AVANÇAR NA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO, AFIRMANDO SEU CARÁTER ANTIRRACISTA E DEMOCRÁTICO!

1- A I Conferência Nacional do PCdoB de Combate ao Racismo ocorre num momento de ascensão da luta democrática no Brasil. A vitória de Lula e a derrocada de Bolsonaro da Presidência da República, em 2022, representaram um grande avanço para a democracia, abrindo um processo de reconstrução do país e de retomada da agenda de direitos socioeconômicos, como parte do fortalecimento da atuação organizada da classe trabalhadora e das lutas populares por soberania nacional, democratização do Estado e justiça social.

2- É neste novo contexto que o PCdoB pauta a Conferência Nacional de Combate ao Racismo, a partir de uma visão estratégica de elevar ainda mais o antirracismo como parte constituinte e destacada de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, compreendendo-a como uma necessidade imperiosa para o avanço do país. Num país cuja abolição formal da escravidão se deu há apenas 135 anos, suas principais vítimas, os povos originários e a população negra, seguem em franca condição de desigualdade de acesso aos bens resultantes do trabalho coletivo e mesmo ao gozo dos direitos previstos na Constituição.

3- No artigo 58 do seu Estatuto, o PCdoB afirma que: “O combate ao racismo é parte integrante do projeto de emancipação social e nacional pelo qual luta o Partido. E envolve não apenas os/as militantes que atuam nessa frente específica, mas todo o coletivo partidário”. Assim, é fundamental abrir o debate sobre o que é o racismo, suas bases históricas e ideológicas, a relação entre a luta antirracista e a luta de classes para a construção de um projeto de nação que possibilite avanços civilizatórios e de emancipação ao povo brasileiro, como: Atualizar política e teoricamente os/as dirigentes e militantes; combater concepções antimarxistas e superadas; tratar as incompreensões e buscar construir consensos em torno de pontos fundamentais para a nossa organização e atuação; e elevar a contribuição das/os comunistas para o avanço da sociedade brasileira.

4- A luta pela superação dos agravos do racismo que recai sobre as populações negra e indígena no Brasil está intimamente ligada à luta pela desracialização das relações socioeconômicas, pela superação da hiperexploração da força de trabalho e pelo fim da concentração de renda, bem como pela diversificação da atividade econômica que possibilite desenvolvimento e independência.

PAPEL DA ESCRAVIDÃO E A TRANSIÇÃO AO TRABALHO LIVRE NA CONSTITUIÇÃO DA NAÇÃO

5- Somos um partido marxista-leninista, e esta concepção teórica está baseada na economia política, mais especificamente nas maneiras por meio das quais os seres humanos organizaram o processo de produção e reprodução da vida material. Este não é o único aspecto, mas é o mais importante, não porque determine de forma automática todos os outros, mas porque, dentro da complexa interação com outras dimensões da vida social, ele tem papel dominante, ainda que opere recebendo influência dos outros.

6- Olhar para o Brasil, usando esse método, faz saltar aos olhos um dado objetivo, estruturante e incontornável: a escravidão. Desde o início da colonização, ela estava presente; e, com o passar dos anos, foi se espalhando e se transformando em dado estruturante de todas as relações sociais. Ou seja, ela não só foi o elemento fundamental da construção de uma civilização brasileira, como também determinou a “formação das almas”, a constituição das subjetividades do povo.

7- Isso é demonstrado também pela frieza dos números. De todas as pessoas escravizadas que foram retiradas à força da África para as Américas, durante toda a escravidão moderna, quarenta e três por cento delas foram trazidos ao Brasil; algo como quatro milhões e meio de seres humanos. Para se ter um padrão de comparação, para os EUA foram 400 mil. O Brasil, portanto, foi a engrenagem mais importante da máquina de horror da escravidão que nasceu no século XV e durou até o final do século XIX. O país não só recebeu quase metade de todo o fluxo de escravizados, como também levou a escravidão até 1888, e foi o último país do Ocidente a ter abolido tal instituto.

8- A colonização portuguesa, até as primeiras décadas do século XVIII, não encontrou, nos territórios do que viria a ser o Brasil, uma riqueza mineral significativa, como aconteceu aos espanhóis, com o ouro no México e a prata nos Andes, desde o início do século XVI. Os colonizadores promoveram uma produção em larguíssima escala, comercializada a distâncias enormes; o que era ousado, na medida em que as quantidades envolvidas na operação eram imensas. Tal empreendimento, inédito na história, foi viabilizado pela escravidão, primeiro dos povos originários e depois de africanas e africanos arrancados do seu continente. Ou seja, o trabalho em larga escala dos escravizados viabilizou a própria colônia, já que a produção de gêneros agrícolas envolvia grande quantidade de mão de obra. Desta maneira, a dinâmica sócio-histórica instalada neste pedaço dos trópicos teve, desde o mais tenro começo, sua força motriz no trabalho, coagida e definida pela racialização.

9- Se partirmos do pressuposto da centralidade da economia política, do caráter determinante do trabalho e das relações de produção, é impossível deixar de considerar o impacto da escravidão para a formação da sociabilidade e da cultura no país. A escravidão tem a violência como seu elemento constitutivo. Conforme Marx denuncia, o trabalho, no nosso mundo, sempre é coagido. No capitalismo dependente, essa coação é econômica, ou seja, os trabalhadores proletarizados, absolutamente despossuídos, são coagidos a trabalhar por um dado econômico: quem não trabalha não come e não sobrevive. O proletário é um trabalhador livre, nos dizeres de Marx, justamente por não ser propriedade de ninguém e gozar da igualdade jurídica que lhe permite celebrar contratos, adquirindo mercadorias e oferecendo o seu trabalho como mercadoria. É o que Marx chama de coação econômica. Há, no entanto, a coação extraeconômica, aquela por meio da qual o trabalhador é coagido fisicamente, mediante uma violência direta, a trabalhar. Ele não trabalha porque está pressionado pelo estômago, como no caso do proletário, mas por estar coagido fisicamente, estar preso, vigiado, ameaçado permanentemente pelo castigo, recebendo castigos físicos quando a força do corpo já não lhe permite sustentar a sua ferramenta ao operá-la.

10- Essa economia política da escravidão não era apenas o eito, a plantação com foices e enxadas, tinha também a dimensão da circulação. Nela o escravizado era, juridicamente, considerado coisa; o que permitia, ao opressor, que ele existisse concretamente como mercadoria, ainda que fosse uma pessoa consciente e que resistia e lutava, a exemplo dos/as quilombolas, das inúmeras rebeliões protagonizadas por homens e mulheres negros e originários. Essas pessoas eram compradas, vendidas, alugadas, hipotecadas e estupradas, na medida em que o acesso ao corpo da escravizada era, na prática, uma prerrogativa dos direitos de propriedade.

11- Esse tipo de relação não era marginal, nem mesmo secundária, era absolutamente determinante. Pesquisas dos últimos anos são unânimes em demonstrar que a escravidão brasileira esteve espalhada por todos os quadrantes do país, por todas as classes socais e por todas as atividades econômicas, nas plantações para exportação e para o consumo interno, na agricultura de menor escala, na mineração, na pecuária, no trabalho doméstico e no trabalho urbano. Havia proprietários de escravos em todos os setores sociais: pobres, “setores médios”, ricos.

12- Assim, desde antes da Independência até a década de 1860, havia uma imensa e heterogênea massa de pessoas interessadas na manutenção do cativeiro, pela simples razão de os escravizados serem sua propriedade mais importante. Isso transformou a escravidão em um quase consenso, formando um bloco muito amplo em defesa do cativeiro. Tratou-se de um “quase consenso” porque os escravizados lutaram desde o começo, por sua liberdade, em jornadas heroicas, a exemplo das inúmeras revoltas e da formação dos quilombos como espaços de resistência e libertação). E também porque houve, entre os livres, antes que o movimento abolicionista explodisse como grande luta social nacional, abolicionistas que ergueram suas vozes, como José Bonifácio, Luiz Gama, José do Patrocínio, entre outros membros desse movimento.

13- A construção do Estado Nacional, a partir da independência em 1822, aconteceu e promoveu uma renovação dos votos que uniam a elite, então nacional, à escravidão, apesar dos esforços de alguns, como o já citado José Bonifácio. O momento não era secundário, tratava-se do tempo fundacional do país, no qual, inclusive do ponto de vista simbólico, discutiu-se sobre o modelo, o projeto, o caminho da nação que se constituía. Nestes marcos o Brasil nem colocou em questão a ideia de ser uma nação livre, embora repleta de escravos.

14- Assim, no pós-independência, o país estabeleceu sua autoridade do Estado sobre o território como um Estado escravista; forjou a sua primeira literatura sob a égide do escravismo, excluindo os negros da cidadania e mitificando um pacto de subordinação entre brancos e originários (indígenas), a exemplo do célebre romance Iracema, de José de Alencar, publicado em 1865; criou um arcabouço legal, com Constituições e Códigos que obedeciam à lógica da reprodução ampliada de um sistema de produção e circulação escravista. Tudo em uma sociedade na qual os interessados na manutenção da escravidão estavam por toda parte, dada a onipresença da escravidão em todo o território nacional.

15- A colonização de exploração no Brasil adotou um sistema de produção agrícola, chamada por estudiosos de “plantation”. Esse sistema se apoiava em três pilares: monopólio da terra (latifúndio), trabalho escravo e monocultura para exportação. Esse tripé atendia aos interesses da metrópole Portugal. No caso do Brasil, inviabilizava o crescimento econômico local e mantinha uma estrutura social perversa, baseada na dominação do proprietário de terras sobre pessoas submetidas ao trabalho escravo, que chegou, em quase quatro séculos, a consumir milhões de trabalhadores e trabalhadoras. Com a Independência do Brasil, em 1822, e a Abolição da Escravatura, em 1888, o sistema de Plantation foi superado, mas deixou dois legados estruturais que vieram a prolongar as desigualdades no país: a manutenção das grandes propriedades de terras e a não absorção dos escravos libertos no nascente mercado de trabalho assalariado.

16- Em finais do século XIX, a luta pela abolição da escravatura se converteu, no seu transcurso, como o maior movimento de massas já registrado no Brasil, acompanhada por um intenso debate que mobilizou a opinião pública acerca da mudança na estrutura econômica do Brasil e, pari passu, pelo estabelecimento de outras bases de Estado que tivessem papel destacado na arregimentação e orientação das políticas de bem-estar social em sentido amplo.

17- Do fim do século XIX até meados do século XX, estima-se que mais de 4,7 milhões de imigrantes europeus vieram ao Brasil para trabalhar em plantações, no campo e na nascente industrialização nos grandes centros urbanos, na tentativa de cumprir o projeto de branqueamento almejado pelas elites.As consequências dessa marginalização da população negra, do mercado de trabalho assalariado, deixaram marcas profundas no Brasil. Todos os indicadores socioeconômicos apontam que essa população tem menor escolaridade, menor formação profissional, ocupa empregos menos qualificados e com salários mais baixos e compõe a maioria do contingente de trabalhadores precários, desempregados e subempregados.

18- O lento processo de construção do capitalismo brasileiro não foi a negação absoluta do mundo da escravidão. Pelo contrário, o racismo – poderoso, numa sociedade que, até outro dia, escravizou uma imensa massa de gente, a partir da racialização das relações socioeconômicas – foi um instrumento absorvido, e ressignificado, que ganhou espaço como um dos pilares estruturantes da vida nacional.

19- Séculos de uma escravidão racializada produziram um profundo aviltamento das pessoas negras. Compradas, vendidas, alugadas, hipotecadas, dadas como garantia, expostas em leilões e mercados de escravos, encarregadas de trabalhos indignos, as pessoas negras, salvo exceção, ocupavam um lugar subordinado no imaginário nacional. O Brasil acumula singularidades históricas que explicam as múltiplas formas de desigualdades: o sentido colonial, implantado pelos portugueses, focado na ambição de enriquecer o Império, a partir da exploração dos recursos e do trabalho implantado na colônia; o grande consenso em torno da empresa da escravidão, permitindo a escravização dos povos indígenas e a importação de um grande volume de escravizados africanos, superior a quatro milhões, conforme a literatura sobre o tema aponta; a capilaridade nacional e a longevidade do regime; o uso sistemático da violência para garantir a ordem, provocando o genocídio de amplo contingente populacional entre os povos indígenas, africanos e brasileiros escravizados. A sedição e diversas formas de resistência foram fatores de permanentes instabilidades, tendo os quilombos como estratégia mais estruturante; o que explica o Brasil, depois de 135 anos da assinatura da Lei Áurea, registrar mais de 5,9 mil comunidades quilombolas.

20- O jornalista e historiador comunista José Carlos Ruy afirma que “A Abolição, que significou o fim do estatuto que oprimia centenas de milhares de escravizados, resultou de um processo semelhante, controlado pelo alto pela mesma elite latifundiária dominante sob o escravismo. A mudança representada pelo fim do trabalho escravo não resultou de uma revolução de caráter democrático-burguês ao fim da qual emergiriam todos como cidadãos, com plena igualdade civil e política. E, apesar de sancionada pela constituição republicana de 1891, a igualdade foi uma lei que não pegou. O espírito ancién regime, aristocrático, permaneceu intocado e foi um obstáculo societário à plena vigência do espírito democrático-burguês sinalizado pela adoção da forma republicana de governo. As mesmas velhas classes dominantes continuavam no comando. E se manteve a mesma velha hierarquia social que fazia coincidir as linhas de classe e cor, relegando os brasileiros de pele escura aos piores lugares, aos empregos mais humildes, desvalorizados e mal remunerados, aos cortiços e favelas, à ausência da escola; abandonados à marginalidade, à miséria e à ignorância”.

21- Na história do nosso país, as políticas desenvolvimentistas, em diversos momentos em que aconteceram, não alcançaram, de maneira substancial, as populações negra e indígena, que seguem fortemente concentradas na base da pirâmide. Isto porque, além do caráter liberal capitalista, que já é excludente em sua essência, estas se processaram descoladas de uma visão antirracista, sem compromisso em enfrentar a realidade por elas vivenciada, atravessadas pelo racismo. O alargamento do papel do Estado como indutor do desenvolvimento e promotor de bem-estar social, sobretudo a partir da década de 1930, por exemplo, criou condições para que os trabalhadores de descendência europeia acelerassem o aumento do valor de sua força de trabalho e tomassem posição nas estruturas sociais onde se conquistava a tão proclamada cidadania liberal. A parcela branca da classe trabalhadora teve, na sua maior parte, acesso mais cedo à escolarização básica, às universidades, ao mercado de trabalho livre e formal, aos postos públicos e ocupações especializadas etc., diferente da trágica exclusão sofrida pelas trabalhadoras e os trabalhadores negros desta mesma classe social. Estes, além de terem sofrido duramente a falta de acesso à educação em todos os níveis, de ter o trabalho braçal e mais estafante como principal locus de venda da sua força de trabalho, de serem a maioria dos que trabalham na informalidade e de receberem os menores salários, foram submetidos desde sempre à perseguição do aparato repressor do Estado; o que configurou um ciclo perverso de racismo, marginalização e má-qualidade de vida que perdura até os dias atuais. Ainda que haja avanços, a estrutura de desigualdades baseada na cor da pele e na racialização segue sólida, aprofundando a exploração de classe social e estampando que, diferente do que diz a Constituição que declara que “todos são iguais”, há dois tipos de brasileiros: os fenotipicamente brancos e os não-brancos.

RAÇA E RACISMO: ESCRAVIDÃO E A TRANSIÇÃO AO TRABALHO LIVRE NA CONSTITUIÇÃO DA NAÇÃO

22- Raça é um conceito sócio-histórico que organiza a humanidade de forma piramidal na escala de evolução a partir de um conjunto de características étnicas e fenotípicas. Desde tempos longínquos, há conflitos e estranhamento em relação ao outro, no entanto, somente na Modernidade os traços fenotípicos tornaram-se marcadores sociais estruturantes. O conceito de raça é inoperante para explicar a variabilidade  humana, porque não tem amparo na ciência biológica. A sociedade humana é uma espécie que não se subdivide em raças ou sub-raças diferentes, “mas em seis bilhões de indivíduos genomicamente diferentes entre si, mas com graus maiores ou menores de parentesco em suas variadas linhagens genealógicas. (…) Em outras palavras, pode ser fácil distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou asiático, mas tal facilidade desaparece por completo quando se procuram evidências dessas diferenças ´raciais’ no genoma das pessoas”, conforme diz doutor Sergio Pena, responsável pelo projeto Genoma da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Raças humanas, na verdade, não existem, não é uma realidade biológica, é uma construção sociopolítica, carregada de ideologia e, como tal, não proclama seu verdadeiro sentido: relação de poder e dominação.

23- Racismo é uma forma sistemática e racional de discriminação que, tendo raça como fundamento, manifesta-se por meio de práticas sociais conscientes, ou não. É um fenômeno sociopolítico de tessitura polifórmica no tempo e no espaço; no entanto, guarda um sentido perene: desigualar seres humanos, Estados e civilizações para justificar a exploração e o domínio político e conferir-lhes legitimidade.

24- Esse conceito está firmado na literatura do PCdoB, de autores comunistas como Clóvis Moura, segundo o qual “O racismo se constitui atualmente numa ideologia de dominação do imperialismo em escala planetária e de dominação de classes em cada país particular”. E diz também que “o racismo brasileiro nas suas estratégias e nas suas táticas age sem demonstrar sua rigidez, não aparece à luz, é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente nos seus objetivos”.

25- E Ruy afirma que: “Todo racismo, em todos os lugares onde se manifesta, desde a antiguidade, tem como base comum a crença de que alguns grupos humanos seriam superiores e destinados ao domínio, enquanto outros seriam inferiores e destinados a servir àqueles em consequência de características físicas (pele, cabelo, olhos, nariz, formato do crânio etc.) ou culturais (religião, língua etc.). Em todos os lugares, ele parte daquela base comum para legitimar-se, para justificar a desigualdade e a opressão”.

26- Em importante resolução do Comitê Central, denominada A luta contra o racismo é parte integrante do projeto de emancipação nacional e social, de 2005, aparece a descrição do conceito: “O racismo é um aspecto fundamental do domínio de classes, sendo a faceta cruel da opressão social que complementa e reforça o domínio classista”.

27- Séculos de escravidão e as teorias do racismo científico permitiram que uma subjetividade racista se constituísse, naturalizando a exploração da classe escrava. É preciso notar que o racismo científico não era mera opinião, tratava-se de um posicionamento que gozava do status de ciência, já que suas conclusões teriam saído de experimentos, aos quais as revistas científicas – algumas delas publicadas até hoje – deram o seu aval com a publicação de artigos sustentando essas falsificações. Tudo isso em um tempo no qual a fé no progresso técnico-científico foi muito marcante.

28- O racismo no Brasil tem um caráter estrutural, fruto de um processo histórico e político de mais de 350 anos de escravidão, indígena e negra, cuja transição ao trabalho livre se caracterizou pela inclusão de um imenso contingente de mão de obra branca, principalmente europeia, em substituição à dos libertos, legando à população negra um denso processo de marginalização e desigualdade política, jurídica e econômica, ainda vigorante. E, além disso, há a negação do legado valioso dos negros e negras à formação do povo brasileiro e à construção do país e, ainda, a depreciação da imagem valorativa e estética. O racismo é inerente à ordem social instituída – reiterada e atualizada na sociedade brasileira –, impõe cenários materiais concretos e independe de vontades individuais. A construção desse edifício sociológico, que manteve mais de 50% de sua população no limbo da pobreza e ignorância, exigiu sistemática mobilização, condicionando instituições, inteligências coletivas e individuais à normalização das assimetrias.

29- Apoiado nesses dois pontos, o capitalismo brasileiro foi sendo estruturado apoiando o seu funcionamento na existência de um setor da população que poderia receber trabalhos piores, trabalhar jornadas mais longas, correr maiores riscos laborais e, mais importante, receber salários mais baixos. E a existência desse setor, que formava a imensa maioria do exército de reserva de trabalhadoras e trabalhadores, no qual exercia essa função precípua do capitalismo, pressionava os salários e as condições de negociação do conjunto da classe trabalhadora para baixo.

30- As persistentes heranças da escravidão e a sistemática reiteração de um projeto socialmente injusto e excludente legaram uma sociedade com profundas assimetrias. O caráter piramidal da sociedade brasileira reitera os privilégios secularmente estruturados, tendo a população negra e indígena na base e a branca no pico (indicando a predominância do racismo antinegro e anti-indígena). Logo, a parcela não-branca, especialmente a preta, a parda e a indígena, acumula desvantagens em relação a renda, educação e saúde, indicadores que se baseiam no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Para os demais escopos registrados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em pesquisa de 2022, a população negra registra grandes desvantagens: quase 80% dos donos de todos os estabelecimentos agropecuários do Brasil são brancos; negros têm o dobro de moradia irregular e vulnerável em relação aos brancos; são 70% dos encarcerados; 75% dos mortos por ação policial; e 73% das mulheres vítimas de homicídio, a violência sistêmica continua sendo uma eficaz ferramenta política de controle utilizada pela classe dominante.

SOBERANIA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DAS TERRAS DOS POVOS ORIGINÁRIOS

31- Os chamados povos originários – que, antes da chegada dos colonizadores europeus, já habitavam estas terras e todas as Américas – atravessaram séculos de lutas, em enfrentamento ao colonialismo e à escravidão; um processo marcado por sequestro, tortura, genocídio de milhões de seres humanos e etnocídio, numa tentativa de destruição das formas de existência e visão de mundo destes que representam civilizações milenares, na história da humanidade.

32- Segundo apontam informações do Censo Demográfico 2022, realizado pelo IBGE, o Brasil tem 1, 7 milhão de pessoas que se autodeclaram indígenas, com grande variedade linguística, e organizada em cerca 305 etnias (Agência Senado). São Guarani, Macuxi, Ticuna, Caigangue, Guajajara, Tucanos, Yanomami, Baré, Pataxó, entre outras.

33- A luta contra o racismo direcionado aos indígenas deve levar em conta as especificidades desse segmento populacional, sua autonomia de organização e reprodução das formas de existência. A grande maioria dos povos originários ocupa florestas e áreas rurais, com suas próprias formas de organização social, tradições e culturas. Há também, entre eles, os que vivem isolados em diferentes localidades da floresta Amazônica. A luta pelo respeito aos seus direitos, pela demarcação das suas terras e a preservação do seu patrimônio cultural, material e imaterial, seu modo próprio de vida, segue até os dias atuais sob a égide da violência, perpetrada pelo grande capital que impõe seus tentáculos sobre as terras e as riquezas minerais, das reservas indígenas ou em regiões próximas a elas. A falta de uma reforma agrária, com distribuição democrática de terras e infraestrutura para o seu cultivo e moradia e desenvolvimento sustentável das comunidades, expõe uma situação dramática de existência dos povos originários na sua tenaz luta por direitos.

34- O velho latifúndio, a ação de grileiros, o garimpo ilegal e as grandes corporações do agronegócio avançam sobre essas terras e instituem uma disputa muitas vezes sangrenta, que deixa, quase sempre, um rastro de destruição e morte de lideranças originárias. A tragédia dos Ianomâmis é um dos mais recentes e emblemáticos casos de repercussão mundial. Esse povo foi submetido à fome e à falta de atendimento à saúde durante os quatro anos do governo de Bolsonaro. Cerca de 570 crianças foram mortas de fome, desnutrição e contaminação pelos produtos químicos que envenenaram as águas dos rios, em consequência do garimpo ilegal, estimulado e protegido pelo governo Bolsonaro, aliado dos latifundiários e garimpeiros que atuavam à margem da lei.

35- O governo Lula declarou estado de emergência em saúde pública nas Terras Indígenas Ianomâmi (TIY) e Ye’kwana, organizou uma ação interministerial e revogou o famigerado Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal em Pequena Escala (PRÓ-MAPE), criado por Bolsonaro em 2022 para legalizar a ação deletéria e desenfreada do garimpo em terras indígenas já demarcadas. Conforme indica um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “nos últimos dez anos, entre 2009 e 2019, em números absolutos, houve 2.074 homicídios de pessoas indígenas. Com relação à distribuição de homicídios por estado, alguns se destacam por terem os maiores números e as taxas mais altas de homicídios (por 100 mil habitantes): Roraima (41 e 57), Mato Grosso do Sul (39 e 44,8), Amazonas (49 e 22,5) e Maranhão (10 e 23,6)”.

36- O Estado nacional tem obrigação de garantir o acesso à terra, a proteção social e o desenvolvimento sustentável dos povos originários. Ao mesmo tempo, é preciso investir em políticas de emancipação desses povos para que não haja tutela de grupos religiosos, organizações estrangeiras ou qualquer outro que queira substituir as representações legítimas das próprias comunidades originárias, com vistas a outros interesses. Os povos originários são a parcela do povo brasileiro que mais vive em conexão com a nossa natureza. Há, na luta histórica por eles vivenciada, muita sabedoria e capacidade de contribuir para a preservação e o desenvolvimento sustentável.

37- O governo do presidente Lula inaugurou um novo tempo de esperança com ações concretas para barrar a violência e preservar as terras e as condições ambientais dos povos originários e da Amazônia. Foi criado o Ministério dos Povos Indígenas, liderado pela ministra Sônia Guajajara, do povo guajajara/tenetehara, e também foi recriado e instalado o Conselho Nacional de Política Indigenista; a FUNAI foi reestruturada, passando a ser denominada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas e dirigida pela ex-deputada federal Joenia Wapichana, do povo Wapixana, comunidade de Cabaceira de Trúaru, em Boa Vista, Rondônia. O Brasil tem, pela primeira vez, duas mulheres, integrantes dos povos originários, comandando as políticas públicas voltadas para os povos originários.

38- Entretanto, há no Congresso Nacional diversos projetos que visam a esvaziar o poder do Ministério dos Povos Indígenas e inviabilizar o avanço da demarcação das terras dos povos originários. Este cenário exige luta ampla, mobilização popular para impedir retrocessos e fortalecer o poder de negociação e articulação do governo e da bancada do campo democrático.

39- A cooperação internacional para investimentos no Fundo da Amazônia foi retomada no governo Lula e é muito importante para combater o desmatamento e promover o desenvolvimento sustentável, a geração de emprego e renda na região e o crescimento dos indicadores de desenvolvimento humano. A Amazônia brasileira é do povo brasileiro. Cuidar dela e dos povos originários é uma forma de garantir a soberania nacional.

40- É preciso avançar na demarcação e Regularização Fundiária das terras dos povos originários, criar-lhes mecanismos de proteção permanente; ampliar a salvaguarda das nossas fronteiras, sobretudo na Amazônia; combater a violação dos direitos constitucionais indígenas e o racismo institucional; elevar as políticas educacionais, de acesso à saúde e de preservação ambiental e as políticas de desenvolvimento sustentável que incorpore o acesso e o uso humanizado das novas tecnologias.

41- Decididamente o racismo é uma chaga que divide o povo brasileiro e aprofunda ainda mais a exploração de classe, constituindo-se num sistema de negação de direitos aos negros e indígenas, em contraste com a vida luxuosa e abastada da classe dominante brasileira majoritariamente branca. Isto requer políticas que elevem a consciência crítica e antirracista da população: políticas de Estado direcionadas ao enfrentamento do racismo, do sexismo e de outras formas de opressão; e políticas de transformação social mais profunda, que mudem o padrão de produção dos bens e de distribuição da riqueza. O combate ao racismo, portanto, é uma necessidade imperativa para reforçar a união do povo brasileiro; coesão que é decisiva para a jornada pela emancipação social e nacional. Quaisquer concepções teóricas, políticas e ideológicas que atuem em sentido contrário à construção da união do povo, no curso da luta antirracista, devem ser repelidas.

42- A plena superação do racismo no Brasil exigirá, como condição necessária, ainda que não suficiente, um processo revolucionário de transformações sociais mais profundas de transição ao socialismo, a ser conduzido por um novo poder popular. Segundo o Programa Socialista do PCdoB, “ao longo de mais de cinco séculos, apesar das adversidades, o povo brasileiro construiu uma grande Nação. (…). Tal processo marcou a sua história com o fio vermelho do sangue derramado desde a resistência indígena e dos africanos contra a escravização, passando pelo enfrentamento heroico às ditaduras, até as lutas operárias e populares características de nosso tempo. O povo é o herói e autor da nacionalidade, o empreendedor dos avanços ocorridos no país. (…) A condição de povo uno, no presente, é um trunfo do Brasil, que, ao contrário de outras nações, não enfrenta grupos étniconacionais que reivindiquem autonomia ou independência frente à Nação ou ao Estado”.

O PCDOB NA LUTA ANTIRRACISMO

43- O conjunto da obra e das contribuições do marxismo para o desenvolvimento do pensamento filosófico e político da humanidade nega determinismos raciais, religiosos, geográficos, dentre outros, e é essencialmente anticolonial e antirracista. É uma teoria científica de caráter histórico-universal e, embora exprima os interesses do conjunto dos trabalhadores, é voltada à emancipação da humanidade da exploração, da opressão e da alienação. Domenico Losurdo, filósofo marxista italiano, destaca que, antes da Revolução Socialista na Rússia, os países imperialistas que se proclamavam “nações-modelo” ou “eleitas” conceituavam a vasta maioria da humanidade, os povos estranhos ao mundo ocidental e branco, como “raças inferiores” às quais se negava em bloco os direitos políticos”. E, segundo o historiador comunista Augusto Buonicore, “é a única teoria que proporciona uma análise eficiente do racismo, capaz de oferecer a base de uma estratégia visando à eliminação do racismo”.

44- O PCdoB, por ser um partido cuja base programática se assenta no marxismo-leninismo, sempre esteve no campo da construção da igualdade e do antirracismo; por isso, nas primeiras três décadas do século passado, quando o Brasil vivia a ressaca sociopolítica e a psicologia social da escravidão, negros foram destacados a representar o Partido na disputa à Presidência da República em 1929, com a candidatura de Minervino de Oliveira; e a elevar as vozes negras e comunistas de Claudino José da Silva e Carlos Marighella à Assembleia Constituinte de 1945. Outro feito que pode ser considerado adiante de seu tempo foi a Emenda à Constituição, elaborada por Jorge Amado, que garantiu a liberdade de culto e propiciou mais liberdade de culto às religiões e aos ritos de origem africana e dos povos originários. Quando o imortal líder da luta contra o apartheid e ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, esteve no Brasil, em 1991, foi recebido por parlamentares do Partido e recebeu o título de cidadão paulistano do vereador comunista Vital Nolasco, acompanhado de parlamentares do PCdoB e de outras forças partidárias, num memorável encontro! Mais recentemente, em conexão com a luta dos movimentos negros, o deputado federal Daniel Almeida, acolhendo proposta apresentada pela então vereadora Olívia Santana, apresentou o Projeto de Lei que criou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro, a Lei Federal nº 11.635, de 2007, sancionada pelo presidente Lula em seu segundo mandato.

45- Não apenas fatos históricos esporádicos retratam o forte compromisso e a densa contribuição do PCdoB ao antirracismo no Brasil, pois, nos 38 anos que marcam a redemocratização, foram inúmeras as suas iniciativas, dentre as quais: a participação fundamental da bancada comunista na Constituinte, em especial do deputado Edmilson Valentim, negro, operário metalúrgico, que, junto com os deputados Carlos Alberto Caó, Benedita da Silva, entre outros parlamentares, deixou suas digitais, voz e ampla atuação na histórica conquista da criminalização e da imprescritibilidade do racismo, na Constituição de 1988, além do reconhecimento dos direitos quilombolas; e a presença singular de Benedito Cintra em dois episódios que marcam a institucionalidade antirracista nacional: a instituição do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, em 1982, constituído no primeiro órgão de governo voltado à igualdade racial, e o desenvolvimento da redação, pactuação na sociedade e no Congresso Nacional, votação e aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, dando suporte jurídico institucional, para a aplicação das ações afirmativas e de promoção social, às populações negra e indígena. Além da presença constante nos grandes temas nacionais que exigem uma liderança qualificada e influente, o deputado federal Orlando Silva, Ministro de Lula e Dilma, consolidou-se como uma das mais importantes vozes do antirracismo na Câmara dos Deputados, pelo apoio dado às diversas iniciativas relacionadas à pauta, e pela capacidade de articular avanços políticos e legislativos à demanda antirracista.

46- A fundação da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro) também foi, em 1988, uma generosa contribuição dos comunistas ao antirracismo, permitindo que, nos últimos 35 anos, todas as justas lutas e conquistas do movimento negro brasileiro contassem com as digitais dessa importante ferramenta da luta antirracista e popular. O PCdoB apoiou e estimulou o impulso do movimento estudantil na defesa da reserva de vagas e das cotas que possibilitaram maior inclusão de negros e pobres nas universidades públicas federais, democratizando e reconfigurando esse espaço. O PCdoB é o partido de elevadas contribuições ao antirracismo nos parlamentos Brasil afora, fazendo o enfrentamento, aprovando leis, deixando legados que, no presente, tecem linhas importantes da contínua construção da nacionalidade.

47- A construção das políticas de igualdade racial experimentadas nos governos Lula e Dilma, que se espraiaram aos estados e municípios, contou com a inteligência de nossos quadros, defesa política de nossas instituições e nossos mandatos, e voto de nossos parlamentares.

48- Não menos relevante, o PCdoB é o partido que elegeu uma mulher negra como sua presidente, elegeu bancadas negras, líderes de bancada negros, ministros negros. É o partido que se notabiliza por nunca ter negado um voto ao antirracismo; por isso, reafirmar o PCdoB, e reafirmar seu Programa Socialista, é, também, uma ação antirracista.

ATUALIDADE DA LUTA DE RECONSTRUÇÃO NACIONAL E DE DEFESA E AMPLIAÇÃO DA DEMOCRACIA

49- Desde o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, do seu segundo mandato, foi posta em prática uma agenda de retrocesso em todos os campos dos direitos da classe trabalhadora e da população mais pobre, desconstruindo tudo de mais avançado que houve nos governos democráticos e populares de Lula e Dilma. Pôs-se em marcha o desmonte de direitos sociais, tendo como corolário o agravamento das desigualdades socioeconômicas, o incentivo ao racismo, ao preconceito contra negros e indígenas, pobres, mulheres, pessoas lgbtqia+, e contra os/as nordestinos/as trabalhadores/as nos grandes centros urbanos do Sul e Sudeste, resultando numa escalada da violência letal, inclusive da violência política seguida de morte, e na expansão da miséria.

50- O governo Temer impôs uma agenda de reformas ultraliberais, no mundo do trabalho, que flexibilizaram as relações trabalhistas, fortalecendo ainda mais o poder patronal sobre quem só tem a sua força de trabalho para vender e tentar sobreviver neste mundo onde o capital dá as cartas. Trata-se da Reforma Trabalhista que fez derreter os direitos da classe trabalhadora e fragilizou as organizações sindicais. E da Lei da Terceirização que, além de reduzir salários, empurrou a massa de trabalhadoras e trabalhadores para o campo sombrio do trabalho em condições análogas às da escravidão. Neste terreno, pessoas negras são a maioria.

51- Na educação, vimos o fim do programa de creches, iniciado por Dilma Rousseff, e, nas universidades, os cortes de verbas que desmontaram a assistência estudantil, subtraíram os investimentos em pesquisa e barraram a ampliação das instituições de ensino superior no país, provocando grandes ondas de protestos, lideradas pela União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e demais entidades estudantis e as representativas dos profissionais da educação, incluindo o movimento negro em sua luta para manter o sistema de cotas, que mudou positiva e irreversivelmente a face das universidades brasileiras.

52- Com Bolsonaro, a pandemia de Covid-19 comprometeu mais ainda o sistema de saúde pública (SUS), com impactos severos na economia – que já se encontrava em crise – e em vários outros setores da vida social. A pandemia encontrou terreno fértil num país estruturalmente racista, governado por um presidente negacionista, violento, que, com seu discurso de ódio, de elogio à tortura, de estimulação do racismo, da misoginia, de negação da ciência, contribuiu para um cenário de mortalidade de mais de 700 mil brasileiros e brasileiras. Um crime de lesa-pátria e de lesa-humanidade.

53- Considerando as condições de vida da população negra, majoritariamente concentrada nas favelas e nas comunidades periféricas, em todo o país, a vulnerabilidade frente ao coronavírus foi, evidentemente, trágica. Conforme evidenciou um estudo feito em 2021 pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, da PUC-Rio, “enquanto 55% de negros morreram por covid, a proporção entre brancos foi de 38%”. Neste contexto, porém, vale destacar o quanto as políticas direcionadas a estudantes negros podem funcionar criando novas realidades. Foi com orgulho que o Brasil viu a doutora Jaqueline Góes, com o apoio da equipe que integrava, conseguir sequenciar o genoma do novo coronavírus. Mulher negra e oriunda de programas de apoio a estudantes negros na Universidade Federal da Bahia, ela entrou para a história da ciência brasileira e mundial.

54- O governo de Bolsonaro foi especialmente deletério para as políticas de promoção da igualdade racial. A Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) foi esvaziada e aniquilada, tanto conceitualmente no seu papel formulador de políticas públicas de igualdade racial, quanto orçamentária e financeiramente. Houve corte de verbas destinadas às comunidades quilombolas e aos programas e políticas de combate ao racismo; desmonte do Sistema Nacional de Igualdade Racial (SINAPIR); ataques ao legado de lideranças históricas da luta antirracista; entre outras violências; e desmantelo daquilo que havíamos acumulado nos governos Lula e Dilma.

55- No governo negacionista de Bolsonaro, sob a direção de Sérgio Camargo, o país viu uma contradição bizarra e perversa se realizar. Um homem negro de extrema-direita, filho de um importante militante do movimento negro, serviu de instrumento para atacar, sistematicamente, a agenda antirracista, o legado de Zumbi dos Palmares e demais ícones da luta pela libertação dos negros e negras na história brasileira. Sob a direção de Sérgio Camargo, a Fundação Cultural Palmares viveu o seu pior período. Remontando a práticas nazistas, Camargo imprimiu uma verdadeira perseguição ideológica, excluindo, do acervo da biblioteca do órgão, a literatura de autores considerados de esquerda, além de livros de Marx, Engels, Lênin e outros, com explícito discurso anticomunista e de tentativa de impor o controle ideológico.

56- O bolsonarismo promoveu um apagão das relações internacionais. O Brasil, que vinha ampliando sua posição no concerto das nações com muita sabedoria diplomática, mas também com altivez na defesa da sua soberania, passou a se isolar dos demais países ao adotar posições reacionárias, autoritárias e negacionistas, sobretudo no trato com a pandemia de covid-19. Houve um grande retrocesso nas relações do Brasil com a África e  com a América Latina. Muito diferente do progresso ocorrido, sobretudo nos dois primeiros governos de Lula, que fortaleceu as relações Sul/Sul, de cooperação com os países da África e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, o que resultou na criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira (UNILAB). A agenda internacional do Brasil, durante os governos de Lula e Dilma, valorizou o multilateralismo, a autodeterminação dos povos, o combate à fome e à pobreza e a solidariedade internacional.

POLÍTICA DE EMPREGOS QUALIFICADOS E PROMOÇÃO DA IGUALDADE SOCIAL, DIRECIONADA A COMBATER O RACISMO E INCORPORAR A POPULAÇÃO NEGRA AO PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO

57- Neste contexto, para enfrentar e superar essas desigualdades estruturais, um conjunto de medidas deve ser adotado para se alcançar um novo patamar de emprego qualificado e de promoção da igualdade social para incorporar a população negra na plena cidadania e na sua mobilidade social. Dentre essas medidas, é fundamental ampliar o acesso dos negros e negras à educação em níveis mais elevados; ter programas direcionados a uma formação profissional maior, visando aos setores mais modernos e dinâmicos da economia; criar legislação proativa que garanta igualdade e equidade no mercado de trabalho; bem como consolidar ações e políticas que combatam e revertam as históricas discriminações étnicas, raciais, de gênero etc.

58- É preciso investir na oferta de cursos de formação, capacitação e inserção de pessoas negras no mercado de trabalho, conforme determina a Lei Federal nº 12.288/2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Mais que isso, é preciso selecionar áreas nas quais as barreiras de formação, mas também as erguidas pelo racismo, possam ser superadas.

59- As políticas governamentais devem ser direcionadas às áreas com melhores remunerações, mas de baixa presença de pessoas negras, por exemplo oferecer cursos para tripulação de voos; estimular incorporação de programas de diversidade nos Centros de Instrução de Aviação Civil (CIAC) e nas empresas aéreas; oferecer bolsas para cursos de línguas estrangeiras; criar linhas de crédito subsidiadas, nos bancos públicos, incluindo o BNDES, para empreendedoras e empreendedores negros dinamizarem seus arranjos produtivos e negócios; garantir a promoção de quadros acadêmicos, estabelecendo políticas de cotas para pessoas negras e indígenas nos níveis de mestrado, doutorado e pós-doutorado; realizar programas de compras públicas institucionais que priorizem a aquisição de produtos e serviços das comunidades quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais; estimular o setor privado a criar programas de trainee específicos para pessoas negras; entre outras iniciativas governamentais e que instem também a iniciativa privada.

60- Todas essas proposições, é importante frisar, integram e fortalecem a luta por um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento democrático, soberano, com progresso social e valorização do trabalho.

FEMINISMO, ANTIRRACISMO E POLÍTICAS PARA AS MULHERES NEGRAS

61- Chegamos à segunda década do século XXI, na qual as mulheres negras estão posicionadas na base da pirâmide remuneratória no Brasil, ocupando os postos de menor prestígio no mercado de trabalho, recebendo as menores remunerações dentre todas as fatias da população brasileira; são minoria nas universidades, maioria nos postos mais precarizados e na esteira da informalidade; e são a grande maioria das mães solo no país. Numa sociedade marcada pelo racismo, as mulheres negras ocupam funções muito determinadas e a elas reservadas, a começar pelo trabalho doméstico. A nossa cultura deu seu jeito de constituir um fio psicológico de continuidade entre a escravidão e os nossos dias, de modo que faz parte da paisagem naturalizada uma mulher negra trabalhando em uma cozinha, sendo-lhe imposta a jornada mais exaustiva de trabalho e submetida a funções que mais ninguém quer realizar. Este trabalho cumpre função essencial para o capitalismo dependente brasileiro, porque a preço vil livra um pedaço grande da mão de obra dos trabalhos domésticos, e facilita, aos setores mais privilegiados com qualificação profissional, a entrada no mercado de trabalho cada vez mais sofisticado e tecnológico, e destina a uma massiva força de trabalho reserva, em grande maioria a população negra, salários ainda mais para baixo. Esta massa enorme de mulheres trabalhadoras negras também opera como uma espécie de colchão social, garantindo uma economia do cuidado que substitui o Estado.

62- O Brasil tem 5.8 milhões de trabalhadoras domésticas e, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), no estudo intitulado O Trabalho Doméstico 10 anos após a PEC das Domésticas, de 2022, pouco mais de sessenta e sete por cento das mulheres trabalhadoras dessa categoria eram mulheres negras, enquanto as não-negras representavam 32,7%. Apenas 28% delas têm suas carteiras assinadas. De outro lado, na maior parte dos ambientes de liderança e cargos de direção de grandes empresas que são ocupados por mulheres, somente 0,4% são pretas e 1,6% ocupam a função de gerência, segundo dados do Instituto Ethos e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, em pesquisa realizada em 2019.

63- Na outra ponta, um estudo realizado em 2021, pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), revela que homens brancos com formação universitária chegam a ter salários 159% maiores que os de mulheres negras com o mesmo grau de formação. Embora as mulheres negras tenham feito progressos significativos em termos de acesso à educação, ainda há disparidades alarmantes. Dados do IBGE de 2019 mostram que apenas 15% das mulheres negras, entre 18 e 24 anos, estavam matriculadas no ensino superior, em comparação com 25% das mulheres brancas na mesma faixa etária. No campo científico e tecnológico, a situação das mulheres negras também é preocupante. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, apenas 2% das pessoas ocupadas em atividades científicas e tecnológicas no país eram mulheres negras.

64- Diante desses dados, é evidente a necessidade de políticas socioeconômicas direcionadas à promoção da equidade de gênero e raça, em meio à dura luta de classes que nos puxa para a barbárie pelo mercado capitalista neoliberal. Além disso, é essencial que o feminismo esteja consciente das intersecções das opressões que afetam as mulheres negras e inclua suas pautas em suas agendas, enquanto práxis da corrente feminista emancipacionista. A pauta feminista requer profunda integração com a luta antirracista. O emancipacionismo é incompatível com o racismo. Não se pode ter um discurso generalista da emancipação das mulheres, desconhecendo, ou desconsiderando, as realidades vividas pelas mulheres negras e indígenas.

65- Neste contexto, a superação da sub-representação das mulheres negras, nos espaços de poder e decisão, é uma luta política fundamental que deve estar entre as prioridades de todas as feministas emancipacionistas. Apesar de as mulheres representarem aproximadamente 51% do eleitorado brasileiro, a presença de mulheres negras no Congresso Nacional é de apenas 6%; o que reflete sua extrema limitação de participação política e influência na agenda legislativa de políticas públicas.

66- Nas últimas eleições, as mulheres negras comunistas demonstraram um grande potencial eleitoral e social, com diversas candidatas obtendo desempenhos eleitorais que chamaram a atenção da sociedade. Destacam-se exemplos como a eleição da professora universitária trans Dani Balbi para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro; a vereadora Bruna Rodrigues, que se tornou a mulher negra mais votada para deputada estadual no Rio Grande do Sul; a reeleição de Olívia Santana, primeira deputada estadual preta da Bahia, com grande votação; assim como a reeleição da deputada estadual e sambista Leci Brandão; e a eleição da primeira deputada federal negra e lésbica, ativista do movimento LGBTQIA+, pelo Rio Grande do Sul, a comunista Daiana Santos.

67- Esses exemplos evidenciam o potencial e a importância das mulheres negras comunistas na política, destacando suas conquistas eleitorais significativas. Elas estão rompendo barreiras e inspirando a luta antirracista e a busca por equidade nos espaços de poder. Neste sentido, o feminismo emancipacionista do PCdoB assume o desafio de filiar e empoderar mais mulheres e mulheres negras e indígenas, grupos historicamente subalternizados pelo sistema capitalista, nos espaços de poder e decisão da sociedade e do próprio Partido.

68- No entanto, é necessário continuar fortalecendo e estruturando essas bandeiras e conquistas, a fim de garantir uma representatividade política maior das mulheres negras e a inclusão de suas pautas na agenda legislativa. Isso envolve a promoção de políticas afirmativas, o apoio à filiação e à participação política de mais mulheres negras e indígenas, bem como o combate ao racismo estrutural que ainda permeia nossas instituições políticas e sociais.

69- Por meio dessas ações, o feminismo emancipacionista do PCdoB busca promover uma sociedade mais justa e igualitária, na qual todas as mulheres, especialmente as mulheres negras, tenham voz, poder e participação efetiva nos espaços de poder e decisão. O PCdoB foi o primeiro partido político a organizar uma Conferência Nacional sobre a Emancipação das Mulheres, que sempre envolve toda a sua militância a refletir e construir ações efetivas de valorização da agenda teórica e política das mulheres na sociedade e no Partido. Na 3ª Conferência Nacional, a última realizada em 2021, em sua tese aprovada pelo Comitê Central, argumenta-se que o entrelace de classe, gênero e raça é uma estratégia fundamental de luta contra o capitalismo, apontando o esgotamento enquanto sistema de enfrentamento as desigualdades. Desta maneira, o nosso grande desafio é intensificar a perspectiva socialista, enquanto alternativa de desenvolvimento sustentável e humanitário.

JUVENTUDE NEGRA E O DESAFIO DE SUPERAÇÃO DA EXCLUSÃO E DA MORTALIDADE, POR UMA VIDA PLENA E DE OPORTUNIDADES

70- Não é possível pensar processos de transformação social sem a participação da juventude. E a juventude negra liderou, ou esteve presente ativamente, movimentos pelo avanço democrático do Brasil. Em 1789, quando eclodiu a Revolta dos Búzios, também conhecida como Revolta dos Alfaiates, na Bahia, esse movimento que pretendia implantar a República democrática e acabar com a escravidão tinha, entre seus quatro principais líderes, um jovem negro de apenas 18 anos, o alfaiate Manuel Faustino dos Santos Lira. O poeta Castro Alves, que denunciou de forma contundente o espetáculo de horror que foi a escravidão, morreu com apenas 24 anos, deixando um importante legado literário de resistência política antirracista; a grande manifestação contra o racismo, ocorrida em São Paulo, contra o assassinato de um jovem trabalhador, negro, Robson Silveira da Luz, resultou na unificação de diversas organizações negras pela criação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUDCR) em 1978. Mais recentemente, a luta pelas cotas sociais e raciais nas universidades foi um dos grandes movimentos protagonizados pela juventude negra, a partir de um ciclo de assembleias, debates e dos seminários nacionais de universitários negros, que ganhou ainda mais impulso depois da Conferência Mundial contra o Racismo.

71- Há no Brasil, segundo dados do IBGE, cinquenta milhões de jovens entre 15 a 29 anos. Dados do Atlas da Juventude apontam que 51% desses jovens são negros e a grande maioria ocupa as periferias das cidades, sobretudo as grandes metrópoles. É nas favelas e nas periféricas que as vidas negras estão concentradas. Através dos movimentos culturais como o samba, o pagode, o hip-hop, sobretudo a música rap, o street dance, o grafite, as batalhas de rima, a juventude negra se expressa, em forma de arte e também de crítica social.

72- Mas a vida dos jovens negros e negras é marcada por várias formas de violência, pois a situação de pobreza de milhões de famílias negras empurra precocemente milhões deles para o trabalho precário, como ambulante, motoboy, motorista de uber e, muitas vezes, para as armadilhas do tráfico. A luta precoce para ter renda e garantir a sobrevivência provoca forte evasão escolar de jovens negros, que somam 71,7% dos que abandonam a educação básica (PNAD/2019). O risco de sofrer violência letal, para um jovem negro, é 2,5 vezes maior que para um jovem branco. A violência perpetrada por forças policiais tem como principal alvo jovens negros das periferias; o que torna a vida dessas pessoas um pesadelo permanente, além de forjar a sua imagem como a de bandido em potencial. Esta é uma das principais e deletérias formas em que o racismo se materializa na vida da juventude negra, associado a uma permanente pratica de necropolítica. No Cemitério do Jardim São Luís, em São Paulo, oitenta por cento dos enterros são de pessoas mortas por causas violentas e dois de cada três sepultados perderam a vida entre os 13 e os 25 anos. O processo que leva esta juventude negra à morte é o mesmo que torna a sua força de trabalho aviltada, barata.

73- A noção de que a vida de um jovem negro pode durar pouco, naturalizada entre nós, oferece a um capitalismo dependente cada vez mais precário e empobrecido uma massa de gente enxergada apenas como energia a ser gasta na atividade que for necessária, como se estivéssemos novamente no alvorecer de um momento da acumulação primitiva. Só uma vida tão próxima da morte pode ser exaurida em uma atividade econômica degradante sem causar espanto.

74- O enfrentamento ao racismo na prática policial, a valorização e qualificação da escola pública em todos os níveis de ensino, as políticas de acesso e permanência com assistência estudantil nas universidades, o apoio às experiências culturais e esportivas para a juventude, o estabelecimento de programas de bolsa-auxílio para que jovens em situação de vulnerabilidade social possam se manter integrados ao sistema educacional, a educação sexual para prevenir a gravidez precoce e a contaminação por doenças sexuais transmissíveis são medidas fundamentais e imprescindíveis para a elevação das condições de existência da juventude negra a um patamar de efetiva proteção social, cidadania e garantia de vida.

75- O debate de ideias avança como construção coletiva partidária de entendimento da realidade brasileira marcada pelo racismo, enquanto ideologia de dominação, que implica relações de poder que inferiorizam pessoas negras e indígenas. A luta política pela desconstrução do racismo e por um Brasil mais justo é uma necessidade civilizatória. Nós comunistas nos somamos à luta mais ampla em defesa de um Projeto Nacional de Desenvolvimento antirracista e democrático que promova equidade e mais coesão do povo, dando substância ao ideário de nação.