EL ALTO, BOLIVIA - NOVEMBER 17: Supporters of former president Evo Morales block a road to a Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos (YPFB) oil refinery as part of a protest against the new Interim President of Bolivia, Jeanine Añez, on November 17, 2019 in El Alto, La Paz, Bolivia. Evo Morales flew to Mexico alleging a coup under military pressure following three weeks of protests due to suspicions of fraud in the presidential elections. Self-declared interim President Añez faces challenges to her leadership in the senate and in the streets. (Photo by Gaston Brito Miserocchi/Getty Images)

Os militares bolivianos forçaram o presidente Evo Morales a renunciar – esta é a definição clássica de golpe de Estado. Agora, o país está preso em uma espiral de horrores à medida que o regime de extrema-direita e do terror se consolida.

Por Gabriel Hetland (*) 

Se havia alguma dúvida, os horríveis eventos da semana passada na Bolívia as eliminaram: foi um golpe. Para começar, não deveria haver dúvida. É verdade que os fatos anteriores à deposição de Morales foram complexos e multifacetados, mas não há dúvida de que os militares exigiram sua renúncia. O fato do chefe militar ter usado a palavra “sugerir” é irrelevante. Quando militares “sugerem” a um presidente que renuncie, e ele o faz imediatamente, isso é um golpe. Como Bernie Sanders reconheceu: “No final das contas, foram os militares que intervieram… e pediram [a Morales] para sair. Quando os militares intervêm… isso é chamado de ‘golpe’.”

O período de tempo mais imediatamente relevante para entender os fatos anteriores à deposição de Morales vai de 2016 até hoje. Focar neste período ajuda a entender a oposição virulenta que Morales enfrentou nas semanas anteriores a sua expulsão. A classe média urbana liderou inicialmente esses protestos, e forças da classe alta da extrema direita logo assumiram o controle e sua direção.

A oposição se concentrou em duas acusações. A primeira dizia que Morales não deveria concorrer à eleição de 2019 porque a constituição da Bolívia só permite uma reeleição, e porque Morales – por pouco – perdeu o referendo de 2016 sobre múltiplas reeleições presidenciais. Vale ressaltar – como o Nacla fez na época – que o período que antecedeu o referendo envolveu o que os partidários de Morales consideraram uma “guerra suja” contra ele. Nas semanas anteriores ao referendo, a mídia conservadora noticiou um escândalo envolvendo um “filho amoroso” de Morales, sugerindo que a criança morreu logo após o nascimento ou nunca existiu. É provável que essa campanha tenha tido algum efeito no resultado do referendo, em que Morales perdeu apenas por alguns pontos percentuais.

Uma decisão do tribunal eleitoral de 2017 anulou o resultado do referendo, e permitiu que Morales concorresse este ano, decisão que gerou divergências generalizadas, principalmente das classes médias urbanas. Combinado com a segunda acusação – de que Morales roubou a eleição de 20 de outubro de 2019 – resultou em grandes protestos contra ele nas semanas após o pleito. A Organização dos Estados Americanos (OEA) liderou a acusação de fraude: depois de semanas questionando os resultados oficiais que deram a Morales uma vitória no primeiro turno, em 10 de novembro a OEA divulgou um relatório afirmando que não podia certificar os resultados da votação como precisos. Um relatório do Centro de Pesquisa Econômica e Política (CEPR) apresentou o argumento convincente de que a OEA agiu de maneira tendenciosa e falhou em apresentar evidências de fraude. Isso significa que Evo Morales venceu a eleição de 20 de outubro no primeiro turno. Independentemente de quaisquer críticas válidas que se possa fazer ao MAS (Movimento ao Socialismo) ou a Morales, é crucial a lembrança desse fato.

Muitos bolivianos, no entanto, estavam convencidos de que havia fraude e foram para as ruas para exigir a anulação da eleição e, em seguida, a renúncia de Morales. Luis Fernando Camacho, um empresário conservador e dirigente do Comitê Cívico de Santa Cruz, liderou o pedido de demissão de Morales. Ao eclipsar o centrista Carlos Mesa, que ficou em segundo na eleição de 20 de outubro, Camacho empurrou os protestos para a direita. Tudo isso está por trás dos eventos finais que levaram à queda de Morales: os motins da polícia de 8 a 9 de novembro e a “sugestão” dos militares de 10 de novembro de que Morales renunciasse.

Uma perspectiva de longo prazo sobre a queda de Morales também precisa levar em conta a decomposição dos movimentos populares ocorrida após o conflito de 2011 do TIPNIS (Parque Nacional Isiboro Sécure e Território Indígena), que colocou Morales e o MAS contra movimentos indígenas e outros, que eram contrários à construção de uma estrada através do parque nacional TIPNIS. Este conflito teve duas importantes consequências a longo prazo.

A primeira foi o crescimento da oposição a Morales e ao MAS em parte da esquerda, como o ex-embaixador de Morales na ONU, Pablo Solón Romero, um dos esquerdistas mais famosos, que se afastou publicamente de Morales por causa do TIPNIS e, em particular, pela repressão a protestos liderados por indígenas, que resultaram na morte de manifestantes.

A segunda consequência, igualmente significativa, do conflito do TIPNIS foi a divisão entre organizações do setor popular e mesmo dentro das organizações que anteriormente estavam alinhadas com o governo.

Isso levou a um enfraquecimento da capacidade organizacional e mobilizadora de classe popular, sendo um fator sugerido por alguns analistas para explicar a relativa lentidão com que alguns movimentos sociais vieram em defesa de Morales após o golpe de 10 de novembro.

Isso não significa que os eventos não foram um golpe. O fato crítico é que os militares forçaram Morales a renunciar. As implicações deste fato não são incidentais, mas fundamentais, para o horror que agora se desenrola na Bolívia.

Também é importante reconhecer que, embora algumas organizações de esquerda e do setor popular tenham participado da recente oposição a Morales, esse movimento era principalmente de classe média. No final, foi decisivamente liderado pela direita, que é a clara “vencedora” do golpe contra Morales.

A Bolívia está passando pela consolidação de um regime de terror da extrema-direita. Este regime pode ser visto como uma ditadura em embrião devido à violação sistemática dos direitos políticos e humanos. Desde que Morales renunciou, os seguintes eventos horríveis ocorreram: as forças de segurança do Estado matam manifestantes pacíficos. A presidente “interina”, Jeanine Áñez, emitiu um decreto isentando o pessoal das forças armadas pela consequência do uso da força. Áñez afirmou que o MAS de Morales pode não ser autorizado a participar de futuras eleições, apesar de ser de longe a maior força política da Bolívia. O ministro interino do governo golpista disse que os senadores do MAS serão detidos por “subversão e sedição”. E há uma onda crescente de racismo anti-indígena. Vários grupos queimam publicamente a bandeira indígena Wiphala, e um vídeo mostra a polícia em Santa Cruz cortando uma Wiphala, que se tornou um símbolo nacional oficial.

A maneira pela qual Áñez assumiu a presidência é profundamente preocupante por duas razões. Primeiro, isso não poderia ter ocorrido sem as demissões forçadas de Morales, seu vice-presidente, Álvaro García Linera, e dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados. Essas demissões não foram de forma voluntária: aconteceram no contexto do sequestro de parentes de funcionários do MAS e da queima de suas casas. Com os que estavam acima dela, Áñez apostou sua reivindicação à chefua do governo, apesar de que, como vice-presidente do Senado, ela não tinha autoridade constitucional para assumir esse papel.

Em segundo lugar, Áñez foi empossada como presidente por um Senado quase vazio, sem quórum, com os senadores do MAS, que controlam dois terços das cadeiras, boicotando, em parte devido a temores por sua segurança. Áñez foi empossada com uma Bíblia de grandes dimensões, e afirmou: “a Bíblia voltou ao palácio.” Em 10 de novembro, o mentor de Áñez, Luis Fernando Camacho, entrou no palácio presidencial vago e beijou uma Bíblia em cima de uma bandeira boliviana. Um pastor, com Camacho, disse: “Pachamama nunca mais voltará ao palácio.”

Camacho e Áñez são fervorosamente cristãos e altamente racistas. Não é por acaso que sua ascensão tem sido acompanhada por um aumento sem precedentes no racismo anti-indígena em todo o país.

O partido de Áñez recebeu apenas 4% dos votos nas eleições de 20 de outubro. Além da sequência extremamente questionável de eventos que levaram Áñez à presidência, isso mostra sua ilegitimidade. No entanto, Áñez e seus associados não se despreocupam com esses escrúpulos. Ainda mais preocupante é a maneira pela qual Áñez tem governado. Ela reuniu um gabinete que inicialmente não tinha ministros indígenas. Reorientou completamente a política externa, rompendo relações com a Venezuela e Cuba e falando em deixar a União das Nações Sul-Americanas e a Aliança Bolivariana para as Américas. E desencadeou toda a força da polícia e nomeou novo alto escalão militar.

Imagens da queima Wiphala provocaram enormes marchas indígenas em todo o país. Estas e outras marchas – pedindo a renúncia de Áñez, novas eleições, a volta dos militares aos quartéis e a libertação de manifestantes presos, entre outras coisas, foram recebidas com uma repressão feroz, com a polícia e as forças militares usando gás lacrimogêneo e balas. De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 16 de novembro, a violência na Bolívia resultou em pelo menos vinte e três mortos e 715 feridos, em grande parte vítimas de policiais e militares. A pior violência aconteceu em 15 de novembro, quando a polícia e as forças militares mataram nove manifestantes na cidade de Sacaba. Isso ocorreu logo após Áñez emitir um decreto isentando as forças de segurança do Estado de processo legal pelo o uso da força contra protestos públicos, efetivamente dando-lhes licença para matar.

Chegam agora relatos de que as forças do Estado mataram de cinco a sete manifestantes em El Alto, embora o número preciso de mortos ainda não seja conhecido. Isso indica que a condenação internacional que Áñez recebeu na semana passada pelo massacre de Sacaba, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e de alguns democratas nos Estados Unidos, não impediu o Estado de continuar a assassinar manifestantes.

A situação política da Bolívia também está se movendo em uma direção terrível. Os apoiadores e líderes do MAS enfrentam uma maior repressão e um fechamento do espaço político. O ministro do governo de Áñez, Arturo Murillo, chamou um ex-ministro de Evo Morales de “animal” a quem ele iria “caçar”. Murillo também disse que tem “uma lista” de senadores e deputados que planeja deter por “sedição e subversão.” Isto vem depois que os senadores do MAS foram impedidos pela polícia de chegar ao Senado. Áñez também afirmou que o MAS pode não ser autorizado a concorrer em futuras eleições e prometeu processar Morales se ele voltar à Bolívia. Houve declarações oficiais ameaçando jornalistas de “sedição”.

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(*) Gabriel Hetland leciona na Universidade de Albany e escreveu sobre política venezuelana para a Nation, NACLA, Qualitative Sociology, e Latin American Perspectives.

Tradução, adaptação e seleção de trechos: José Carlos Ruy