Sobre polos e hegemonias, transições e disputas
Por Luccas Bernacchio Gissoni*
Início agradecendo ao camarada Dilermando Toni pelos ricos debates desenvolvidos no seio do Núcleo de Economia Política e Desenvolvimento da Escola Nacional João Amazonas e pela oportunidade concedida através do compartilhamento de sua contribuição a esta Tribuna, intitulada “Vivemos em mundo multipolar”.
O camarada pergunta-se se está em curso ou completa uma “transição” de um “mundo unipolar” para um “mundo multipolar”, posicionando-se pela segunda opção. A mesma caracterização da conjuntura internacional como sendo de “transição” está presente no Projeto de Resolução ao Congresso, especial e expressamente em seu sétimo parágrafo. Ainda que tais formulações apontem um fenômeno real, acredito que devemos discutir os termos em que se expressam.
Como afirma corretamente Toni, a assim chamada Guerra Fria configurou o mundo de forma bipolar. Mas o que é um “polo”? Penso que “polo” deve ser entendido como um ponto de atração magnética em torno do qual orbitam outros elementos de menor potencial atrativo. Esta definição está de acordo com a de Toni quando este afirma que “polo” é uma potência mundial com a capacidade de aglutinar interesses de diferentes países. Como a Guerra Fria representou não só a disputa entre Estados Unidos e União Soviética e entre os modos de produção capitalista e socialista, mas entre as forças do imperialismo e da luta anticolonial, os países que se propuseram a construção de um projeto nacional de desenvolvimento mais ou menos articulados nos termos da teoria marxista tenderam a se aglutinar em torno no polo soviético, o qual representou, desta forma, a organização da resistência nacional e popular ao sistema colonial de longa duração montado a partir de 1492 e que, rearranjado na forma do imperialismo estadunidense, persiste até hoje.
Mas “polo” não deve ser confundido com “potência hegemônica”, posição ocupada exclusivamente pelos Estados Unidos da América desde 1945. A União Soviética, que disputou a hegemonia com os Estados Unidos durante a Guerra Fria, acabou derrotada por estes e pelas forças do imperialismo. Entendo esta “disputa” em sentido amplo, que inclui a ofensiva geopolítica, geoeconômica e ideológica perpetrada contra o projeto nascido da Revolução de 1917 e levou à lona a União Soviética, uma miríade de países socialistas da Europa Oriental e a maioria dos projetos nacionais de desenvolvimento africanos e latino-americanos. Permaneceram de pé a maior parte das experiências asiáticas de desenvolvimento nacional e socialista, com destaque para a República Popular da China, embora a Índia tenha recentemente se rearticulado com o campo imperialista e sua caracterização como projeto nacional de desenvolvimento, como se lê no oitavo parágrafo do Projeto de Resolução, encontra-se, na minha opinião, por ora em aberto.
Entender o destino da União Soviética como uma derrota implica em recusar radicalmente a interpretação oferecida pelo imperialismo para esse episódio, qual seja, aquela consubstanciada na categoria de “colapso”, como se a União Soviética tivesse ruído por dentro, desmoronado em consequência de suas próprias escolhas político-econômicas. Compreender, ao contrário, que ela foi derrotada nos ensina que a história não é, como a física, o encadeamento inexorável de sucessivas consequências de anteriores causas, mas um ringue aberto à luta. Da mesma forma, o destino da China – e do mundo – dependerá do resultado da luta travada pelos homens e mulheres que compõem os projetos políticos em disputa. Penso que, ao invés de jogar luz sobre esse aspecto fundamental da realidade, a categoria de “transição” dá a entender que o que estamos vendo acontecer sob nossos olhos é uma operação mecânica que levará ao nivelamento de Estados Unidos, China e Rússia, e tantos outros mais, como potências de igual poder no ringue internacional. As evidências, contudo, negam tal hipótese.
Se os Estados Unidos se retiraram do Afeganistão, a lista de 60 países que contribuíram, através do envio de tropas, para essa aventura imperialista indica que aquele país possui uma rede de poder diplomático que no presente momento está além das possibilidades chinesas e russas. No mesmo sentido, devemos notar que os projetos de integração eurasiática defendidos pela China e pela Rússia encontram dificuldades para penetrar na Europa, cujos países seriam por eles beneficiados. Isto ocorre porque os Estados Unidos são capazes de articular uma rede de aliados cujo alinhamento é quase automático. O relativo interesse da União Europeia pelas iniciativas sino-russas, puxado por Alemanha e Itália, precipitaram o Brexit e a rearticulação do Reino Unido junto ao eixo da anglofonia, liderado, evidentemente, pelos Estados Unidos. Disto tivemos uma demonstração na última semana com a divulgação da iniciativa AUKUS, a qual enfureceu o governo francês. O futuro das relações internacionais dependerá da capacidade da China e da Rússia de atrair a União Europeia para sua esfera de influência; ainda assim, na maioria das questões estratégicas decisivas, a Europa permanece alinhada aos interesses estadunidenses, como evidenciado pelo banimento da empresa chinesa Huawei de sua rede 5G.
Toni ressalta que uma estrutura multipolar não resulta em um mundo mais “distendido”. A essa correta afirmação, devo acrescentar que a “tensão” na multipolaridade é reflexo da disputa hegemônica não resolvida, fato que as categorias “polo” e “transição” tendem a esconder. Hegemonia não se divide: disputa-se. Na Guerra Fria, a bipolaridade jamais redundou em equivalência entre os polos. Atualmente, há dúvidas sobre se a China realmente optou por desafiar potência hegemônica pelo domínio e liderança do ringue. Uma interpretação possível é que ela não deseja criar uma nova ordem mundial, e que suas iniciativas mais assertivas devem ser interpretadas na chave da soberania nacional e do desenvolvimento. Mas, ainda que se diga que a China colocou tal desafio, não pode haver dúvidas: nessa luta, os Estados Unidos da América “detêm o cinturão”, e não cairão sem uma boa briga. Não haverá uma “transição”, mas um combate. Com isto não quero dizer que haverá necessariamente guerra – embora ela seja sempre possível – mas que haverá disputa naquele sentido amplo mencionado acima.
Nota:
¹SCHUTTE, G. R; CAMPOS, R. Soja, a segurança alimentar chinesa e a oferta brasileira, no prelo.