O presidente Alberto Fernández com a vice Cristina e o novo ministro da economia, Sergio Massa.

O presidente argentino Alberto Fernández anunciou na sexta-feira (29) a unificação do comando econômico do país sob a direção do atual presidente da Câmara dos Deputados, Sergio Massa, com a incorporação à pasta dos ministérios do Desenvolvimento Produtivo, da Agricultura e o da Pecuária e Pescas.

Massa também assumirá as relações com o FMI e outros organismos internacionais. A concentração de esforços foi completada com a ida da atual ministra da Economia, Silvina Batakis, para o estratégico Banco de la Nación, estatal. Todas as nomeações foram feitas por consenso, após a reunião entre o presidente Fernández e sua vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner.

A veterana jornalista Stella Calloni descreveu essas alterações “em uma tarde vertiginosa” como “uma forte viragem política e numa situação social de insistentes apelos ao golpe de Estado ou ao avanço da eleições de outubro de 2023 em nome da oposição de extrema-direita e com milhares de manifestantes de organizações sociais que exigiam medidas urgentes na Plaza de Mayo para combater a crise econômica”.

Como registrou Calloni, o recém-nomeado ministro da Produção, Daniel Scioli, voltará a chefiar a embaixada no Brasil, estratégico parceiro da Argentina no Mercosul. Segundo as agências de notícias, Cecilia Moreau, da Frente de Todos, a coligação de Cristina e Fernández, será a nova presidente da Câmara dos Deputados da Argentina.

Para concluir, Calloni destaca que “os setores mais importantes do peronismo estão no gabinete, que tem um novo equilíbrio, mas também significa um realinhamento peronista diante da campanha golpista, que ressurgiu na Exposição Campo na Sociedade Rural Argentina, especialista em golpes em sua história, e que fizeram apelos diretos à insurreição”. Ela assinalou também os governadores, unidos em uma liga, “estão sendo consultados mais do que nunca”.

A herança maldita de Macri inclui um empréstimo de 44 bilhões de dólares do FMI, usados para tentar reelegê-lo e evitar que tivesse que fugir, de helicóptero, da Casa Rosada, por causa da devastação que causou.

Das bases, também vieram manifestações de apoio às mudanças. “‘É um sinal muito claro para o país e para o mundo’, disse o deputado Leandro Sandro, da Frente de Todos, ex-líder juvenil da Unión Cívica Radical, que rompeu com a atual direção daquele partido, por considerar sua união com o ex-presidente Mauricio Macri em Juntos pela Mudança ‘uma traição ao seu partido, ao falecido ex-presidente Raúl Alfonsín e ao país’”.

De certa forma, essa concentração da área econômica na situação de crise aberta havia sido iniciada pela então ministra Batakis, que se reunira assim que fora empossada com todos os principais ministérios correlatos para cobrar uma atuação conjunta e com base nos mesmos princípios.

Analistas consideram que o novo ministério está “equilibrado no sentido de ter surgido de um movimento de reunificação e também significa que os setores mais importantes que compõem a Frente de Todos estão agora representados”, o que, para Fernández, permitirá alcançar “um melhor funcionamento, coordenação e gestão”.

Para Calloni, as mudanças respondem a desafios como a perda de soberania, a carestia e a especulação, assim como a crescente exigência popular por uma redistribuição de renda mais justa. Trata-se de que “a Frente de Todos reagiu como o peronismo sempre fez”.

Crise indisfarçável

Por sua vez, o Sputnik em espanhol descreve que essa mudança está acontecendo em uma Argentina “que continua atolada em uma crise econômica, com inflação e desvalorização recordes, quase 50% da população vivendo na pobreza, com poucas reservas e uma dívida com o FMI que terá que renegociar em troca de atender as imposições da agência”. A aprovação do governo está perto de 20%. O risco-país ultrapassa os 2.700 pontos.

O colunista Alfredo Zaiat assinalou que a mudança no comando da economia se deu “em resposta às urgências do momento devido a um contexto de corrida cambial, estresse no estoque de reservas do Banco Central e taxas de inflação muito altas com a consequente dificuldade de recuperação do poder de compra dos setores populares”.

Ele enfatizou que “não há superministério, como é apresentado pela mídia e por aqueles que orbitam o universo massista”, mas sim a “reconstrução” da gestão econômica. “A chave será a eficácia das medidas iniciais que permitam estabilizar a frente cambial acumulando reservas no Banco Central para evitar uma desvalorização (súbita, administrado ou discreto, segundo as especulações em curso). Essa é a condição básica para que essas mudanças de gabinete atendam ao objetivo de superar a crise política da coalizão governista”.

Segundo Mario Wainfeld, no Página 12, a frase que resume o pensamento de boa parte da liderança da Frente de todos é que “não dava para continuar assim”. A saída traumática do titular da economia, Martín Guzman, em pleno sábado e pelas redes sociais, agravou “crises pré-existentes”.

Para Wainfeld, “nunca, desde 1983, um ministro concentrou tanto poder” e assume no curso de “um tsunami político, econômico e financeiro”. Se funcionar, previu, Massa terá crédito e potencial para ser candidato a presidente pela Frente de Todos. Se a crise devorar os protagonistas, “Massa e Alberto Fernández dividirão os custos”.

Batakis não era particularmente bem vista pelos fundos abutres, que na época compararam sua nomeação à chamar, quando uma casa está a arder, um piromaníaco ao invés dos “bombeiros”.

“El Campo” conspira

O colunista registrou que “na Feira de Palermo, “el campo” cantou sua auto-elegia : a ode ao gado, às colheitas e (recentemente acrescentado) às silobolsas” [mecanismo de especulação inventado pelos latifundiários argentinos]. O ex-presidente Macri recebeu aplausos. “A classe dominante, ao que parece, ratificou sua vontade de continuar apostando na desvalorização, não em vender a soja”.

Ele também observa que as “organizações piqueteiras” persistem em suas demanda por melhorias nos benefícios sociais e reabertura das inscrições no Plano de Potencial de Trabalho. Essas organizações – criadas durante a resistência ao desastre neoliberal de Menem – e as centrais sindicais também têm reivindicado um “salário básico universal” e aumento dos salários para fortalecer o mercado interno e recuperar o pode de compra da população.

“A Argentina enfrenta desafios complexos, talvez contraditórios. A inflação é intolerável, deve ser reduzida. A distribuição de renda, injusta. Do ponto de vista oficial, as exigentes metas acordadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI) devem ser cumpridas. A corrida financeira ainda é uma ameaça. Guzmán-Batakis-Fernández levantou-se contra a desvalorização. A ofensiva de mercado continua inabalável”, sintetiza Wainfeld.

“A questão que se coloca a partir de agora é se a gestão de SM, com recursos escassos e contra o relógio, será capaz de fornecer as soluções , o alívio, as melhorias tangíveis que os argentinos esperam e merecem”, ele conclui.

Quanto à figura de Massa, há que registrar que ele foi ministro de Kirchner em 2008; em 2015, preterido como candidato do peronismo, lançou uma candidatura solo; mas em 2019 voltou às fileiras do peronismo, contribuindo decisivamente para a eleição da chapa Férnandez-Kirchner. Dele também se diz ter bom trânsito junto aos EUA e aos empresários argentinos e ter ajudado a destravar o acordo com o FMI no ano passado. A economia argentina cresceu 10,4% em 2021 e 5,8% no primeiro trimestre do ano.

Herança do endividamento macrista

“Este processo ultrainflacionário que estamos vivendo hoje na Argentina é produto do endividamento criminoso dos quatro anos do macrismo”, afirmou a vice-presidente Cristina Kirchner, em recente pronunciamento a uma plenária da Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA), expondo a herança maldita do desgoverno Macri.

É preciso ter isso “muito claro”, ressaltou Cristina, quando agora “tentam dizer que [a causa] é o déficit fiscal ou a oferta e a demanda, e ademais que os empresários não têm nada a ver” com isso.

Ela lembrou que “todos os processos inflacionários que a Argentina teve foram precedidos de um ciclo de endividamento”. “Porque quando acabam os dólares ou quando o mercado atiça que não vai haver dólares, começa a corrida pela desvalorização”.

É o chamado caráter ‘bimonetário’ da economia argentina, como tem se referido a própria Cristina, que se reflete em maiores tensões inflacionárias devido a um problema estrutural: a escassez relativa de divisas. Ou seja, o Banco Central não tem as reservas em dólares suficientes para atender cada uma das demandas de divisas.

O que se expressa, como registrou o Sputnik em espanhol, em uma questão chave na atual crise: as profundas perturbações financeiras induzidas pelo diferencial entre o câmbio oficial e o paralelo, que ultrapassa os 140% (135 pesos versus 330 pesos por dólar, respectivamente). O que impulsiona as expectativas de desvalorização do peso e, portanto, aumentos ‘preventivos’ de preços, empurrando para cima a taxa de inflação, atualmente em 51%.

Por sua vez, ao assumir a Economia há menos de um mês, Batakis sublinhou que as crises na Argentina sempre começam com o chamado “estrangulamento externo”. Ela acrescentara então que “os dólares e as reservas têm de estar disponíveis para o crescimento” e que temos que “planejar com empresários, para conhecer os seus programas anuais de importação e investimento”.

O governo de Fernández se viu forçado a refinanciar com o FMI o pagamento de US$ 45 bilhões que Macri pegou, o que acarreta mais restrições à capacidade da Argentina de buscar o desenvolvimento e atender aos reclamos populares. Entidades repudiaram o acerto com o FMI, denunciando a “perda de soberania” e arrocho implícitos.

“Metade do país abaixo do limiar da pobreza”

“A principal dívida é com os setores populares porque a dívida é uma fraude que o Estado não pode pagar e ainda menos na situação social que a Argentina está a viver e que tem metade do país abaixo do limiar da pobreza”, denunciaram entidades piqueteiras, apontando que implica em um “co-governo com o FMI” , que vai “controlar e monitorizar a economia argentina de três em três meses”.

Em paralelo, vem se repetindo os alertas de que a “dolarização” significaria a “destruição da Argentina”.

Análise do Sputnik em espanhol chama a atenção para uma questão chave na atual crise: as profundas perturbações financeiras induzidas pelo diferencial entre o câmbio oficial e o paralelo, que ultrapassa os 30% (135 pesos versus 330 pesos por dólar, respectivamente). O que impulsiona as expectativas de desvalorização do peso e, portanto, aumentos ‘preventivos’ de preços, empurrando para cima a taxa de inflação, atualmente em 51%.

A armadilha da dolarização

O problema estrutural da “bimonetização”, exposto pela primeira vez por Cristina em 2017 em discurso ao Senado argentino, foi também abordado pelos economistas do Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica (CELAG), Alfredo Serrano Mancilla, Guillermo Oglietti e Mariana Dondo. Ideia que se refere a uma economia em que se utilizam dois tipos de moeda.

No caso argentino, os salários são pagos em pesos assim como a maioria das transações cotidianas, mas o dólar é uma referência generalizada para a poupança e outras operações de montante elevado, como a compra-venda de imóveis. Situação a que a Argentina acabou submetida, após sucessivos governos neoliberais: uma moeda nacional, para os pobres, e outra, para a elite.

Assim, conforme estudo da CELAG, a poupança dos argentinos fora do sistema local chegava em 2022 a 258 bilhões de dólares (equivalente a 5.000 per capita). 70% da dívida pública são compromissos dolarizados; no Brasil, apenas 12% da dívida pública é externa.

No mercado imobiliário, os preços se anunciam em dólares e as transações também se realizam em dólares. Até a Airbnb, ao contrário do que faz no México, Brasil, Colômbia ou Chile, anuncia na Argentina os preços em dólar, inclusive para argentinos.

A Argentina é o único país latino-americano que é credor líquido do resto do mundo, e um dos três países em desenvolvimento não petroleiros que tem mais ativos no exterior do que dívidas no estrangeiro.

O Fed estima que a Argentina lidera o ranking mundial de notas de dólar possuídas por habitante (fora dos EUA) e o segundo em montante, só perdendo para a Rússia. Montante 50 vezes maior do que o do Brasil e dez vezes maior do que no México. Em um ano normal, entre três e quatro milhões de pessoas adquirem dólares no mercado formal. O que ultrapassa 5,5 milhões de pessoas em anos de corridas cambiais.

Evasão via privatizações

Nos últimos 16 anos, a Argentina teve superávits comerciais em 11 períodos, graças aos quais pôde acumular um excedente de 94 bilhões de dólares. No entanto, esta cifra apenas representa a metade do déficit de 200 bilhões de dólares que a balança de rendas de investimento gerou em todos esses anos. As privatizações e a desnacionalização da estrutura produtiva implicam que entre 13% e 30% das exportações anuais devem se destinar a pagar o déficit da balança de rendas do investimento.

Na praça financeira argentina convivem dois mercados: o oficial, denominado Mercado Único de Câmbio, que movimenta até 1 milhão de dólares diários, e o paralelo, que movimenta de 5 a 10 milhões por dia.

Além dos “arbolitos”, como são conhecidos os cambistas que oferecem troca de dólares nas ruas argentinas, já começa a haver bancos que realizam o câmbio paralelo sob o disfarce de uma “alternativa” para os turistas. O Western Union, banco norte-americano, inclusive está oferecendo uma cotação que desvaloriza o peso mais até do que os cambistas nas ruas.