Afegãos celebram partida dos invasores com caixões cobertos de bandeiras dos EUA, Inglaterra e França

Os afegãos comemoraram na quarta-feira (1) o fim da ocupação norte-americana com tiros para o ar, enterro simbólico dos invasores e até uma improvisada parada com equipamento militar largado na fuga, para, nas palavras da Associated Press, “celebrar a vitória após uma insurgência de 20 anos que tirou os militares mais poderosos do mundo de um dos países mais pobres”.

“Os soldados americanos deixaram o aeroporto de Cabul e nosso país obteve sua independência total”, disse o porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid, na cerimônia realizada ali, após a decolagem do último voo de evacuação norte-americano, levando o chefe da 82ª Divisão Aerotransportada, faltando dez minutos para a meia noite.

“Quero felicitar a todos e a nossa nação por esta independência. Esperamos que o Afeganistão nunca volte a ser ocupado e siga sendo independente, próspero e o lar de todos os afegãos sob um sistema islâmico”, acrescentou o porta-voz.

Ao desaparecerem no céu escuro os cinco últimos aviões ianques, por todo o Afeganistão eclodiram tiros de celebração para o alto, que se estenderam madrugada adentro.

Quando a invasão aconteceu em 2001, não existiam ainda as redes sociais, mas a derrota dos EUA no Afeganistão foi agora devidamente registrada no Twitter. “Todos os militares dos EUA estão agora fora do Afeganistão”, amuou-se o comandante do Comando Central dos EUA, General Kenneth McKenzie, que coordenava a fuga.

“O último ocupante americano retirou-se … à meia noite e nosso país ganhou sua total independência, louvor e gratidão a Deus”, postou o porta-voz afegão Mujahid.

O enterro simbólico da ocupação aconteceu na quarta-feira (1), em Khost, capital da província do mesmo nome, no leste do Afeganistão, a 230 km de Cabul. Uma multidão desfilou carregando quatro caixões cobertos com as bandeiras dos EUA, da Otan, da Inglaterra e da França. Manifestantes ergueram bandeiras ou armas, em júbilo, ou gravaram a cena com celulares.

“31 de agosto é o nosso dia oficial da Liberdade. Neste dia, as forças de ocupação americanas e as forças da Otan fugiram do país”, disse o oficial do Talibã Qari Saeed Khosti a uma estação de televisão local, segundo a agência Reuters.

A ‘parada’ aconteceu em Kandahar, no sul do Afeganistão, com o Talibã, na descrição da CNN, exibindo “dezenas de veículos blindados de fabricação americana junto com armas apreendidas recentemente”.

Ainda segundo a emissora norte-americana, “os combatentes agitaram bandeiras brancas do Talibã em Humvees e SUVs blindados no desfile militar, com muitos dos veículos em condições quase perfeitas”. Não faltou sequer uma exibição aérea, com um helicóptero Black Hawk ostentando uma bandeira do Talibã, sob aclamação dos afegãos ao longo da estrada.

ONU

Os 20 anos de ocupação norte-americana no Afeganistão só resultaram “em perdas e tragédias”, afirmou o presidente russo Vladimir Putin, cujo governo tem alertado para a urgência da comunidade internacional em apoiar o Afeganistão na reconstrução e na estabilização, assim como no combate ao terrorismo e ao narcotráfico.

“O Afeganistão está virando uma nova página na sua história”, afirmou Wang Wenbin, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China. “O Afeganistão conseguiu libertar-se da ocupação militar estrangeira. O povo afegão congratula-se com este novo ponto de partida para a paz e a reconstrução nacional”.

“Esperamos que o Afeganistão forme um governo aberto, inclusivo e de base ampla” e “combata firmemente todas as forças terroristas”, acrescentou.

Rússia e China também têm advertido que esse apoio ao Afeganistão é imprescindível para evitar uma nova onda de refugiados batendo às portas dos países vizinhos e da Europa.

Na reunião do Conselho de Segurança da ONU que debateu o Afeganistão, na segunda-feira, Moscou e Pequim se abstiveram, por considerarem que a resolução votada não atende à urgência das tarefas de reconstrução.

Em especial, foi omitida qualquer referência às sanções já ameaçadas e ao congelamento, imposto por Washington, das reservas afegãs e de empréstimos do FMI e do Banco Mundial a que Cabul teria direito. Cuja consequência é a brutal desvalorização da moeda afegã e descontrole da inflação, ao mesmo tempo em que todas as torneiras para ingresso de divisas e de ajuda no país estão sendo cortadas, sendo que 40% do PIB provém da assim chamada ‘ajuda internacional’.

O próprio secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, exortou todas as nações a ajudarem o povo do Afeganistão “em sua hora mais negra de necessidade”. Ele resumiu a iminente “catástrofe humanitária”: 18 milhões de afegãos precisam de ajuda para sobreviver, um em cada três não sabe de onde virá sua próxima refeição, mais da metade de todas as crianças com menos de 5 anos de idade devem ficar “agudamente desnutridos” no próximo ano, e a cada dia as pessoas perdem o acesso a bens e serviços básicos.

O Talibã vem se dizendo disposto a formar um governo ‘inclusivo’ e a respeitar os direitos das mulheres “sob os valores islâmicos”. A Al Jazeera publicou uma série de relatos obtidos por seus correspondentes no Afeganistão, representativos de como as pessoas comuns estão reagindo ao novo regime em instauração.

A principal preocupação é com a situação da economia, que já era dramática, e está se agravando. “Muitos cabulis passaram a terça-feira da mesma maneira que passaram a semana anterior, esperando horas na fila do lado de fora dos bancos, desesperados para sacar dinheiro de caixas eletrônicos, muitos dos quais continuam desligados”, registrou a agência de notícias árabe.

À Al Jazeera, Omid, de 26 anos, disse que a grande preocupação dos afegãos no momento é “em poder colocar comida na mesa nos próximos dias”.

Ele apontou para uma fila que se estendia por centenas de metros fora da agência do Banco Azizi, perto do Palácio Presidencial. “Eles estão todos aqui para comprar farinha e alimentar suas famílias, mas a cada 100 pessoas que conseguirem chegar, outras 2.000 irão para casa de mãos vazias”.

A falta de dinheiro nas instituições financeiras do Afeganistão – explica a Al Jazeera – é resultado de decisões de organismos internacionais, que “cortaram abruptamente os laços com o Afeganistão”.

Mansour, um cambista que trabalha em uma esquina perto de três bancos e de lojas de roupas e eletrônicos, após dizer que apóia o ‘Emirado Islâmico’, como o Talibã denomina sua administração, acrescentou que “os governos anteriores estavam cheios de ladrões corruptos, mas agora não temos liberdade”.

“[Os americanos] vieram com todas essas promessas, mas estão deixando o Afeganistão exatamente como quando chegaram, sob o controle do Talibã”, diz ele. “Além desses novos prédios e arranha-céus, é a mesma cidade de quando os infiéis chegaram.” Ele manifestou temor de ser repreendido por parecer demasiado ocidentalizado.

Já Karimullah Safi, 35, disse que o povo afegão não deveria apenas estar feliz, “mas orgulhoso”, por ter sido capaz de derrubar a única superpotência remanescente no mundo após 20 anos de guerra amarga. Ele chamou as pessoas a “saírem e verem com seus próprios olhos” os talibãs.

“Olha, eles lutaram 20 anos, mas desde que assumiram, a guerra parou, a violência acabou. As coisas estão lentamente voltando ao normal”, sublinhou.

Para Khan Mohammad, um farmacêutico da cidade de Kandahar, os governos instalados pelos estrangeiros “nos transformaram em uma das nações mais corruptas do mundo”.

É nesse quadro que o Talibã se coloca, valendo-se do prestígio que lhe é conferido por ter encabeçado a resistência ao invasor, afirmando ter avançado seus conceitos, que não irá mais impor a burca às mulheres e estas poderão estudar e

trabalhar, que todos os que prestaram serviço ao invasor estão perdoados e que em dias será anunciado um ‘governo inclusivo’.

É brutal a herança da ocupação. 10% dos afegãos estão viciados em ópio. 3,2 milhões de afegãos foram deslocados internamente por causa da guerra nesse período, e outros 2,1 milhões precisaram fugir para o exterior. 54 % da população está abaixo da linha de pobreza. Há dois milhões de crianças ameaçadas de desnutrição. Dados de 2017 indicam que mais de dois terços das meninas não iam à escola e a taxa de alfabetização das meninas era metade da dos meninos. Em algumas províncias do sul, a taxa de alfabetização feminina continua tão baixa quanto 1%. 40% dos meninos não iam à escola e 41% das escolas não tinham prédios.

A retirada norte-americana, classificada pelo presidente Biden como “extraordinária”, acabou exatamente como a invasão começou há duas décadas: com crimes de guerra, chacina de civis.

No primeiro dia da corrida de colaboracionistas e de afegãos assustados ao aeroporto de Cabul, foram cerca de 20 mortos, vários na debandada causada pelos disparos de marines contra a multidão que tentava de qualquer jeito tomar um lugar no avião. Sete simplesmente despencaram de aviões que decolaram.

No domingo, a suposta operação com drone para deter um ‘novo ataque suicida contra o aeroporto’, matou seis crianças de 2 a 8 anos, dois adolescentes e dois adultos de duas famílias. Estes tinham sido agraciados com o visto de imigração e só estavam aguardando instruções para pegar a carona para os States.

Quanto à pavorosa chacina no aeroporto, agora já se sabe que parte dos mortos não foi vítima do homem-bomba do Estado Islâmico-K, mas dos marines que, em pânico, abateram com certeiro tiro na cabeça sobreviventes do atentado.

Um fecho condizente com uma ocupação que custou, segundo estudo da Universidade Brown, dos EUA, as vidas de 241 mil afegãos, dos quais 71 mil civis (43% de mulheres). Muitos deles mortos por drones quando participavam de uma cerimônia de casamento ou de um funeral, ou por terem ido socorrer sobreviventes. Outros, garotos buscando lenha nas regiões rurais. Levando em conta as mortes indiretas, causadas pelo agravamento geral das condições de sobrevivência e saúde da população sob a ocupação, o total de afegãos mortos pela ocupação chega a meio milhão.