A alternativa socializante chinesa
O fenômeno do surgimento dos chamados latecomers – notadamente, as experiências de catching-up no Leste Asiático do pós-Segunda Guerra Mundial – colocou em evidência noções/categorias como desenvolvimentismo e Estado Desenvolvimentista; a última foi elaborada por Chalmers Johnson em seu estudo clássico sobre o Japão lançado em 1982 (1). Alice Amsden (2) aponta na direção de a experiência coreana encetar como o “próximo gigante”. Outros autores, fora e dentro do Brasil, produziram ótimos estudos sobre o tema.
Por Elias Jabbour e Alexis Dantas*
Em verdade, houve um frenesi pelo “modelo” japonês e o de seus congêneres do Leste Asiático, mas poucas considerações foram levadas em conta acerca dos limites dessas dinâmicas de desenvolvimento, a começar pelo limite político e geopolítico, notadamente o fato de tais processos terem ocorrido, em grande medida, sob o patrocínio norte-americano e em países ocupados militarmente. A Endaka japonesa de 1985 e o reenquadramento coreano no final da década de 1990 fizeram dissipar determinadas ilusões. O que não significa que, em tais países, instituições de tipo desenvolvimentista deixaram de existir. Ao contrário, continuam sendo casos (os únicos) bem-sucedidos de catching-up do século XX.
Atenção semelhante tem sido reservada ao caso chinês. Não à toa. Seu processo de desenvolvimento econômico é um dos fenômenos mais impressionantes do mundo em que vivemos, em função tanto da longevidade quanto do seu alcance interno e externo: o crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos 40 anos foi de 9,5% a. a., ao mesmo tempo em que a renda per capita no período passou de US$ 250 em 1980 para US$ 8.800 em 2018. Por detrás desse processo, há de se destacar a alta relação investimento/PIB (acima dos 40% desde a década de 2000), suas imensas reservas cambiais (US$ 3,08 trilhões em janeiro último) e o enorme volume de comércio externo (35,9% do PIB).
É na história por detrás desses dados que residem, na China, tanto a formação de uma “tripla condição” de potência comercial, industrial e financeira, quanto a privilegiada posição política e geopolítica de maior credora líquida do mundo e comandante em chefe do maior projeto de integração física da história da humanidade. Lançada em 2013, a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota atualmente sintetiza o alcance e a capacidade da China de se fazer presente nos quatro cantos do planeta via investimentos de trilhões de dólares em infraestruturas que já envolvia, no final de 2017, mais de 70 países, 65% da população do mundo e 40% do PIB mundial.
Não obstante, apesar da reação norte-americana a essa iniciativa – muito clara em tentativas de desestabilização de países envolvidos no projeto, além da própria China –, ao que tudo indica o país está disposto, sob o acicate desse projeto, a lançar as vigas mestras da proposta chinesa de construir um mundo de desenvolvimento compartilhado. Algo em clara oposição a noções reacionárias de “destino manifesto” e as famigeradas “guerras humanitárias” patrocinadas por Washington.
Voltando à China, dados apontam que entre 1978 e 2018, os chineses foram responsáveis pela retirada da linha da pobreza de 840 milhões de pessoas. Para o centenário de fundação do Partido Comunista da China, em 2021, o plano é zerar a extrema pobreza no país. Um feito que deveria ser visto de forma estratégica, dada a tendência de o capitalismo, via substituição do trabalho vivo por trabalho morto, ao mesmo tempo criar uma camada de centenas de milhões de “indesejáveis” e alimentar alternativas autoritárias e fascistizantes à sua própria decadência.
Internamente, programas internos de conexão econômica estão se ampliando com dois fenômenos já tratados por nós em oportunidades anteriores, sendo provadas a relação entre o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica com avanço na especialização e a elevação do grau de divisão social do trabalho. Por exemplo, em 2018 um Programa de Desenvolvimento do Cinturão do rio Yang Tsé foi lançado com investimentos da ordem de US$ 500 bilhões em dez anos pelo China Development Bank.
A “guerra comercial” declarada por Trump é, em essência, voltada contra a possibilidade real de a China alcançar não somente autonomia tecnológica completa, mas também o “estado da arte” em matéria de sofisticação tecnológica (com a famosa plataforma 5G, domínio amplo do Big Data). Tratam-se de investimentos de bilhões de dólares no desenvolvimento de mecanismos de inteligência artificial capazes de abrir maior relevo e possibilidades de planificação econômica e social jamais sonhados pela primeira leva de cientistas da Gosplan soviética ou do MITI japonês.
Qual a alternativa? De onde ela vem? Qual seu modus operandi? O exposto até aqui sugere que o capitalismo busca alternativas à já insolúvel (nos marcos de novos marcos tecnológicos) contradição entre forças produtivas x relações de produção, e tem passado pela elevação do grau de policiamento da sociedade e da dispensa via encarceramento dos chamados “indesejáveis”. Por outro lado, o socialismo também gesta não somente sua reinvenção, mas uma real alternativa.
Esta alternativa em construção e desenvolvimento não abre mão de um sistema político próprio e peculiar nascido nos marcos da Revolução Nacional e Popular de 1949. Desde 1978, partindo das bases lançadas pela industrialização pesada, investimentos maciços em saúde e educação – e a soberania política e militar que faltou às experiências japonesa e coreana –, o mundo se estatela diante de uma dinâmica de crescimento e desenvolvimento baseada na fusão de mais de uma centena de conglomerados empresariais e estatais com toda uma complexa e sofisticada rede de financiamento de longo prazo e em todos os níveis, do nacional ao subnacional (províncias e capitais de províncias).
Desde as reformas econômicas de forma cíclica, o papel do Estado vem ganhando papel qualitativo. Desde investidor (via sistema financeiro estatal) a executor (via conglomerados estatais) em primeira instância, passando pela formação de instituições que transformam o Estado também em um gerenciador tanto de grandes políticas fiscais como de políticas de socialização do investimento. O fetiche da lei das vantagens comparativas não somente foi suplantado por meio de uma revolução (1949). A formação de um policy space capaz de proteger a política monetária das frequentes crises financeiras que acometem o mundo passou pela transformação do comércio exterior em bem público, planificado e de Estado.
Ao lado do crescente aumento qualitativo do poder do Estado sobre a economia, percebe-se que a estrutura de propriedade chinesa ainda é muito diferente da de outras partes do mundo. Esse processo reflete-se diretamente, desde a segunda metade da década de 1990, em um aumento contínuo do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015 (3).
A construção dessa alternativa não prescinde da necessidade de superação de profundas contradições surgidas ao longo do processo e que podem colocar em questão a própria experiência. Referimo-nos a questões relacionadas à concentração de renda, elevado papel do investimento em detrimento do consumo e da explosiva questão ambiental.
Do dito acima, ainda insistimos em afirmar que essa alternativa surge sob o acicate do socialismo de mercado. Não mais como uma mera abstração, e sim já como uma nova e distinta formação econômico-social.
Referências:
(1) JOHNSON, C. Miti and the Japanese Miracle: The Growth of Industrial Policy: 1925-1975. Stanford: Stanford University Press, 1982.
(2) AMSDEN, A. Asia’s next giant: South Korea and late industrialization. New York: Oxford University Press, 1989.
(3) NAUGHTON, B. Is China Socialist? Journal of Economic Perspectives, (31) 1, 2017, p. 3-24.