seu substituto seja eleito pelo parlamento atual, do qual Johnson perdeu o controle, a ponto de ter se tornado um governo minoritário e de ter expulsado 21 deputados das próprias fileiras.

NA VALA

O líder trabalhista Jeremy Corbyn denunciou a intenção manifestada pelo primeiro-ministro de passar por cima da lei sancionada pela rainha que o obriga a obter um acordo de Brexit ou conseguir a aprovação do parlamento para seu não-acordo, ou pedir um adiamento adicional de três meses. Ele acrescentou que Johnson não poderia ditar os termos de uma eleição antes que o ‘Brexit sem acordo’ fosse retirado da mesa.

“Parece que o primeiro-ministro está fugindo das perguntas dos deputados”, condenou Corbyn, que classificou o fechamento do parlamento de “embaraçoso”. “O Parlamento deve poder cumprir e exigir responsabilidades do Governo”, exigiu.

Apesar de um porta-voz asseverar que Johnson “respeitará o estado de direito”, o bufão segue dizendo que prefere “cair morto numa vala” a adiar o Brexit e sinalizando que não pretende se deter por nada.

Para Johnson, uma semana de cão: perdeu a maioria de um único deputado, tornando-se um governo de minoria, quando o ex-ministro Phillip Lee deixou a bancada conservadora, durante o discurso do primeiro-ministro, e se incorporou à oposição. Sofreu acachapante derrota, em três votações, com o projeto de lei que veta o Brexit anárquico sendo aprovado. Acabou expulsando 21 deputados – nem o neto do primeiro-ministro que comandou a resistência britânica ao nazismo, Wiston Churchill, escapou.

Antes de a semana acabar, o próprio irmão de Boris Johnson, Jo Johnson, renunciou ao mandato e ao cargo de ministro, por divergir dos atos dele. No sábado, foi a vez da ministra do Trabalho e da Previdência, Amber Rudd, que em carta ao primeiro-ministro disse que não podia ficar quando “bons, leais conservadores moderados são excluídos”. Ela também chamou a expulsão dos 21 deputados de “ataque à decência e à democracia”.

TEMPERATURA SUBINDO

Na retomada dos trabalhos do parlamento, de acordo com o The Telegraph os trabalhistas estariam tramando para, passando rapidamente pelo discurso da rainha, partir para a votação de uma moção de desconfiança para derrubar Boris. Que poderia ser seguido por um governo de unidade que pudesse conduzir o Brexit a bom termo.

O jornal inglês, apontado como o oráculo dos eurocéticos, também revelou a suposta estratégia secreta do governo Johnson para se esquivar da nova lei e não pedir à UE uma nova prorrogação. A manobra consistiria em enviar uma carta solicitando novo prazo para o Brexit e, junto, outra em que ficaria claro não ser esta a vontade do governo Johnson.

Analistas asseveram que a escalada de Boris Johnson é de inspiração do marqueteiro Dominic Cummings, o “Lorde das Trevas”, consistindo em empurrar o país para as eleições na véspera do Conselho Europeu marcado para endossar o acordo final; na campanha culpar a oposição pelo desastre iminente via desacoplamento anárquico da União Europeia depois de quatro décadas; e denunciar os opositores ao seu ‘Brexit nos braços de Trump’ como antidemocráticos e anti-ingleses.

Depois, marchar para ‘liderar o povo britânico’ nessa senda, correndo para assinar a rendição a Trump.

Ao final e ao cabo, o golpe do fechamento do parlamento acabou saindo pela culatra, ao facilitar a união de todas as forças contra o esbulho e contra Boris Johnson.

Na mais difícil hora da Grã-Bretanha em décadas, Boris encena já estar em campanha eleitoral, com lances tão ridículos como posar para foto levando um touro por uma cordinha.

Não teve qualquer pejo em defender seu ‘Brexit pró-Trump’, asseverando que no acordo comercial com os EUA, os britânicos não terão de importar carne entupida de hormônio, mas poderão vender aos EUA a excelente carne escocesa.

Acredite quem quiser: “Veja a fantástica carne escocesa, que acabei de ver. Atualmente, nem um pouco disso vai para a América. Você poderia fazer um acordo de livre comércio com a América, em que não importe carne bovina tratada com hormônios, mas permita que os agricultores escoceses vendam e descubram novos mercados em todo o mundo”.

Para quem já fez campanha dizendo que vote Tory “para o número do sutiã da sua namorada ficar maior”, nem dá para surpreender.

Em Leeds, foi encurralado por um cidadão, que lhe perguntou o que fazia ali, porque não estava em Bruxelas liderando os britânicos para arrancarem um acordo. Tentou se desvencilhar, mas o sujeito era insistente: “há seis semanas você não resolve nada, só faz falar”. “Você está de brincadeira”, apertou.

“SEM LONGA ESPERA”

Porta-voz de Corbyn destacou que os líderes oposicionistas discutiram os meios de “evitar um ‘Brexit sem acordo’ prejudicial” e para realizar uma eleição geral “uma vez que isso esteja garantido”. “Prometo que a espera não será longa”, afirmou o líder dos nacionalistas escoceses em Westminster, Ian Blackford, em declaração à BBC.

Pesquisas têm mostrado que a maioria dos britânicos é contra um Brexit sem acordo. Em um sinal que foi muito comemorado nas fileiras trabalhistas, em dois dias mais de 100 mil pessoas se registraram para votar – na Grã Bretanha o voto não é obrigatório. Quase 60% deles com menos de 35 anos – ou seja, com o perfil do levante nas bases trabalhistas que conduziu Corbyn a encabeçar o partido e a escantear a bancada blairista.

Um Brexit sem acordo, segundo estimativa do Banco da Inglaterra (BOE), o BC inglês, acarretaria uma perda de 5,5% no PIB, mas há contas menos otimistas, passando dos 8%. “Sem acordo, o choque para a economia é instantâneo”, declarou o presidente do órgão, Mark Carney, à BBC, logo após a posse de Johnson. “Algumas empresas deixam de ser rentáveis nesta hipótese”, completou.

As principais questões em jogo neste momento são: evitar um Brexit caótico, que sirva de pretexto para um acordo unilateral nos termos ditados por Trump, resguardar a unidade da nação britânica – que compreende quatro nações – e preservar o Tratado de Sexta-Feira Santa, que permitiu uma solução para a questão interirlandesa depois de três décadas de conflito.

Bem como a possibilidade de ter um governo em Londres efetivamente comprometido com a reindustrialização e a justiça social, e não com os especuladores da City londrina. Em grande medida, os impasses nas negociações de saída se devem ao privilegiamento dos interesses da City londrina em detrimento de tudo mais.

Como registrou a Reuters, a economia britânica está em sério risco de entrar em sua primeira recessão desde a crise financeira. No segundo trimestre, a economia britânica encolheu 0,2% na comparação com o trimestre anterior, na primeira contração desde 2012, o que foi considerado como “uma ressaca do salto dos estoques [antecipação de importações] antes do prazo original do Brexit, em março”.

Em agosto, o crescimento no dominante setor de serviços do Reino Unido desacelerou enquanto as expectativas empresariais caíram aos níveis mais baixos em mais de três anos, de acordo com o Índice de Gerentes de Compras (PMI) para o setor de serviços, da consultoria IHS Markit/CIPS. O índice caiu para 50,6, de 51,4 em julho – pouco acima da barreira dos 50, que separa crescimento e contração. Ainda de acordo com a IHS Markit, a economia parece a caminho de novo recuo no terceiro trimestre, de -0,1% – portanto, recessão.

O PIB cresceu modestos 1,8% em 2018. A taxa de desemprego oficial de 3,9% oculta a proliferação de contratos de zero hora e de todo tipo de precariedade, bem como os empregos de meio expediente. Entre os jovens, a taxa é cinco vezes maior, de 20%. Quase 10% da população está abaixo da linha de pobreza.