Parentes de vítimas e organizações realizam ato 'Ditadura Nunca Mais' na antiga sede do DOI-Codi em São Paulo em 2016

Ao longo de mais de três décadas, na condição de professor de história e de quem procura estudar de modo mais profundo a trajetória do Brasil, muitas vezes me deparo com questionamentos e comentários sobre o período da ditadura militar (1964-1985), o que considero natural, uma vez que o impacto daquele período para o povo em geral foi muito forte e muitas coisas e fenômenos com os quais lidamos atualmente em praticamente todos os campos da nossa vida estão relacionados direta ou indiretamente àquele período.

Por Altair Freitas*

Além disso, como estamos falando de um golpe que foi aplicado há pouco menos de 60 anos, que derrubou o presidente João Goulart, muitas pessoas que vivenciaram aquele período têm ideias distorcidas sobre o que ele representou em essência. Com o avanço da extrema direita nos últimos anos, inclusive com a ocupação de parte do poder de Estado pelo bolsonarismo, movimento defensor e propagandeador da ditadura militar de 64, as incompreensões sobre a essência daquele processo se avolumam. Como sabemos, em qualquer sociedade, a história, os fatos, nem sempre são percebidos tais como são, mas sim pela propaganda que se faz deles, conforme a correlação de forças na luta de ideias, que, geralmente, corresponde à correlação de forças mais geral na luta de classes. O golpe de 64 e a ditadura militar foram patrocinados, apoiados por grandes grupos empresariais, inclusive da comunicação de massas, e tanto as suas causas, seus desdobramentos e efeitos, foram transmitidos a parte grande do povo de maneira bastante distorcida, o que contribui de modo intenso para que muitos que viveram o período e as novas gerações tenham compreensão limitada sobre o que de fato ocorreu.

Vinte e um anos de governos autoritários, com muita gente presa, torturada, morta e exilada, com medidas econômicas que causaram impactos profundos para a estrutura social e para o modo de pensar e se comportar, evidentemente deixaram reflexos diversos, prolongados, doloridos. Ao mesmo tempo, trinta e seis anos após o fim daquele período e diante da atual realidade nacional com prolongada crise política e econômica, potencializadas ao extremo pela pandemia de Covid-19, leva muita gente a se perguntar se uma ditadura militar não seria melhor do que o tipo de democracia que temos. A partir das ações nefastas e genocidas do presidente da república e seu séquito de negacionistas, o Brasil tornou-se o epicentro mundial da pandemia, ao mesmo tempo em que a sanha golpista e ditatorial da extrema-direita brasileira, com Bolsonaro liderando, move suas peças para tentar emplacar um novo golpe sobre o país, seu velho projeto político, conhecido de todos há décadas, posto que ele é um notório defensor da ditadura e de seus torturadores. Sigamos!

Os comentários mais comuns costumam ser:

1. No tempo da ditadura havia mais civismo no povo. O brasileiro era mais nacionalista e não tinha tanta baderna como greves, passeatas, etc.
2. A economia era melhor no tempo da ditadura;
3. Nos tempos da ditadura não tinha tanta corrupção;

As percepções sobre tais questões não são secundárias e merecem uma análise mais detida uma vez que, se tomadas em seu conjunto, ou mesmo individualmente, dependendo da resposta que a ciência da História nos fornece, podemos tirar conclusões absolutamente equivocadas. Ou corretas! Então, à luz dos fatos históricos, faço comentários para cada um desses ítens:

1) No tempo da ditadura havia mais civismo no povo. O brasileiro era mais nacionalista e não tinha tanta greve, badernas, passeatas – O primeiro elemento a ser abordado para essa questão está no próprio caráter ditatorial do regime de 64. Imposto a ferro e fogo, usando a intimidação, a tortura, a censura e outros mecanismos de controle social, o regime militar criava uma falsa aparência de civismo, notadamente nos anos 70, após os militares terem consolidado seu poderio sobre praticamente todas as esferas da vida pública. Nas escolas, a cartilha do regime era única e as crianças eram ensinadas a obedecer, obedecer e obedecer. Os movimentos sociais haviam sido dilacerados pela perseguição, pela repressão. Os partidos foram fechados em 1965 e reorganizados em apenas dois (ARENA, pró ditadura e MDB, de oposição consentida), para dar um certo aspecto de normalidade democrática. A censura castrava todos os meios de comunicação. Era praticamente um “consenso de cemitério” o que havia na sociedade brasileira. Esse enorme aparato repressivo causava, portanto, a impressão de que o brasileiro era ordeiro, cumpridor das regras e amava mais a pátria. Amava? Amor é o oposto do medo e o povo tinha medo, muito medo após todo um período de guerra interna nos anos 60 – de 64 até o início da década de 70 – vencida pelos ditadores. A paz social, ou aquilo o que parecia como paz, era imposta de cima para baixo e para largas parcelas do povo, que havia perdido suas principais lideranças para as prisões, mortes ou exílios, o silêncio ou adesão involuntária ao regime era uma forma de sobreviver. Mas conforme a roda da História girou, tudo o que era aparentemente cívico e patriótico desandou em profunda insatisfação popular crescente. Com a crise econômica que se abateu sobre o Brasil em função da gestão econômica da ditadura, o povo, notadamente os trabalhadores organizados nos sindicatos, viu-se obrigado a resistir e lutar contra a ditadura. A partir de 78, 79, a classe operária teve que organizar movimentos grevistas históricos para combater o próprio empobrecimento causado pelo arrocho salarial. E a partir daí, nosso povo lançou-se em um amplo movimento mobilizador para derrotar a ditadura e redemocratizar o Brasil. Lutou pela democracia e pelo direito a se organizar e o fez nas ruas, afrontando o regime. Hoje, quando categorias profissionais e movimentos sociais os mais diversos fazem suas manifestações livremente, isso não é sinal de baderna. Mas de liberdade política, conquistada após muita luta, muito suor, muito sangue. Essa liberdade precisa ser valorizada, defendida e não atacada.

2) A economia era melhor no tempo da ditadura – Outro mito muito disseminado pelos defensores do militarismo ditatorial brasileiro é o de que naquela época nossa economia era muito melhor do que hoje. A ditadura militar vivenciou três períodos fundamentais no campo econômico:

A) entre o golpe e 1968, a economia não avançava e isso tornou-se um problema grave para legitimar o regime aos olhos do povo. Em linhas gerais, a inflação nos primeiros seis anos da ditadura manteve-se em patamares semelhantes ao período pré golpe. A inflação média anual do Brasil entre 1964 e 1970 foi de cerca de 20% ao ano e as políticas anti inflacionárias do regime (principalmente o controle sobre os salários via arrocho salarial) levaram à falências centenas de pequenas e médias empresas o que ampliou o desemprego geral nos seus primeiros anos. Em contrapartida, o regime abriu ainda mais as portas do país às multinacionais;

B) Entre 68 e 73, a ditadura foi beneficiada pela entrada maciça de dólares a partir de uma agressiva política de endividamento externo, facilitada pelo excesso de liquidez dessa moeda nos EUA e Europa, que precisavam investir esse enorme excedente de capitais, exportando-os para países do então chamado “Terceiro Mundo”, como o Brasil. Entre 68 e 73 a dívida externa brasileira que era de U$ 4 bilhões em 64, ano do golpe, praticamente quadruplicou graças aos enormes empréstimos feitos pela ditadura. Essa dinheirama deu ao regime recursos para fazer a economia crescer rapidamente. O PIB passou a girar em torno de 10% ao ano. O crédito para a classe média foi ampliado para o consumo de bens de consumo, notadamente automóveis e eletrodomésticos. Grandes obras passaram a ser erguidas (que ficaram conhecidas como “obras faraônicas”). Novas empresas estatais foram criadas. No seu conjunto, esse período reforçou a infraestrutura e tornou possível ampliar o mercado de trabalho. Foi a “era de ouro” da ditadura e coincidiu com a dizimação quase absoluta dos grupos de esquerda que lhe faziam oposição nas cidades, ainda que o regime tenha enfrentado a Guerrilha do Araguaia, dirigida pelo PCdoB entre 72 e 74, de modo geral, nas cidades, a esquerda armada estava dizimada. A junção do predomínio político com a expansão econômica consolidou o poder da ditadura. Era o chamado “milagre brasileiro”. Contudo, vejamos bem, tal milagre tinha um pressuposto nefasto: a economia crescia na exata proporção do aumento da nossa dependência em relação aos capitais estrangeiros e esse crescimento vitaminado por dólares dos EUA e Europa teve consequências nefastas;

C) A partir de 74 e arrastando-se até 1984, o Brasil foi engolido pelo furacão da crise econômica nos EUA e Europa. Se até 72, 73, os capitais estrangeiros estavam disponíveis em profusão, o início da grande crise econômica nos países capitalistas centrais obrigou o regime a devolver o dinheiro anteriormente emprestado acrescidos de enormes taxas de juros. Para piorar, esse também foi o período no qual os países exportadores de petróleo bateram duro nos países consumidores e o preço do barril de petróleo explodiu, triplicando em dois anos. À época, o Brasil importava de 70 a 80% do petróleo que consumia e para tentar manter o ritmo do “milagre”, a ditadura intensificou o endividamento externo. A partir de 76, 77, nossa economia volta-se para pagar as dívidas e para garantir os pagamentos aos credores internacionais os militares desenvolveram uma agressiva política de exportação de produtos para arrecadar dólares para saldar os empréstimos. Mas isso foi feito às custas de um brutal arrocho salarial para garantir que o mercado interno consumisse menos para podermos exportar mais. Paralelamente ao arrocho, a inflação tornou-se incontrolável e a crise econômica e social foi inevitável, o que levou ao rápido desgaste da ditadura a partir de 78 até chegarmos às greves metalúrgicas do ABC e a todo o movimento de redemocratização – Anistia (79), eleição dos governadores estaduais (82), Diretas Já (84) e fim da ditadura no início de 85 com a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral.

Como podemos ver, a fase áurea da economia durante a ditadura foi na prática um gigante com pés de areia e o tipo de crescimento verificado naquele momento criou as condições para o maior período histórico de crise contínua da república brasileira, estendendo-se, grosso modo, até o início do século XXI, quando o Brasil voltou a crescer de modo mais intenso e sem depender de empréstimos estrangeiros;

3) Nos tempos da ditadura não tinha tanta corrupção – Tinha sim, tanto ou mais quanto hoje mas a impressão de que ela era menor se deve basicamente ao fato de que a brutal censura exercida sobre os meios de comunicação impediam que as maracutaias viessem a tona. E a corrupção da ditadura tinha uma faceta variadíssima. Envolvia a extorsão de empresas privadas para que elas participassem de “vaquinhas” para financiar grupos paramilitares que mantinham esconderijos clandestinos para prender e torturar opositores do regime. Quem não contribuía perdia contratos governamentais ou acabava arrastado aos cárceres como “simpatizantes do comunismo”. Vários escândalos de proporções milionárias surgiram no período, das clássicas operações de fraudes em licitações para obras, compras de equipamentos e superfaturamento (Transamazônica, Ponte Rio Niterói, Usinas Atômicas, Ferrovia dos Carajás, etc), os rumorosos escândalos envolvendo a Caixa de Pecúlio dos Militares (CAPEMI) que ganhou licitação fajuta para extrair madeira no Pará e o pagamento de gordas propinas aos operadores que viabilizavam os contratos de dívida externa, na média, 10% sobre cada contrato firmado entre o governo brasileiro e os bancos.

Em 1984 o jornalista J. Carlos de Assis escreveu alguns livros mostrando os escândalos do período militar. Um deles, o mais famoso, A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/83, revela essa corrupção. Alguns capítulos: Caso Halles, Caso BUC, Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin, Caso TAA. Uma festa generalizada com o dinheiro público. Nada mal para quem disse que iria moralizar o Brasil quando destituíram o presidente Goulart acusando seu governo, entre outras coisas, de abrigar corruptos. Uma vergonha em verde oliva!

Por fim, uma aparente contradição, mas que revela, por dentro, o caráter reacionário, entreguista e antinacional do golpe de 64 (promovido em nome da democracia, da liberdade, da ética e do nacionalismo). A fração social mais atingida diretamente pela ditadura de 64, foram as próprias Forças Armadas e Forças Auxiliares (as polícias estaduais). Mais de seis mil militares de alta, média e baixa patente foram presos, expulsos, compulsoriamente aposentados, dentre outras punições, pelo simples fato de se oporem ao golpe, por defenderem a legalidade democrática, por terem posições políticas próximas às do presidente João Goulart. O golpe de 64, foi, também, um ataque às próprias Forças Armadas. Cumpre lembrar que a primeira pessoa morta pelos golpistas foi o Tenente-Coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, comandante da Base Aérea de Canoas, Rio Grande do Sul, nos primeiros dias de Abril, por se opor ao golpe. Como se pode ver, não dá para acreditar em contos de fardas!

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Altair Freitas* é historiador, secretário executivo da Escola Nacional do PCdoB e secretário municipal de Organização do PCdoB São Paulo (SP)

 

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