“Cerimonias de luto estão entre as primeiras expressões simbólicas da espécie humana desde os tempos mais remotos. Mesmo em tempos de catástrofe é necessária uma despedida digna. Por isso, fazemos aqui uma cerimônia de afeto, respeito às mais de 416 mil vidas que se foram.” Com essas palavras, a presidente da Comissão de Cultura, deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA), deu início, nesta sexta-feira (7), à homenagem, em forma de “Canto de Passagem”, às famílias e vítimas da Covid-19 em nosso país.

A cerimônia virtual, proposta pela presidente do colegiado, durou quase duas horas e contou com a participação de líderes de diferentes religiões, artistas, representantes da ciência, além de parlamentares da Comissão de Cultura da Câmara.

Para Alice, a política não devia estar distante da vida social, mas ser “espelho plano da vida das pessoas”. “Por isso fizemos questão de humanizar esse mundo da política diante de quem sucumbiu nesta catástrofe, pela falta de zelo, pois sabemos que muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas”, pontuou.

Idealizador do ato ao lado da deputada Alice Portugal, o historiador, escritor e fundador do Instituto Casa Comum, Célio Turino, afirmou que o manifesto proposto pela Câmara é “muito significativo”. “Ritos de passagem dos entes queridos estão presentes desde os primórdios. É o momento em que a gente se encontra com a finitude e também com a eternidade. E neste momento, como é necessário. Se fôssemos destinar um segundo a cada vida ceifada pela Covid em nosso país seriam 166 horas. Quando nos encontramos nesses momentos também nos curamos e precisamos agradecer e honrar as vidas que foram ceifadas”, disse após fazer um paralelo com a cerimônia fúnebre dos povos indígenas do Xingu, o Kuarup.

Além das palavras de conforto espiritual trazidas por religiosos como o rabino da Congregação Judaica do Brasil, Nilton Bonder; pelo mestre budista Lama Padma Santén; pelo líder muçulmano Sheikh Mohsin Ben Moussa; pela mestre budista Monja Coen; pela pajé Rita Tupinambá, do povo Tupinambá Hã Hã Hãe; e pelo teólogo Leonardo Boff, o ato contou com palavras de resistência, indignação e luta, além de arte.

Solidariedade e luta

Membro da Comissão de educação e cultura da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Vicente falou sobre o desafio de resgatar a ternura da vida diante de tantas mortes. Ele reiterou que a vida está sendo ameaçada não só pelo vírus, mas por tantos outros descompromissos que a sociedade e a política têm proporcionado.

“Este é um luto mais sofrido, porque não nos é permitida a despedida. Mas que o luto nos leve à luta. Para reconhecermos que nunca podemos brincar com a vida. Há responsabilidades e isso tem que ser registrado na história de um jeito ou de outro. O tribunal da história vai nos julgar por aquilo que temos feito pela vida e pela irresponsabilidade de ter causado tantas mortes. Não tenhamos dúvidas de que estamos sendo chamados a reconstruir um pacto pela vida, pela cultura, pelo nosso povo e pela nossa gente. Seremos julgados pela omissão, ou responsabilidade, por aquilo que fazemos, dizemos e somos. Que amanhã sejamos reconhecidos como promotores da vida e não como matadores de gente e de meio ambiente”, declarou Dom Vicente.

Os presentes não citaram nominalmente o presidente Jair Bolsonaro, mas as mensagens sobre a negligência do governo federal no combate à pandemia foram claras.

“Diante desse genocídio que ocorre no Brasil, os mortos convocam todos os vivos. Não podemos sepultá-los em nosso espírito e memória. Eles exigem de nós que continuemos a lutar para cessar esse genocídio e evitar que esse número se multiplique a cada dia. Temos que lutar para obrigar que o governo aja, para disseminar a vacina, a assegurar aos mais pobres um auxílio emergencial permanente para que possam se cuidar na pandemia. Temos que pressioná-los”, destacou o frade dominicano, jornalista e escritor Frei Betto.

Pandemia e violência

A pastora evangélica Romi Márcia Benck, do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, também destacou a responsabilidade do governo sobre o momento atual e lembrou ainda dos casos recentes de violência: na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em que uma “operação” policial massacrou 25 pessoas nesta quinta-feira (6); e o atentado a uma creche em Saudades (SC), onde crianças e funcionárias foram assassinadas na terça-feira (4).

“Momentos como este nos dão a sensação do abandono de Deus. Nos faz perder a fé. Mas o abandono que nós vivemos não é o de Deus, mas de quem deveria zelar por nossas vidas, pela comunidade e pela sociedade. Existem responsáveis por essas dores, pelo vazio que tem hoje em inúmeras casas e nós não podemos fazer este ato de luto sem trazer presente as dores provocadas por outras pandemias. Gostaria de fazer um momento de solidariedade às vítimas de ontem do Jacarezinho. Da mesma forma quero trazer às famílias de Saudades (SC). Esse contexto de pandemia aflorou outras pandemias estruturais que temos na nossa sociedade. Qual a valoração do ser humano que temos no Brasil?”, pontuou a pastora.

Ela lembrou ainda um trecho do Evangelho segundo João para defender o combate ao racismo, à desigualdade e à falta de compromisso do Poder Público com a população. “A história da videira diz que ao permanecer no amor de Deus podemos produzir muitos frutos. Significa superar tudo o que rompe com a vida: o racismo, a desigualdade, a falta de compromisso público por parte de quem deve zelar por esse país. Nesse momento, uma autoridade nacional que muitos reconhecem como representante de Deus é quem mais está afastado Dele, pois é incapaz de zelar pelas vidas das pessoas”, destacou.

A líder religiosa do Unzó Maiala, Mameto Laura Borges, representando as religiões de matriz africana, também pontuou a necessidade do respeito e empatia com a dor do próximo, sobretudo por parte dos gestores. “É muito importante quando a gente traz todas as religiões para abraçar todas essas dores. É um sofrimento não podermos fazer essas despedidas. Onde vamos parar dessa forma? Com esse presidente que não vê as dores e não age com emoção, não olha para o outro? É preciso respeitar”, disse.

Ciência contra o negacionismo

O imunologista Gustavo Cabral também participou do ato. Para ele, fé e ciência são indissociáveis para enfrentar períodos duros como o que o Brasil atravessa.

De acordo com os últimos dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o país já se aproxima das 420 mil mortes por Covid-19. Perdas que poderiam ter sido evitadas, caso o governo federal não negasse a ciência.

“A fé é nosso grande combustível. Não tem como dissociar isso da ciência. Esse é um momento de tristeza e lamentação, mas tem algo que a gente precisa entender: não podemos permitir que essa dor nos tire a força de continuar”, disse.

Ele defendeu a união da sociedade para cobrar uma postura diferente do governo federal. “Só prevalecemos porque somos uma sociedade. Já erramos demais como sociedade para chegar onde chegamos. Em 2021 jamais poderíamos permitir o que aconteceu. Já tínhamos vacina, informação. Continuamos errando, desprezando a ciência, negando a vida. Qualquer país que se preze deve ter a ciência como aliada, não como inimiga. A ciência é aliada pra combater a fome, também é fé, força, crescimento nacional, estabilidade social, melhoria da saúde educacional. A partir do momento que desprezamos ou usamos apenas em períodos de tragédia temos esse caos”, pontuou.

O músico Ivan Lins também destacou a importância da ciência e criticou o negacionismo encabelado pelo atual governo.

“O que vem acontecendo nesse país é um retrocesso. O negacionismo. Negar a ciência é instalar a dúvida, a insegurança e o caos. As religiões foram feitas para unir e nosso país está dividido. É na união do povo que podemos acelerar essa saída”, disse.

Além de Ivan Lins, o manifesto contou com a participação da cantora Célia Porto e do maestro Rênio Quintas.

Comenda Paulo Gustavo

A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) anunciou no ato o protocolo de um projeto de resolução – que não precisa de sanção presidencial – para premiar o humor brasileiro. Em homenagem ao ator, humorista, diretor, roteirista e apresentador Paulo Gustavo, que perdeu a batalha para a Covid esta semana, a parlamentar quer estabelecer uma comenda batizada com seu nome.

O prêmio, a ser concedido pela Câmara, é, segundo Jandira, “uma forma de homenagear todos que levam o humor ao país”. “A comoção com a morte de Paulo Gustavo não se deu à toa. Ele era uma pessoa do povo, o retrato desse país. Por isso estou dando entrada a essa comenda que proponho que leve seu nome para homenagear o humor brasileiro”, disse.

Jandira afirmou ainda que falta solidariedade a quem comanda o país e que a cultura é peça-chave para enfrentar o momento que o país atravessa.

“Estamos sob uma guerra cultural, fundamentalista, que não permite a diferença e não admite o outro. Mas jamais vamos nos homogeneizar. O Brasil não é enquadrável. A ciência, entrelaçada com tudo isso, e nossa indignação para lutarmos contra o negacionismo. Precisamos sentir solidariedade, amor, tristeza. Em nome dos artistas que se foram homenageamos todas as vidas que perdemos para a negação da ciência”, pontuou.

Aos nossos filhos

Jandira leu ainda a letra canção Aos nossos filhos, de Ivan Lins, fazendo um paralelo da música com o momento atual. “Ivan, peço licença para trazer essa música, mas ela é linda e a acho muito atual”, afirmou Jandira.

Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim

Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim

Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

E quando lavarem a mágoa
E quando lavarem a alma
E quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim

Digam o gosto pra mim

 

 

Por Christiane Peres

 

(PL)