Um dos episódios marcantes na história do Brasil, a luta armada no Sul do estado do Pará, durante a ditadura militar, tem sido objeto de pesquisas e debates. Mas há os que tentam deformar o seu sentido e vulgarizar seus propósitos.
Por Osvaldo Bertolino*
Com grande alarido na mídia, acaba de ser laçado o livro “Borboletas e lobisomens”, de Hugo Studart, historiador, jornalista e professor. Em 658 páginas, ele aborda a Guerrilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na virada das décadas de 1960-1970 no Sul do estado do Pará, de um ponto de vista que mescla “imaginários” com informações atribuídas à institucionalidade do espectro do regime militar de 1964. “Trabalho com a hipótese de que os guerrilheiros do Araguaia estavam essencialmente tomados por sonhos, movidos pela esperança de construção de um país justo e igualitário, seguindo o imaginário revolucionário daquele tempo, as décadas de 1960 e 1970”, escreve ele (página 31).
A ideia-força da obra é a tentativa de julgar o conflito como algo fora da realidade daqueles tempos, uma tragédia cujos principais responsáveis são os dirigentes do movimento guerrilheiro. Esse julgamento aparece nitidamente nas “Considerações finais” (página 493), quando os “dirigentes do PCdoB” são apontados, sem meias palavras, como responsáveis pelas mortes ocorridas na região. Devem ser “responsabilizados perante a história pela imolação daquele punhado de homens e mulheres que sonhavam um sonho quando as esperanças eram grandes” (pagina 501). Os dirigentes sabiam, segundo o “imaginário” do autor, “que aqueles jovens estavam sendo enviados à morte”, mas eram movidos por “uma mentalidade doentia” de “acreditar que a imolação de seres humanos poderia construir uma nova vida política para o Brasil” (página 500 e 501).
Para piorar a situação, segundo Studart, “foi uma covardia ímpar cortar as comunicações e as linhas de abastecimentos”, uma falsificação inacreditável diante de tantas evidências que desmentem essa calúnia (pagina 501). “Ora, por qual razão a direção do partido cortou por completo as linhas de abastecimento da guerrilha no exato momento em que os militares chegaram ao Araguaia?”, indaga o autor (página 496). Segundo ele, “o partido cortou repentinamente as linhas de abastecimento”. “Sem aviso prévio, não havia mais qualquer fluxo de armas, munição, remédios, alimentos, dinheiro. O partido cortou até mesmo a comunicação. As cartas iam do Araguaia para São Paulo. Mas a via inversa foi interrompida”, escreve ele (página 499).
Studart certamente sabia da queda da Comissão de Organização do PCdoB, liderada por Carlos Nicolau Danielli, entre o final de 1972 e o começo de 1973. O episódio foi reconstituído na biografia de Danielli, escrita pelo jornalista Osvaldo Bertolino em 2002, citada na obra de Studart na bibliografia e no episódio em que ele comenta o retorno de Criméia Alice Almeida ao Araguaia, em missão partidária, depois dela ter sido retirada da região, grávida, pelo guerrilheiro Zezinho (página 460). Como demostra a biografia de Danielli, a ligação com o Araguaia era feita pela Comissão de Organização, àquela altura assassinada pela repressão (além de Danielli, foram mortos Lincoln Cordeiro Oest e Luiz Guilhardini).
No livro de Studart, no entanto, esse episódio não aparece. Talvez porque seria a negação da sua tese de que João Amazonas, Elza Monnerat e Ângelo Arroyo “desertaram” da Guerrilha. Ele optou por insistir na falácia, chegando ao ponto de afirmar que Amazonas e Pomar “não designaram ninguém”, para o lugar de Danielli. Com isso, a ligação com o Araguaia foi cortada (página 290), uma afirmação que combina desinformação com dedução para concluir que os dirigentes da Guerrilha João Amazonas e Ângelo Arroyo deveriam ser submetidos ao “Tribunal Revolucionário das Forças Guerrilheiras do Araguaia” por deserção e pegar pena de morte. A argumentação é um devaneio inexplicável para quem tem um mínimo de informação sobre aqueles acontecimentos.
Condenação de Amazonas, Grabois e Pomar
No caso de Amazonas, Studart alega que ele abandonou a região de caso pensado, conforme o relato do encontro dele com Elza Monnerat na rodoviária de Anápolis, Goiás. O autor finaliza o episódio dizendo que o encontro “pode intrigar observadores laicos, dado o tamanho das coincidências”. “Contudo, boa parte dos militantes do PCdoB sempre enalteceu a profunda sintonia entre os dirigentes Elza e Amazonas — ilustrado pelo não dito em Anápolis — como algo extraordinário, mágico.”
O “não dito” seria o gesto de Elza “apontando o dedo para baixo” quando “se esbarraram na rodoviária de Anápolis por acaso, segundo a narrativa do partido”. O episódio é descrito por Studart sem nenhuma contextualização e sem apresentar nada que pudesse justificar uma segunda versão (página 475). É um caso típico de dedução, de “imaginário”. Amazonas, de acordo o autor, havia deixado a região da Guerrilha por meio de um ardil, ludibriando Maurício Grabois, seu mais fiel camarada, aliado político e amigo, alegando uma “dor de dente” que precisava ser tratada em São Paulo (páginas 474 e 475).
A inverdade fica mais flagrante quando ele escreve que “na Guerrilha do Araguaia, sob os codinomes Cid e Mário, havia uma aparente harmonia entre os dois”, que “revezavam-se em todas as funções e missões”, como “ir a São Paulo, de tempos em tempos, a fim de participar de reuniões da Executiva do partido” (páginas 474 e 475). Studart não deixa pistas sobre se essa dedução de que Amazonas sabia do iminente ataque da repressão à região decorreu de poderes premonitórios ou se ele era ligado à repressão. O mais provável, de acordo com a sua formulação, é a segunda hipótese, uma vez que a harmonia entre Amazonas e Grabois era apenas “aparente”.
Esse nó “imaginário” fica ainda mais embaraçado quando ele escreve que dentro do PCdoB Amazonas e Grabois eram hierarquicamente iguais, “contudo, um degrau abaixo de Pedro Pomar” (pagina 474). A afirmação aparece seca, abrupta, sem nenhuma consideração ou justificativa, o que denota desleixo ou sabe-se lá o quê. A coisa piora quando se constata, ao longo do livro, que Pomar, Amazonas e Grabois sempre estiveram no mesmo patamar. De acordo com sua própria versão, os três lideraram a “fundação” do PCdoB em 1962, que decidiu “deflagrar uma insurreição armada que tinha por objetivo promover uma revolução socialista no Brasil” (página 22).
Eram tão cúmplices que, assim como o Exército, não permitiram que o partido contasse como a Guerrilha foi derrotada, mantendo “segredo sobre o episódio” (página 23). Só em 1996, de acordo com o “imaginário” de Studart, quando começaram a aparecer acervos pessoais dos militares, entregues para jornalistas e historiadores, o PCdoB “começou a abrir sua própria história”, com o comparecimento de João Amazonas “à Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados para prestar depoimento sobre o Araguaia”. “Ou seja, exatos 22 anos após o fim do episódio, o PCdoB daria início à sua própria ‘abertura’. Uma abertura lenta, gradual e segura”, escreve ele (página 23).
É uma flagrante inverdade. Basta uma pesquisa mínima para se constatar publicações e atos políticos do PCdoB sobre o assunto. Mas, de acordo com o “imaginário” do autor, “desde então, o partido passou a incentivar publicações sobre o episódio, seja em reportagens na imprensa, seja em livros de seus militantes ou, ainda, em pesquisas acadêmicas” escreve ele, sem comprovar o que diz (página 23). E arremata a falsa afirmação dizendo que “até a presente data, o PCdoB não abriu seus próprios arquivos para pesquisadores não filiados” (página 24). É mais uma flagrante inverdade; o Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois já foi visitado por vários pesquisadores sem filiação ao PCdoB.
Outra falsificação grosseira é a afirmação de que o PCdoB “reagiu” ao “destaque editorial” sobre a Guerrilha iniciado pelos militares “ao longo da década de 2000” (página 24). Como prova, ele apresenta as biografias de João Amazonas, Elza Monnerat, Maurício Grabois e Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, pela “editora oficial do partido”, a Anita Garibaldi. Trata-se de um argumento reles, como se houvera uma gincana editorial entre as duas forças que se enfrentaram no Araguaia, que se estende para as versões sobre o que teria acontecido com os guerrilheiros (página 25).
A “fundação” do PCdoB
Outro argumento grosseiro aparece quando Studart descreve a trajetória do Partido Comunista do Brasil — segundo ele, “fundado em 1922 por integrantes do movimento tenentista” e embalado, “a partir da década de 1930, sob a liderança do capitão do Exército Luiz Carlos Prestes” —, que “nasceu de uma costela das Forças Armadas” (página 49). É mais uma informação abrupta, sem nenhuma explicação, que contraria frontalmente os registros históricos.
Ele se apoia num documento “secreto” produzido pelo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) para descrever as organizações de esquerda que se engajaram na luta armada (página 49). Contra todas evidências, Studart dá crédito a um documento que define o Partido Comunista Brasileiro (PCB), uma das vertentes da divisão comunista do final da década de 1950 e início da década de 1960, como seguidor da “estratégia apontada por Antonio Gramsci, um dos mais originais e importantes pensadores marxistas do Ocidente, autor da ideia de revolução pacífica dentro do aparelho do Estado” (páginas 49 e 50).
A Ação Popular (AP), segundo o autor, “também professava a linha gramsciana” (página 50). Já o PCdoB, “desde a sua fundação, em 1962, preconizava em seus documentos uma linha política de tomada do poder por meio da luta armada” (página 51). A afirmação se apoia no envio de militantes “para o treinamento em estratégias e táticas de guerrilhas na Academia Militar de Pequim” (página 52). A AP seguia a mesma linha, o que teria dado origem a um grupo que começou “a introduzir Brasil afora o pensamento do novo profeta do comunismo, Mao, ‘O Grande Timoneiro’”, que mais tarde “formaria mais uma dissidência, a Ação Popular Marxista-Leninista (APML)”, tirando “do PCdoB o monopólio da representação do maoísmo no Brasil, o que deixava os dirigentes stalinistas furiosos” (página 52).
É uma empulhação, está claro. O PCdoB estudou o caminho da luta armada por longo tempo (veja aqui O PCdoB e o caminho da luta armada). Quanto à APML, seu aparecimento se deu como evolução do debate entre 1968 e 1971, quando a AP aprovou o “programa básico” e mudou o nome para Ação Popular Marxista-Leninista. No processo, cristalizou-se a polarização entre a “maioria” — capitaneada por Duarte Pacheco Pereira, Haroldo Lima, Aldo Arantes e Renato Rabelo — e a “minoria”, cujos líderes mais expressivos eram Jair Ferreira de Sá e Paulo Wright.
Manifesto-Programa do PCdoB
A versão sobre a “fundação” do PCdoB em 1962 é outra falsificação da história. No mínimo o autor deveria ter apresentado as versões das duas vertentes comunistas (PCB e PCdoB), ambas reivindicando a continuidade do partido fundado em 1922, recorrendo, por exemplo, à farta documentação que serviu de base para as biografias de João Amazonas e Maurício Grabois (publicadas em 2012), citadas por ele, e, com mais riqueza de detalhes, a de Pedro Pomar (publicada em 2013). Mas Studart optou pela tergiversação, com conotação provocativa.
Segundo ele, os dirigentes do PCdoB no tempo presente “acreditam (ou fingem acreditar)” na fundação do partido em 1922, citando como exemplo a celebração dos “supostos 90 anos da organização com uma campanha publicitária na televisão no qual informavam que o partido jamais mudou, continua o mesmo desde sempre”. “Ainda apresentaram a imagem de alguns de ‘seus’ comunistas históricos renomados, como Olga Benário, Jorge Amado e Oscar Niemeyer”, vituperou. “Ora, mais do que uma imprecisão, trata-se daquilo que Hannah Arendt, em seu ensaio “A mentira na política”, classificaria de ‘deslavada mentira’, ou ainda, na melhor das hipóteses, ‘embustes e autoembustes, segundo as palavras da pensadora”, afirmou (páginas 63 e 64).
Studart falsifica até o Manifesto-Programa do PCdoB (veja aqui Reorganização do PCdoB: a história da Conferência extraordinária e aqui A Conferência de Fevereiro de 1962 e a reorganização do PCdoB) para dizer que o documento “pregava a luta armada, inclusive contra o governo de João Goulart, que mal começava” (página 64). Ele mesmo se desmente ao reproduzir o trecho em que o PCdoB avaliou que “as classes dominantes tornam inviável o caminho pacífico da revolução” e que “as massas operárias e camponesas teriam que recorrer a todas as formas de luta”.
Ou seja: o caminho da luta armada dependeria do comportamento das classes dominantes, como teorizou Maurício Grabois na “Tribuna de Debates” do 5º Congresso do PCB. “Embora, na presente situação do mundo, se deva ter em conta a viabilidade do caminho pacífico, não se pode, nas condições brasileiras, torná-lo absoluto. Os comunistas preferem este caminho. Mas cometeriam grave erro se nele apoiassem toda a sua atuação, porque nada ainda tem comprovado que o caminho da revolução brasileira é o caminho pacífico. A experiência passada e recente dos países da América Latina mostra que não foi pacífico o caminho para derrubar as ditaduras. Mesmo no Brasil, a prática mostra que as mudanças na estrutura econômica do país ou nas instituições políticas, não se fizeram sem o apelo à força armada, embora nem sempre se verificassem choques sangrentos”, escreveu.
Rigor com as fontes
Studart insiste nessa versão falaciosa (ele volta ao assunto nas páginas seguintes), como se o PCdoB fora “fundado” para cometer estultices. É a reedição daquilo que Pedro Pomar definiu como atribuir sandices aos outros para rebatê-las com ar triunfal. O autor faz isso também ao descrever a visita de Diógenes Arruda Câmara ao 19º Congresso do “PC soviético”, em 1952, como se fosse um deslumbrado diante do líder soviético Josef Stálin, baseado no infame livro “O Retrato”, de Osvaldo Peralva. Faz o mesmo ao relatar os efeitos do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), de 1956, no PCB, com base no também infame livro “A revolução impossível — a esquerda e a luta armada no Brasil”, de Luís Mir (página 67).
Ele repete a infâmia ao deformar os conceitos de “ditadura do proletariado” e do “centralismo democrático” para imputar a uma fantasiosa “ala” do partido, liderada por Arruda, “em cujas fileiras perfilavam-se João Amazonas, Pedro Pomar e Maurício Grabois”, a rejeição à “abertura democrática” do PCB, em fins de 1956” (página 70). Esse grupo lideraria a “fundação” do PCdoB, com o pendor militar do antigo PCB, que servia à tática do Exército Vermelho soviético de treinar membros das forças armadas e militantes comunistas do terceiro mundo, “a começar pelo ex-oficial do Exército, Maurício Grabois” (página 71).
É de amplo conhecimento que Arruda não aderiu ao grupo que reorganizou o Partido Comunista do Brasil, com a sigla PCdoB, em 1962, e que só ingressaria nele algum tempo depois. Também é mais do que sabido que Maurício Grabois foi expulso da Escola Militar do Realengo por atividades políticas; jamais fora “oficial”.
Como se vê, se tem uma coisa da qual Studart não pode ser elogiado é o rigor com as fontes. Tanto que ele recorre ao livro de Peralva, segundo o próprio autor “redigido a fel de fígado no lugar de tinta”, para agredir a memória de alguns dos principais dirigentes do PCB pré-reorganização de 1962. Da mesma forma, dá como verdade a conversão do judeu Grabois em “ferrenho antissemita” por “orientação de Stálin” (páginas 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81 e 82).
Biografia de Pedro Pomar
Outro exemplo de vergonhosa falta de rigor com a fonte se dá quando Studart avalia a biografia “Maurício Grabois: uma vida de combates”, do jornalista e pesquisador Osvaldo Bertolino (veja aqui Maurício Grabois e os combates na Guerrilha Araguaia). Ele simplesmente reproduz mentiras deslavadas do jornalista Lucas Figueiredo na revista CartaCapital (veja aqui Diário de Maurício Grabois: resposta de Lucas Figueiredo tem pernas curtas), sem sequer citar a fonte (página 80). Erra, por omissão ou desídia, duas vezes com uma só cajadada. De acordo com a infâmia de Studart, o “funcionário da Fundação Maurício Grabois” Osvaldo Bertolino (a tentativa de desqualificar a polêmica é de Lucas Figueiredo, não citada pelo autor) “pode ter deixado seu coração ser levado ao extremo oposto do fígado de seu xará Osvaldo Peralva” (páginas 80 e 81).
Há ainda o exemplo de Pedro Pomar, tido por Studart como líder de “uma ala do PCdoB que buscava analisar as causas da derrota militar por meio de profundas autocríticas, em oposição à ala liderada por João Amazonas, que tentava manter uma visão triunfalista do episódio” (páginas 86 e 87). A biografia “Pedro Pomar — ideias e batalhas”, também de Osvaldo Bertolino, reconstitui o episódio minuciosamente, revelando que os fatos são bem distintos da versão fantasiosa de Studart.
Sobra infâmias também para Carlos Nicolau Danielli, descrito como um irresponsável que iludia os jovens encaminhados ao Araguaia prometendo que as armas seriam tomadas do Exército e as “provisões” providas pela selva (páginas 99 e 100). Danielli, Amazonas e Grabois entrevistavam os jovens em São Paulo e, de acordo com a acusação de Studart, “não prestavam qualquer informação sobre o ambiente em que iriam viver” (página 106). Ele alega que teve acesso a depoimentos dos jovens à repressão e, com base neles, afirma que “os dirigentes do PCdoB não informaram explicitamente que eles estavam indo para o Araguaia participar de uma luta revolucionária” (página 197).
Para emprestar credibilidade à acusação, Studart recorre a uma entrevista do dirigente do PCdoB Newton Miranda (falecido em 2010, no Pará) à revista “Amazônia”, na qual ele teria dito que os militantes eram convocados para ir ao Araguaia sem saber o que estava acontecendo na região, “para evitar que o movimento guerrilheiro fosse descoberto pelos militares”. A informação é inverossímil; o caminho da luta armada foi amplamente debatido no PCdoB, conforme apontam os documentos aqui relatados.
Ataques a Elza Monnerat
Elza Monnerat (Tia Maria) não poderia escapar das infâmias. De acordo com a narração de Studart, ela teria indicado o local em que a militante do PCdoB Rioco Kayano fora presa numa pensão em Marabá, Pará. Quando retornou a São Paulo, no episódio da rodoviária de Anápolis, informou à direção do partido que não teria conseguido avisar Rioco porque “a prioridade era alertar João Amazonas”.
Studart relata, sem citar a fonte, que num ônibus revistado por militares “um recruta foi abordado por uma senhora, entre cinquenta e sessenta anos”. “Essa senhora teria dito que vira uma moça ‘suspeita’ numa determinada pensão. Era uma japonesa a quem nunca vira antes e estava agindo de forma estranha”, escreveu ele (páginas 208 e 209). Trata-se de uma torpeza, está claro.
A tentativa de atingir a imagem das principais lideranças da Guerrilha é explícita. Osvaldão também é descrito de forma negativa, uma figura insensível a ponto de, no final da Guerrilha, escolher apenas os “mais corajosos e preparados” para ficar com ele, “apontando o dedo apenas para oito deles, os escolhidos, os ‘eleitos’, os únicos que poderiam segui-lo”. Os demais que “descobrissem um jeito de escapar vivos” (página 42). Quando o estudante de medicina Tobias Pereira Júnior chegou à região com a promessa de que daria assistência médica à população carente, de acordo com a versão de Studart, Osvaldão teria lhe dado uma arma e dito: “Este é o seu hospital: é ficar ou morrer” (página 107).
Ele também teria obrigado mulheres a formar um grupo de execução, um “justiçamento”, para “testar a coragem e a determinação revolucionária feminina” (página 323). Studart tenta mostrar uma decepção de Osvaldão com Arroyo, que teria ludibriado um camponês com dinheiro falso para comprar a sua fuga. Ao comprovar a “fuga”, diz o autor citando o camponês, “Osvaldo se afasta, vai para perto de umas bananeiras e começa a chorar”. Chorou compulsivamente, “urrava de dor” (páginas 472 e 473).
Ataques a Ângelo Arroyo
Arroyo também é duramente atingido em outras citações. Sua “fuga” teria sido considerada pelos guerrilheiros como “deserção, uma traição” (página 394). Studart sentencia Arroyo: “Abro um interstício para registrar que, caso o novo comandante em chefe das Forças Guerrilheiras do Araguaia fosse membro das Forças Armadas, de soldado a general, sua fuga do Araguaia poderia ser considerada deserção, com o agravante pelo ato de covardia. Nesse caso, seria aberto um Inquérito Policial Militar e ele seria julgado pela Justiça Militar. Em caso de guerra, mesmo no Brasil, poderia pegar pena de morte. Exatamente a mesma pena que o Tribunal Revolucionário das Forças Guerrilheiras do Araguaia prometia aplicar a seus desertores: execução sumária, sob o eufemismo do ‘justiçamento’. Contudo, no governo Lula, Arroyo foi festejado e heroicamente anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça” (página 473).
De novo, o problema de Studart são as fontes. Ele poderia ter analisado o caso, bem elucidado na biografia de Maurício Grabois, para não escrever tamanho devaneio; quando Arroyo deixou o Araguaia, as forças da repressão já haviam tomado a região. O ataque à Comissão Militar, no Natal de 1973, quando Maurício Grabois foi morto, na prática selou o fim da Guerrilha.
Studart aplica a mesma sentença para João Amazonas. Após ludibriar seu amigo e camarada Maurício Grabois para “fugir dos combates assim que o Exército chegou ao Araguaia”, ele “optou por cuidar do partido, em segurança, a partir dos aparelhos de São Paulo” (páginas 469 e 78). Jamais enviou “qualquer notícia aos camaradas que permaneceram no Araguaia” (página 165). Também era um insensível, de acordo com a narração de Studart. Certa feita teria passado uma reprimenda no médio João Carlos Haas Sobrinho, o doutor Juca, porque “entre a segurança dele e a nossa, ou ajudar alguém, ele não pensava duas vezes” (página 197).
“Delação” de Carlos Danielli
A versão de que Amazonas é um “desertor”, segundo o próprio Studart, é da repressão. “Pode até ser uma óbvia tentativa de desqualificá-lo. Mas não há outro qualificativo para explicar a atitude de Amazonas de fugir da luta armada, abandonando seus camaradas na mata, sem linhas de abastecimentos, sem armas, sem remédios, sem qualquer notícia. Sequer enviou uma mensagem do tipo ‘virem-se sozinhos’, ‘salvem-se quem puder’, ou algo assim. Simplesmente desapareceu. Se fosse militar — como era o caso de Grabois, ex-oficial da Aeronáutica — é certo que seria aberto um IPM e Amazonas seria levado à Justiça Militar sob a acusação de ter cometido crimes de deserção e covardia. Como era comandante guerrilheiro, pelo menos em tese, Amazonas teria sido levado ao Tribunal Revolucionário. A pena para o crime de deserção é a morte, o justiçamento”, sentenciou (página 476).
É inacreditável que Studart ignora as evidências de que essa versão não se sustenta. São óbvias demais. Há fatos, como os aqui já relatados, que comprovam isso. Não há uma vírgula que comprove o que ele afirma. Mas o autor segue em frente, desta vez acusando Amazonas de ludibriar também Pedro Pomar, seu camarada e amigo desde a década de 1930. Mais uma vez, as versões desfilam na narração atropelando os fatos.
A começar pela imposição de Amazonas e Elza Monnerat de que uma “discussão profunda sobre o assunto”, a “deserção”, estava proibida. Depois vem a incrível afirmação de que Pedro Pomar (o secretário de Organização) questionava “sobre o fato de terem cortado comunicação e as linhas de abastecimento” e os “desertores” alegavam que, com a morte de Danielli, “o partido não tivera condições de se organizar” (páginas 476 e 477).
Contra as mais elementares evidências, Studart afirma que Danielli foi “delatado pelo dirigente Jover Telles” e morto “em ataque dos militares ao aparelho onde se escondia” (páginas 477 e 500). “Chamo a atenção para o uso do verbo ‘delatar’. Era assim que o partido se referia ao fato de algum militante ter revelado o que sabia, sem considerar a tortura a qual fora submetido. No caso de Jover, falecido em 2010, ele enfrentou por quatro décadas o estigma de ser apontado como um grande traidor do partido”, escreve o autor (página 477).
Na verdade, Jover Telles seria o “delator” da reunião da Lapa, quando houve a chacina em 1976, conforme ele mesmo confessou em relatório analisado em detalhes na biografia de Pomar. Sobre as brutais torturas sofridas por Danielli no DOI-Codi do II Exército em São Paulo, comandadas pessoalmente pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que o levou à morte, Studart não emite uma palavra no livro.
Difamação de Amazonas
Amazonas, por sua vez, continuava passando a perna em seus camaradas e amigos, conforme os delírios de Studart. Mais uma vez sem explicar se o caso era de premonição ou cooptação, ele afirma que deliberadamente o “fugitivo” do Araguaia enviou Pedro Pomar, “o principal opositor (e questionador) de Amazonas”, para a morte.
De acordo com a narração folhetinesca, os dois dirigentes do PCdoB “revezavam-se nas missões partidárias internacionais”. “Contudo, Amazonas pediu para ir em seu lugar. Assim foi feito. E, dessa forma, Amazonas escapou da Chacina da Lapa” e “emergiu como o único todo-poroso dirigente do partido — tendo Elza Monnerat como a número dois da Executiva” (página 477).
Com isso, narra Studart, Amazonas evitou também ter de responder aos questionamentos de Pomar sobre a “fuga” do Araguaia e às “críticas violentas por escrito, no chamado ‘Relatório Pomar’”, jogando a “responsabilidade para outro dirigente, Carlos Danielli que, por questão de segurança, era o único responsável pelo abastecimento no Araguaia”. “Ora, Danielli havia morrido em dezembro de 1972, em ataque dos militares ao aparelho onde se escondia. E, desde então, segundo Amazonas, não teria havido condições efetivas da Executiva do partido se reunir para ungir outro responsável. E como ninguém tomou para si a responsabilidade, aqueles jovens foram deixados à própria sorte, opção no mínimo irresponsável”, escreve ele (página 500).
Esse é outro caso reconstituído na biografia de Pedro Pomar, com farta comprovação de que as coisas acontecerem de modo totalmente diferente. A começar pelo fato de que foi Pomar quem pediu a substituição, motivado por uma grave ocorrência com sua esposa, Catarina, hospitalizada para fazer uma cirurgia de emergência para a remoção de um aneurisma cerebral. Mas, na fantasia de Studart, o importante não são os fatos e sim a difamação de Amazonas, que prosseguiu impondo o silêncio no PCdoB sobre “as verdadeiras causas” da derrota no Araguaia (página 477).
Ataques a Maurício Grabois
Grabois, por óbvio, é o dirigente do PCdoB mais citado na obra, tendo como referência seu suposto “diário” que Studar diz ter sido copiado a mando de um capitão da área de informações (páginas 202 e 293). O original fora incinerado, segundo o autor (veja aqui Maurício Grabois e os devaneios de um jornalista da CartaCapital). Em algumas passagens ele relata, sem explicar por que, a citação de fatos importantes no “diário” oito e sete meses depois (rodapé da página 221, por exemplo). “Baiano de Salvador, Grabois era um dos comunistas históricos mais conhecidos do Brasil. Era cadete do Exército quando, em 1934, aos 22 anos, entrou para o Partido Comunista”, de acordo com a descrição de Studart (página 123).
Não há justificativas para erros tão primários: Grabois é paulista (por acaso foi registrado pela segunda vez em Salvador) e não passou de estudante da Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Na mesma obra, ele apresenta o comandante militar do Araguaia como “ex-oficial da Aeronáutica” (página 476). Na sua obra anterior, “A lei da Selva”, Studart diz que Grabois fora “oficial de artilharia da Força Expedicionária Brasileira na Itália” (veja aqui A Guerrilha do Araguaia vista pela “imaginação” de Studart).
Grabois, assim como Amazonas, também tinha rompantes grosseiros e insensíveis, como no episódio em que o doutor Juca fora repreendido por “ajudar alguém” antes da sua segurança e dos demais guerrilheiros. “Velho Mário (codinome de Grabois) se opunha abertamente às ideias e aos métodos do doutor Juca. Tratava-o pejorativamente por ‘pacifista’. Certa vez, em uma das reuniões do Destacamento A, quando se discutia novas normas de segurança diante do cerco do Exército, o comandante em chefe chegou a explodir diante das posições humanista do médico-guerrilheiro”, afirma (página 197). “Que se fodam os pacifistas. Eu quero é que esses pacifistas vão para a puta que pariu”, teria ralhado Grabois.
Era também, na avaliação do autor, despótico, como no caso em que protegeu o filho, Zé Carlos (André Grabois), num conflito entre guerrilheiros (página 467). Ao mesmo tempo, Studart o descreve como ingênuo a ponto de acreditar nas boas intenções de Amazonas. Segundo ele, Grabois registrou no “diário”, até o fim, a esperança de retorno do amigo e camarada. “No dia em que completou sessenta anos, a 2 de outubro de 1972, voltou a registrar o carinho e admiração por Cid. Pela ordem, no relato, primeiro citou Cid, depois a companheira, os filhos e, por fim, neto”, escreve ele (página 476).
Operação mortos-vivos
A obra é permeada de relatos do cotidiano dos guerrilheiros de difícil comprovação. Na narração aparecem intrigas, disputas, romances e tragédias. Tudo de acordo com depoimentos de moradores da região e de informações da repressão. Há casos escabrosos e absolutamente inverossímeis, como o da guerrilheira Criméia, apresentada como a única das mulheres presas que “alega tortura” (página 452).
Studart faz um longo relato sobre uma relação afetiva dela com um agente da repressão, totalmente baseado em “imaginário” (páginas 459, 460, 461, 462, 463 e 465). Ela teria omitido ao pesquisador Osvaldo Bertolino, em depoimento para o livro “Testamento de Luta: a vida de Carlos Danielli”, que voltou ao Araguaia não em missão partidária, mas a serviço do Centro de Informações do Exército (página 460).
Ele também faz um longo relato sobre um inimaginável caso de afeto entre a guerrilheira Áurea e o sargento encarregado de executá-la (páginas 406, 407, 408). Na versão do autor, contrariando fatos e evidências, os agentes da repressão respeitavam as mulheres, como é o caso do tratamento dado à guerrilheira Lúcia (Luzia Reis Ribeiro), que recebera “injeções de vitaminas e comida” antes de ser embarcada “em um avião Buffalo rumo a Brasília” (página 209).
Na obra, os militares receberam leves reprimendas, como no caso do tratamento dado aos jovens “deixados à própria sorte pela direção partidária” (página 501). Há outros casos que merecem registros por também serem acintosos e igualmente baseados em “imaginários”. Ao descrever infiltrações na Guerrilha pela repressão, por exemplo, Studart relata o caso em que um cabo recebeu a missão de “entrar para o PCdoB na cidade” (não cita qual). “Mesmo na reserva, permaneceu agente infiltrado. Ao falecer, no início da década de 1990, foi enterrado com a bandeira vermelha de (sic) partido em cima do caixão, ao som da Internacional Socialista (sic), enquanto viúva e filhos recebiam os cumprimentos dos velhos colegas militares” (página 302).
Há ainda o caso da “Operação mortos-vivos”, uma longa descrição do que seria o processo de transformar guerrilheiros que se entregaram em outras pessoas, rigorosamente clandestinas até os dias atuais (páginas 434, 435, 436, 437, 438, 439, 440, 441 e 442). Segundo o próprio autor, a versão é enfaticamente contestada por familiares dos desaparecidos. Studart cita o caso em que o ministro da Educação da ditadura, o coronel Jarbas Passarinho, teria colocado em seu Ministério dois “mortos-vivos” (página 439).
Divergências comunistas
Os ataques ao PCdoB seguem no posfácio de Paulo Roberto de Almeida, “diplomata de carreira, doutor em ciências sociais e mestre em planejamento econômico”. Segundo ele, a tragédia no Araguaia seria evitável e cabe “responsabilizar direta e totalmente a direção irresponsável do PCdoB pelo imenso crime contra um punhado de militantes idealistas, imaginando participar de um grande empreendimento de resgate social, e justiceiro, do pobre povo do interior, numa reprodução quixotesca do que teria sido a ‘guerra camponesa’ de Mao Tse-tung” (páginas 505 e 506).
As palavras duras e caluniosas prosseguem: “O PCdoB ainda não foi levado aos tribunais da história pelo crime cometido não apenas contra os pobres camponeses da região, mas sobretudo contra os seus próprios militantes enganados por uma direção dogmática, míope, absolutamente delirante em seus projetos de reproduzir a marcha de uma já mistificada ‘revolução camponesa’ ao estilo chinês” (página 506).
Studart também abusa da vulgaridade ao relatar sua versão sobre as divergências no movimento comunista internacional (União Soviética, China e Albânia) citando papéis do PCdoB que teriam sido apreendidos pela repressão na Chacina da Lapa em 1976, quando foram assassinados Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drumond, além da prisão de membros do Comitê Central (páginas 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150 e 151). Mas pouco fala sobre os documentos do PCdoB e não menciona a natureza filosófica daquele debate (veja aqui A história da Chacina da Lapa).
Para se ter uma ideia da vulgarização, ele diz que “em meados de 1975 o Comitê Central aprovou um documento batizado de ‘Sobre as relações’ que deixava explícito que o reatamento chinês com o governo militar brasileiro era considerado ainda mais injustificável do que a aliança da União Soviética de Stálin com a Alemanha de Hitler” (página 149). Esse estilo de ataques, grosseiros e rarefeitos, empresta à obra apenas um caráter vulgar, maldoso e inconsequente. De resto, uma prática antiga e recorrente das forças políticas e ideológicas obscurantistas.
*Osvaldo Bertolino é jornalista, escritor e editor do Portal Grabois