Assange está confinado e sem contato com advogados desde março
O fundador do WikiLeaks e mais famoso preso político do mundo, Julian Assange, há 16 meses no presídio de segurança máxima de Belmash, a ‘Guantánamo Britânica’, voltou a ficar confinado em uma cela 23 horas por dia desde março sob a pandemia e sem poder participar na elaboração de sua defesa, denunciou Stella Morris, companheira e mãe de seus dois filhos pequenos.
Advogada de direitos humanos respeitada internacionalmente, Stella manteve em sigilo, até recentemente, seu relacionamento com Assange por razões de segurança. Como ela destacou, Assange “não tem visitantes. Nem eu nem seus filhos podemos vê-lo. É muito difícil para nós como família”.
Stella comparou o esforço da equipe de defesa, para “investigar e compreender os detalhes” nessa situação a “escalar o Himalaia”, enquanto “a pessoa mais capaz de contribuir está trancada em uma prisão – e incapacitada, mental e fisicamente, para o nível de engajamento que deseja e precisa dar”.
No próximo dia 7 de setembro, terá início uma audiência decisiva, prevista para durar três semanas, sobre o pedido de extradição apresentado pelo governo Trump, após o jornalista ser arrancado da embaixada do Equador em Londres, onde ficou asilado durante sete anos, até a traição cometida pelo novo presidente, Lenin Moreno.
No mundo inteiro, tem se multiplicado o clamor de que “jornalismo não é crime” e o repúdio à extradição de Assange, de parte de um grande número de juristas, personalidades e entidades, como expresso em atos, documentários e homenagens. A mais recente manifestação foi de uma dezena de associações de advogados e jurista de vários países, exigindo sua libertação e expondo a kafkiana perseguição judicial de que é vítima.
Também apelo online para cobrir despesas com a defesa legal do jornalista, lançado por sua companheira, Stella, teve uma significativa acolhida na semana passada, com a superação da meta inicial em 48 horas, logo dobrada para 50.000 libras esterlinas.
Das 18 acusações contra Assange, 17 são sob a Lei de Espionagem – que em um século jamais havia sido usada contra um jornalista ou editor -, fazendo pesar sobre ele a ameaça de 175 anos de cárcere e tortura.
Como assinalou Stella no apelo por ajuda, “o ‘crime” de Assange’ é ter relatado assuntos que os Estados Unidos prefeririam manter ocultos. Ele ajudou a expor crimes de guerra e abusos de direitos humanos. Ele revelou a morte de civis desarmados e a tortura de pessoas inocentes. Ninguém foi responsabilizado pelos crimes graves que Julian expôs”.
Ela ressaltou que “se ele, um cidadão australiano que vive no Reino Unido, pode ser processado com sucesso, o mesmo pode acontecer com os jornalistas e publicações no mundo inteiro.”
Passaram-se dez anos desde que o WikiLeaks, junto com alguns dos maiores jornais do mundo, publicou os arquivos da guerra movida pelos EUA no Iraque e no Afeganistão e o célebre “Assassinato Colateral”, o vídeo, tirado de um helicóptero de guerra norte-americano em Bagdá, do trucidamento de civis iraquianos desarmados, inclusive dois jornalistas, sob orientação do comando pelo rádio, e ainda de um transeunte que parou para socorrer as vítimas, quando levava os filhos para a escola.
Um crime de guerra, documentado e sobre o qual não há qualquer dúvida, permanece sem investigação e sem punição para os assassinos e mandantes, o que diz muito sobre o mundo unipolar de Washington.
Desde então, Assange foi vítima de uma perseguição feroz, visando calá-lo exemplarmente e impedir que o exemplo frutifique, o que o Relator Especial para Tortura da ONU chamou de operação de assassinato de caráter, com a falsificação de uma acusação de índole sexual na Suécia, artificialmente mantida por anos, e da qual a justiça da monarquia inglesa se tornou cúmplice, sob ordens de Washington.
No mandato de Obama, foi constituído um júri secreto para forjicar acusações contra ele, ‘trabalho’ agora muito útil para Trump, bem como montada toda a operação contra o jornalista. O governo Obama não oficializou seu ataque, por considerar que inevitavelmente atingiria jornais que foram co-participantes da denúncia, como o New York Times.
Já sob Trump, o WikiLeaks passou a ser chamado de “organização de inteligência não-estatal hostil”, como pretexto para violar o direito internacional, impor a censura, passar por cima da Constituição dos EUA, e ameaçar jornalistas e dissidentes políticos em geral, em qualquer canto do mundo, que publique alguma verdade que não caia bem nos ouvidos do chefe da Casa Branca de plantão.
Morris disse que a vendeta contra Assange era inseparável da agenda autoritária mais ampla do governo Trump: “a intenção é clara; trazida por um governo que se refere à imprensa e aos denunciantes como o ‘inimigo’ e às notícias importantes como ‘falsas’.”
Ainda, Mike Pompeo, secretário de Estado e ex-chefe da CIA, disse que o WikiLeaks, ou seja, Assange, “não tem direito à Primeira Emenda (liberdade de expressão)”.
Dois dias após os advogados de Assange terem apresentado sua defesa em relação à acusação e ao pedido de extradição, com vistas à audiência de setembro, o procurador-geral (ministro da Justiça) de Trump, William Barr, emitiu uma acusação de substituição de 33 páginas.
O que implicava em levar Assange a uma audiência – a última antes de setembro – em que estaria em discussão uma acusação à qual ele sequer tivera acesso prévio.
A defesa argumentou que proceder com base em uma nova acusação constitui um abuso do devido processo – aliás, um abuso flagrante -, mas a juíza Vanessa Baraitser recusou, possibilitando aos advogados de Assange no máximo solicitarem o adiamento da audiência de 7 de setembro.
Decisão que por si só revela toda a parcialidade desse tribunal de fancaria. O que coloca a equipe jurídica de Assange perante a escolha de aceitar a violação do devido processo ou prolongar o risco de vida do jornalista, por mais meses de prisão.
Como tem denunciado o Relator Especial da ONU para Tortura, Nils Melzer, que tem se debruçado sobre o caso, a vida de Assange está em perigo, depois de tantos anos de cerco, tortura psicológica e difamação.
Como denunciou o editor-chefe do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, “o governo dos EUA parece querer mudar a acusação toda vez que o tribunal se reúne, mas sem que a defesa ou o próprio Julian vejam os documentos relevantes”.
Raras vezes a “desigualdade de armas” numa disputa judicial foi levada tão longe. Enquanto Washington dispõe de uma máquina monumental de juristas, funcionários, espiões e cúmplices, e teve dez anos para forjar acusações, Assange sequer consegue discutir com seus advogados.
A denunciante Chelsea Manning voltou a ser ilegalmente presa, na tentativa de forçá-la a mentir para incriminar Assange, e só foi libertada depois de uma tentativa de suicídio.
Essa acusação substituta visa ampliar o ataque a Assange. Enquanto na acusação inicial ele era acusado de cometer “divulgação não autorizada de informações da Defesa”, agora é também acusado de “distribuição dos documentos” [aos órgãos de mídia que co-participaram da denúncia].
Colaboradores de Assange, como Sarah Harrison, Jacob Appelbaum e o ex-funcionário do WikiLeaks, Daniel Domscheit-Berg, passaram a ser considerados, pelo regime Trump, como “co-conspiradores”.
Também foi criminalizada a atuação de Assange para ajudar Edward Snowden – que denunciou o grampeamento em massa cometido pelos EUA – a conseguir asilo e escapar da perseguição que lhe foi movida por Washington.
Até mesmo declarações de Assange em defesa da transparência governamental e do direito dos cidadãos à verdade, foram apresentadas na peça de acusação parida em Washington como atividades antiamericanas.
Acréscimos que têm como meta futura perseguição a quem quer que haja ajudado Assange a dizer que a besta fera imperialista estava nua.
A companheira de Assange classificou a batalha legal contra a deportação do jornalista para as mãos de Trump como “Davi contra Golias”.
São tantos os grotescos abusos processuais, que, como não foi decretada a prisão dele com base na acusação de substituição, então ele se encontra no cárcere sob uma acusação caducada. Na audiência de procedimentos do dia 14, novamente os Repórteres Sem Fronteiras não foram admitidos no recinto, nem tiveram como obter o áudio.
Ainda, ao espionar Assange dentro da embaixada do Equador, como já se sabe, a CIA, ou seja, o governo dos EUA, violou o direito de privacidade cliente-advogado – o que por si só já deveria tornar nulo o processo, mas isso é cinicamente ignorado pela juíza Baraitzer. Um jurista que pôde ter acesso à mais recente audiência, considerou-a “grotesca”.