Aldo Arantes foi deputado constituinte e tem mobilizado diferentes setores em defesa da democracia e da Constituição

Por Aldo Arantes

Bertolt Brecht nos ensina a “nunca ir adiante sem primeiro voltar para checar a direção”. Assim, o sentido a se dar ao balanço do ano deve ser identificar o rumo geral dos acontecimentos para deslindar o caminho a ser adotado, a fim de reconstruir a esperança do nosso povo.

Como consequência das políticas do governo Bolsonaro, a economia apresenta índices medíocres de crescimento e elevado desemprego. As agressões aos direitos sociais se voltam prioritariamente contra os direitos dos trabalhadores, com a radicalização da chamada reforma trabalhista e a realização reforma da Previdência.

O patrimônio nacional está sendo liquidado. Importantes empresas públicas estão sendo privatizadas e entregues ao capital estrangeiro. A saúde pública enfrenta graves problemas. A área cultural tem seus orçamentos minguados e a criação artística é vítima de ataques à liberdade de expressão.

A universidade pública tem sido vítima de ataques, com cortes de verbas e intervenção na autonomia universitária. Desenvolve-se uma “caça às bruxas” com o chamado combate ao marxismo cultural e procura-se impor a chamada “escola sem partido” – na verdade, uma escola voltada a impor aos jovens uma mentalidade autoritária, discriminatória e racista.

Os avanços científicos são negados, enquanto ideais medievais são afirmadas. O meio ambiente está sendo degradado, com o desmonte de seus órgãos de monitoramento e o consequente aumento do desmatamento e dos incêndios criminosos na Amazônia.

O ódio, a violência, a discriminação social, de gênero e de raça estão presentes nos atos e nas declarações de autoridades do governo. Tal postura tem estimulado agressões físicas e assassinatos de pobres, negros e da comunidade LGBT. Exemplos disso são o crescimento do feminicídio; as mortes de nove jovens no baile funk de Paraisópolis; as prisões arbitrárias, sem nenhuma justificativa, de brigadistas contra incêndios florestais em Alter do Chão; e as denúncias de torturas, em quartel da polícia, de sete jovens de uma comunidade da zona norte no Rio de Janeiro.

Foi realizado um ataque ao acampamento do MTST em Alagoas em que os PMs gritavam “agora é Bolsonaro, Lula está morto”. Têm sido realizados inúmeros ataques a templos religiosos umbandistas. A descarada proteção dada ao senador Eduardo Bolsonaro, envolvido em esquema de desvio de dinheiro na Assembleia Legislativa do Rio, quando era deputado estadual, e sua ligação com Fabrício Queiroz, envolvido com as milícias, desmascara o falso combate à corrupção e ao crime organizado do Presidente e sua família.

Em decorrência do clima político vivido no País, cresce a organização de grupos de extrema-direita. Foi criado o partido neonazista Aliança pelo Brasil, que terá como objetivo organizar os seguidores de Bolsonaro e pôr em prática sua política de ódio, violência e discriminação. Estudo realizado pela antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, aponta que existem pelo menos 334 células neonazistas no Brasil, sendo a maioria delas no Sul e Sudeste. Segundo a pesquisa, tais grupos defendem ideias ultranacionalistas, racistas, xenófobas e discriminatórias. Praticam a violência e têm como alvo de seus ataques os negros, homossexuais, judeus e migrantes nordestinos.

Surgiu, também, o Comando da Integralista da Insurgência Popular Nacionalista da Família Integralista Brasileira, que reivindicou a autoria do ato terrorista contra o grupo Porta dos Fundos. Foi criada a Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil para defender “valores da família tradicional, a cristandade, o patriotismo, o Estado mínimo, o direito de propriedade, o livre mercado e a economia liberal”. Esse grupo visa impor as ideias de extrema-direita entre os advogados e conquistar a direção da OAB.

A imprensa tem sido vítima da pressão do governo. Jornalistas críticos ao governo são perseguidos, como ocorreu com Paulo Henrique Amorim, afastado da TV Record. As ofensivas contra a democracia e a Constituição deixam os democratas em alerta. As declarações e as medidas governamentais se sucedem. O presidente Bolsonaro, defensor da ditadura, afirmou que as manifestações no Chile ocorreram porque a ditadura acabou. Seu filho Eduardo Bolsonaro – que antes ameaçara fechar o STF com um cabo e um soldado – sugeriu o retorno do AI-5. O ministro da Economia, Paulo Guedes, seguiu no mesmo caminho.

O governo enviou ao Congresso o projeto de excludente de ilicitude em relação a atos praticados por militares, contra manifestações políticas. Ou seja, procura-se uma autorização para matar em eventuais manifestações contrárias ao governo. O presidente anunciou, também, a utilização da GLO (Garantia da Lei de da Ordem) para a realização de ações de despejo no campo.

O que sobra de democracia corre sério risco. O fato é que o governo vai adotando medidas que caminham no sentido da implantação de um Estado policial militar de caráter neofascista. A democracia e seu fundamento, a Constituição estão sendo afrontadas. Os direitos e garantias individuais e coletivas estão sendo pisoteados.

Mas 2019 demonstrou, também, que houve resistência. A libertação de Lula foi uma importante vitória da democracia. As manifestações realizadas por todo o País em defesa de sua liberdade foram decisivas nesse resultado.

As revelações do site The Intercept Brasil desnudaram a parcialidade de Sérgio Moro, revelando que ele não era um juiz digno da função, mas, sim, um político de direita exercendo a law faire para retirar Lula da disputa eleitoral e contribuir com a vitória de Bolsonaro. Tal circunstância criou as condições para o Supremo Tribunal Federal formar uma nova maioria que garantiu a derrubada da prisão em segunda instância.

Vitórias foram obtidas no Congresso Nacional, com a derrubada de aspectos graves da reforma previdenciária e do pacote anticrime, entre os quais a prisão em segunda instância e o excludente de ilicitude. Os estudantes lutaram em defesa da universidade pública e contra a “escola sem partido”. O movimento sindical travou lutas contra as reformas trabalhista e previdenciária.

Várias iniciativas ocorreram para organizar a luta democrática, entre elas a formação do Observatório da Democracia, unindo as fundações do PT, PCdoB, PSOL, PPS, PSB e Pros. O Observatório realizou no Rio, em agosto, o Fórum de Resistência Democrática. No Tuca, na PUC-SP, foi realizado em setembro o ato organizado pelo movimento Direitos Já – Fórum pela Democracia, reunindo diversos partidos e entidades sociais.

Já em dezembro, no Tucarena, foi realizado o Ato em Defesa da Democracia e da Constituição, por iniciativa da Faculdade de Direito da PUC-SP e de seu Centro Acadêmico 22 de Agosto, além dos autores do livro Por que a Democracia e a Constituição Estão Sendo Atacadas?

Evidentemente, várias outras iniciativas não foram aqui listadas. Todavia, fica claro que, apesar de ter havido resistência à onda de direita, ela foi muito limitada diante da gravidade da situação que estamos atravessando.

Muito se tem debatido sobre as causas desse baixo grau de mobilização da sociedade. Considero que um dos aspectos mais importantes foi a hegemonia conquistada pelas ideias reacionária e conservadoras na sociedade, que conseguiu gerar o ódio contra a esquerda e caracterizá-la falsamente como corrupta, sobretudo o PT. Tudo isso afastou amplos segmentos da sociedade da luta política. Gerou um clima de desconfiança contra as iniciativas da esquerda ou dos movimentos sociais.

Assim, torna-se essencial reconquistar amplos segmentos da sociedade que foram ganhos pelo bolsonarismo ou que estão paralisados politicamente. Para isso, é fundamental despertar a esperança de amplos segmentos da sociedade. A esquerda, mesmo unida, é insuficiente para enfrentar o vendaval direitista.

As práticas adotadas pelo governo Bolsonaro e seus ataques aos direitos sociais e à democracia contribuem, para a criação desse novo quadro político. Mas é essencial desencadear uma planejada luta de ideias contra o obscurantismo, o racismo, o ódio, a violência e todas formas de discriminação. A denúncia da manipulação política da corrupção é um objetivo estratégico nessa luta. É de grande importância a denúncia da manipulação da fé religiosa com fins políticos.

É fundamental reconstruir a hegemonia do pensamento progressista na sociedade em torno de valores como a solidariedade, a defesa da justiça social, a defesa dos interesses nacionais, a defesa da liberdade religiosa e do caráter laico do Estado, a defesa de um pensamento crítico e voltado para os interesses do povo e da Nação, a defesa da ética individual e social.

A hegemonia cultural conquistada pela direita, impondo seus valores, decorreu de um plano bem arquitetado, de longo prazo e de alcance internacional. Diante da nova fase desenvolvimento do capitalismo, com a hegemonia do capital financeiro e do neoliberalismo, os Estados Unidos procuraram elaborar uma nova estratégia de dominação.

Com esse objetivo, a CIA realizou, em 1980, uma série de reuniões em Santa Fé, Novo México, que resultaram nos Documentos de Santa Fé. Tais Documentos apresentaram a alternativa de deslocamento do foco de atuação dos Estados Unidos da esfera eleitoral para a conquista da sociedade civil.

O texto intitulado “Em Busca da Funda de David”, de Maurício Abdalla, relata essa alteração de estratégia nos seguintes termos: “As análises estratégicas contidas nesses documentos são extremamente esclarecedoras para a compreensão de como a dominação foi pensada em uma perspectiva de longo prazo e de um império permanente. O texto apresenta a proposta de deslocamento do foco de atuação da intervenção estadunidense nos países latino-americanos da esfera eleitoral para a conquista da sociedade civil, por meio da formação de uma subjetividade social adequada aos seus propósitos”.

As citações abaixo trazem à luz os objetivos dessa nova estratégia de dominação.

“O Documento de Santa Fé II dá atenção particular à economia […] Estatização, gigantismo do aparato burocrático e nacionalizações são desaprovados, enquanto a formação de um mercado de capital nacional, a remoção do controle governamental na economia e a privatização das companhias estatais são encorajadas (p. 29-30)”.

“Oferecer uma estratégia que vá além de apenas garantir um sistema eleitoral, e, se isso for seguido pela próxima administração, poderá trazer estabilidade para as hoje estremecidas e instáveis situações políticas dos países da América Latina. Especificamente, isso significa dar apoio às organizações independentes dentro das sociedades latino-americanas, educar o povo, e lutar contra o marxismo e outras forças políticas e culturais estatizantes (pg. 29)”.

“Após uma breve exposição sobre o que interpretam do pensamento gramsciano, os autores do documento afirmam”:

“Os métodos marxistas e os intelectuais marxistas poderiam realizar [a mudança do regime] dominando a cultura da nação, processo que requeria uma forte influência na religião, nas escolas, nos meios de comunicação de massa, e nas universidades. Para os teóricos marxistas, o método mais eficaz para criar um regime estatista num ambiente democrático era através da conquista da cultura da nação […]”

“É nesse sentido que a Teologia da Libertação deve ser entendida: ela é uma doutrina política disfarçada de crença religiosa, tendo a característica de ser contra o papa e a livre-empresa, com objetivo de enfraquecer a independência da sociedade frente ao controle do Estado. […] Assim, vemos que a inovação da doutrina marxista se insere em um fenômeno cultural e religioso de longa duração”.

“O desenvolvimento da política cultural é básico para a sustentação, pelos EUA, do esforço latino-americano para desenvolver a cultura democrática. O esforço gramsciano para minar e destruir a tradição democrática através de subversão ou corrupção das instituições que dão corpo e mantêm aquela tradição deve ser combatido. Fortalecer o orçamento da USIA, tendo esse problema em vista, deve ser a principal prioridade. A USIA é a nossa agência para a guerra cultural (p. 12)”.

“As instituições públicas e privadas americanas devem envolver-se na educação dos meios de comunicação e dos líderes comunitários sobre a natureza da estratégia de conflito do marxismo-leninismo, adaptado pelos nacionalistas aos desafios do subdesenvolvimento. O casamento entre comunismo e nacionalismo na América Latina acarreta o maior perigo tanto para a região quanto para os interesses americanos (p. 19)”.

Para pôr em prática essa nova estratégica, o imperialismo norte-americano investiu milhões de dólares e contou com o apoio de governos, de setores empresariais dos países latino-americanos, de setores reacionários das igrejas evangélicas e católica e de intelectuais conservadores. Formaram institutos de estudos e financiaram lideranças jovens.

Tal atividade foi facilitada pela brecha deixada pela esquerda ao subestimar o processo de conscientização da sociedade e a luta de ideias, ao não realizar – ou realizar de forma limitada – a guerra cultural ou ideológica. A ênfase exagerada na luta eleitoral terminou prejudicando a luta no campo das ideias. Com isso se deixou o campo aberto para a entrada das ideias reacionárias que foram expandidas com a utilização das novas tecnologias e das fake news.

Em 2020, teremos as eleições municipais, que serão um campo de disputa preparatória às eleições presidenciais de 2022. Trata-se de uma luta de grande importância. Para obter vitórias, será necessário fazer alianças em torno de programas de caráter democrático que deem respostas aos problemas dos municípios.

Porém, para contribuir com seu bom resultado é essencial não subestimar duas outras frentes de luta. A luta em defesa da democracia, da Constituição e dos direitos nela contidos, que poderá agregar amplos setores que percebem a gravidade da situação vivida pelo País e poderá criar as condições para a formação de uma frente ampla em defesa da democracia e contra o bolsonarismo.

Tal frente criará condições mais favoráveis para uma convivência democrática nas eleições municipais e pode abrir espaço para uma unificação eleitoral para 2022. Todavia, se não conseguirmos quebrar a hegemonia do pensamento conservador e o ódio à esquerda e à democracia, os objetivos políticos ficarão dificultados.

A luta de ideias contribui, a curto prazo, com um melhor resultado político e eleitoral e abre caminho para a retomada da hegemonia progressista na sociedade a longo prazo. A direita nos deu uma lição sobre a importância e atualidade da luta de ideias. Ficou claro seu papel na vitória do golpe de 2016 e na eleição de Bolsonaro. Não temos o direito de continuar subestimando essa frente de lutas.

Por sua relevância, é necessário unir forças para realizar com êxito tal objetivo. Para isso, é indispensável elaborar um plano específico de luta de ideias, com objetivos, metas e meios para sua efetivação. Esse poderia ser um dos objetivos do Observatório da Democracia, que reúne as fundações dos partidos progressistas. Reconstruir a esperança está intimamente ligado a reativar os valores civilizatórios que foram abandonados!