Por Marcelo Pereira Fernandes*

 

O Partido vem debatendo há mais de uma década a questão da transição na ordem mundial. Mais uma vez no Projeto de Resolução ao 15º Congresso no item 7 é apontado o seguinte:

“A principal característica da conturbada transição em curso são o declínio relativo da superpotência estadunidense e a emergência de novos polos de poder econômico, político, diplomático e militar, oriundos sobretudo da antiga semiperiferia e periferia do sistema internacional. O fenômeno mais representativo dessa tendência é o protagonismo da China socialista como potência, e a recuperação do poder nacional da Rússia”.

Vivemos num mundo multipolar. O processo de transição apontado na tese é um fato.  Sua comprovação não depende de adotarmos a Paridade de Poder de Compra (PPC) para medir o tamanho relativo das principais economias do sistema internacional. Tanto o PPC quanto o PIB medido em dólares apresentam a mesma tendência.  Os Estados Unidos ainda possuem a maior economia do mundo, mas a distância relativa de outras nações, como a China e a Índia se reduziu bastante. Isso ocorreu também no campo político, diplomático e cultural. Mesmo no campo militar em que a vantagem norte-americana é visivelmente muito acentuada, China e Rússia também vem diminuindo a diferença. A China vem desde 1991 num processo de modernização das suas forças armadas, impulsionado a partir de 2013 com a entrada de Xi Jimping. A Rússia em vários setores ligados a indústria bélica compete de igual para igual com os Estados Unidos.

Há outro campo em que a vantagem dos Estados Unidos é muito acentuada. Estou me referindo ao sistema monetário internacional, chamado padrão dólar-flexível, que domina o sistema internacional desde os anos 1980. Neste campo parece existir um compromisso das grandes potências quanto à hierarquia em torno do dólar, provavelmente por não se encontrar (ainda) uma forma satisfatória de reformar o sistema monetário. De todo modo, a China socialista vem aumentando a internacionalização da sua moeda, o yuan, que desde 2016 faz parte da cesta de moedas do Fundo Monetário Internacional (FMI). A China também busca alternativas ao sistema de pagamentos SWIFT dominado pelos Estados Unidos como a criação do Cross-Border Interbank Payment System (CIPS) e o “yuan digital”. São inciativas importantes que facilitarão as relações econômicas entre a China e a América Latina e o Caribe, apenas para citar um exemplo de uma região que é cara ao imperialismo norte-americano. Porém, é importante sublinhar que não está no horizonte das autoridades chinesas substituir o dólar como moeda reserva da economia mundial.

Alguns analistas apontam como fraqueza dos Estados Unidos o seu endividamento público. Dívida pública é um tema complexo. Para resumir a questão é preciso deixar claro o seguinte: Estados que emitem moeda soberana não possuem as restrições financeiras que as famílias e empresas possuem. Aliás, do meu ponto de vista, dívida pública é um conceito tão distinto de dívida privada que deveria ter outro nome. Estados fazem dívida em sua própria moeda por motivos diversos (controlar a taxa de juros, distribuir renda etc), mas não para se financiar como acreditam os economistas ortodoxos (liberais). Isso significa que o Estado não precisa arrecadar ou se endividar para poder gastar. De fato, isso é contra intuitivo, mas reparem o que está acontecendo justamente agora em todo mundo por conta da crise econômica advinda da pandemia da Covid-19.

O caso dos Estados Unidos é especial porque eles emitem a moeda de reserva internacional. Algo que a economista Maria da Conceição Tavares chamou a atenção na A Retomada da Hegemonia Norte-Americana, artigo brilhante escrito há mais de 30 anos. Escrevo estas linhas para dizer que o endividamento do Estado norte-americano não demostra sua fraqueza, mas justamente o contrário: a capacidade absurda de endividamento é demonstração de força. Esta situação não tem sido suficiente para reverter seu processo de decadência relativa, mas oferece uma vantagem considerável sobre as demais potências.

Agora um rápido comentário sobre o item 20 do Projeto. Diz que: “Os EUA mantêm seu caráter imperialista como política de Estado”. Recomendo que essa frase seja excluída do Projeto de Resolução. Ora, a ideia de imperialismo como política não foi justamente a tese de Kautsky que Lenin fortemente combateu? Dizer que “mantém uma política imperialista” não pode ser interpretado como Kautsky que esta política poderia ser modificada? Em algum momento do estágio imperialista os EUA não usaram de políticas imperialistas?

O imperialismo como estágio superior do capitalismo, é o resultado de uma mudança substancial na sua estrutura organizacional; o imperialismo se apresenta como consequência das tendências intrínsecas do processo de acumulação de capital – em que prevalecem a sua concentração e centralização; o estágio do capitalismo monopolista. Afirmar que os “EUA mantém seu caráter imperialista” pode sugerir que esta é uma condição que se pode anular, o que não é o caso no estágio imperialista do capitalismo.

 

*Economista, membro do comitê estadual do PCdoB Rio de Janeiro.