Por Getúlio Vargas Júnior*

Entre as reformas democráticas que o PCdoB defende em seu Programa Socialista, a Reforma Urbana é uma agenda que deve ter destaque em nossas propostas, inclusive em nosso plano emergencial. Revisito e ajusto uma avaliação efetuada em 2013, sobre o processo urbano em curso no Brasil. Percebemos retrocessos graves na luta urbana, acentuação de violações e inclusive grandes aumentos dos despejos por todo o Brasil. Se por um lado os ataques são maiores a resistência popular também avança.

Atualmente mais de 85% da população vivem nas cidades. São amplas camadas da nossa população vivendo em moradias inadequadas e sem infraestrutura urbana, sofrendo despejos ou remoções forçadas. No atual momento, com Bolsonaro se avança a desestruturação da política urbana, através do fim do Minha Casa Minha, com privatização forçada dos serviços de saneamento e com sistemas de mobilidade pelo Brasil, na maior parte dos casos, a beira de um colapso.

O Estatuto Cidade (Lei 10.257/2001) completou 20 anos, nosso camarada, o então deputado federal Inácio Arruda (PCdoB-CE) foi seu relator na Câmara. Desde a sua aprovação e a eleição de governos populares um ciclo virtuoso de instalou com a construção de um Ministério para tratar da pauta urbana, de um robusto sistema de Conselho e Conferências das Cidades, passando pela construção de leis setoriais de habitação (Lei 11.124/05), saneamento (Lei 11.445/07) e, recentemente, mobilidade urbana (Lei 12.587/12).

Isto levou a gestão democrática para outro patamar, afinal todos estes instrumentos determinam que as cidades elaborem planos setoriais, com participação popular e controle social efetivo. Estes planos são pactos das cidades na construção de suas prioridades.

O projeto Minha Casa Minha Vida (Lei 11.977) foi uma marca na política urbana. Nasce como uma medida anticíclica, mas logo se tornou um programa habitacional que construiu mais de 4 milhões de moradias no Brasil, muitas delas direcionadas para famílias de baixa renda, que é onde historicamente se concentra a maior parte do deficit habitacional.

Em muitas cidades, o Minha Casa Minha Vida gerou grande contradição, pois, pela disputa local as moradias foram construídas longe dos centros urbanos, fazendo que se produzisse moradia social longe da cidade formal, consequentemente longe dos serviços públicos e infraestrutura urbana. Em muitos casos a vitória foi da especulação imobiliária. Ou seja, enquanto o Poder Público constrói a estrutura necessária à especulação se apropria desta riqueza produzida coletivamente, reproduzindo a lógica do capitalismo.

Todo o processo de avanços, mesmo com limites a contradições, foi superado com a ruptura democrática de 2016. Por um lado, asfixia orçamentária, de outro lado o fim de espaços democráticos de construção coletiva na política urbana. Os avanços alcançados nas políticas urbanas, em especial no saneamento e moradia entre 2003 e 2014, tiveram grande retrocessos, a alteração do Marco Regulatório do Saneamento e a substituição do Minha Casa Minha Vida pelo Programa Casa Verde e Amarela reafirmam a lógica da cidade mercadoria, com interesses inclusive do grande capital operando saneamento. O Marco Regulatório do Saneamento foi alterado durante a pandemia e isto tem resultado em forte pressão pela privatização das companhias de saneamento por todo o Brasil.

O Programa Casa Verde e Amarela tem duas grandes sinalizações para o nosso debate, que reafirmam o interesse do capital, em transformar o direito à moradia em mercadoria. O que caracterizou o Minha Casa Minha Vida foi o subsídio habitacional, investimento público pesado, na ordem de aproximadamente R$ 300 bilhões de reais, na contratação de mais de 4,2 milhões de unidades habitacionais. A segunda sinalização é a abertura de possibilidade de produção habitacional tendo bancos privados como agentes financeiros, ou seja, é garantir, na retomada de um plano de produção habitacional grande fatia para o setor financista, mesmo que o mesmo não esteja preparado (sequer preocupado) com as questões sociais deste tipo de projeto e empreendimento.

Desde que o Programa Casa Verde e Amarela foi criado, não foi contratado um projeto habitacional, ou de regularização fundiária, nem há previsão de retomada de investimentos enquanto a EC 95/2016 estiver vigorando. Para se ter investimento em moradia e política urbana seria necessário tirar recurso de outra política social.

A mobilidade urbana não tem mais recursos no orçamento, os sistemas estão em profunda crise a quem mais sofre com isto são os usuários, em especial na periferia com menos veículos circulando, lotados em horários de pico e com menos viagens em horários noturnos. As soluções debatidas e apontadas por gestores e operadores geralmente tem passado por reajuste tarifário, demissão de trabalhadores e redução de gratuidades para idosos estudantes. É preciso que se coloque em prática o que aponta a Política Nacional de Mobilidade Urbana, 12.587/12 e reunir todos atores interessados buscando soluções que garantam a melhoria do sistema e garantia da mobilidade para quem precisa. Muitas medidas simples jogam papel importante na democratização da mobilidade das cidades, como pintar faixas exclusivas, proibição de estacionamento em vias que circula o transporte coletivo, racionalização e integração dos sistemas de mobilidade.

A luta contra os despejos retomou grande protagonismo na luta urbana no último período. O processo de construção das grandes cidades nas décadas de 1980 e 1990 foi marcado por ocupações e resistência pelo direito à moradia. A crise econômica, alto desemprego e retomada do país para o mapa mundial da fome acelerou o processo de despejos e remoções no Brasil. Processo que foi acelerado pela pandemia da Covid-19. A articulação da Campanha Despejo Zero mobilizou centenas de entidade, movimentos e organizações nacionais e locais. Em menos de um ano e meio, a pauta mobilizou a aprovação da lei do Despejo Zero, que suspende despejos e remoções até o final da pandemia, conquistou junto ao STF, a suspensão de remoções até dezembro, de áreas ocupadas antes do começo da pandemia (através da ADPF 828/2021), conquistou apoio e mobilização do Conselho de Direitos Humanos e outras organizações nacionais e internacionais que atuam no tema, que seguirá na ordem do dia mesmo com a superação da pandemia.

Se a reforma urbana é uma das reformas democráticas necessárias para a construção de um novo projeto nacional de desenvolvimento, existe uma histórica falta de planejamento e de intervenção desorganizada do poder público nesta questão. Ela tem papel de destaque em um plano emergencial de recuperação nacional. Os comunistas têm atuado nas três frentes de acumulação de forças com quadros destacados na mobilização pela reforma urbana, mas ainda de forma pouco coordenada. Seguimos com um grande desafio para o próximo período o aumento da sistematização do acumulo deste espaço, ainda mais neste momento que ele reflete setor importante da resistência nas cidades.

As cidades que queremos e precisamos construir precisam ouvir as periferias, dar voz e vez as mulheres, a população preta, lgbtqia+. Entender diversidade e pluralidade de nosso povo e traduzir isto em políticas públicas. Somente colocando a Reforma Urbana no centro do debate político do próximo período é que poderemos avançar na construção de cidades mais justas, democráticas e participativas. É fundamental que o PCdoB destaque quadros para acompanhar o debate urbano, pensar e construir propostas e apontar soluções, através do fortalecimento dos fóruns internos, fóruns da esquerda e mesmo entre as Fundações. A Comissão da Questão Urbana tem o desafio de avançar no próximo período para apontar propostas concretas para problemas reais das cidades e do nosso povo.

 

* Getúlio Vargas Júnior é presidente da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), membro da Coordenação do Fórum Nacional da Reforma Urbana, coordenador da Comissão do Direito à Cidade do CNDH e membro do Comitê Central do PCdoB.

 

Título original: “Reforma Urbana: a luta pela democratização do acesso à cidade segue na ordem do dia!”