Por Lílian Monks Duarte de Vargas*

Reconhecer o valor extraordinário da Constituição de 1988 não deve obliterar a visão quando há tantas limitações e insuficiências que foram sendo admitidas e naturalizadas ao longo da história, sinalizando os necessários passos que haveremos de dar a partir de um projeto de reconstrução nacional que, sempre baseado no pacto constituinte original, devem superar algumas amarras que foram-se criando nesse período.

Em relação à divisão dos poderes da República, a concentração no Executivo das decisões de planificação e execução escondem em razões burocráticas uma aversão à participação popular ao mesmo tempo que o obrigam a intrincadas negociações com o Parlamento, com o Ministério Público (novo protagonista de política pública) e até com o Tribunal de Contas (que ganha privilégios que rivalizam com poderes da República) em um “jogo de empate” que paralisa decisões políticas estratégicas e quase inviabilizam um desenvolvimento consistente e soberano. O Legislativo é pressionado fortemente para agir contra um suposto “excesso de opções partidárias” que levaria à ingovernabilidade, quando o que se trata, realmente, é de uma tentativa de isolar e extinguir a legítima representação dos setores marginalizados e subalternizados da sociedade. Finalmente, contra o Judiciário (a quem incumbe a garantia não apenas das “liberdades políticas”, a dimensão liberal dos direitos políticos, mas também a garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais) promove-se forte pressão midiática para submeter suas decisões às razões do poder econômico.

O abastardamento dos poderes não acontece por acaso: a planificação econômica precisa atender a um modelo de desenvolvimento econômico submisso aos interesses imperialistas; a participação popular na elaboração das leis tende a ser anulada pelos riscos inerentes à manutenção dos privilégios da elite econômica parasitária, especialmente à associada ao grande capital internacional, bem como à “paz e segurança nacional”, papel que as Forças Armadas sempre se arrogaram como últimas fiadoras; a cooptação da captura ideológica da cúpula do Judiciário pela elite econômica e a subjugação da base do Judiciária pela camisa-de-força das decisões com caráter vinculante e pelo disciplinamento dos juízes por via administrativa (e até penal, pelo “crime de hermenêutica” na esteira do que acontece atualmente em vários países do mundo) visa criar a legitimação de uma política de sonegação dos direitos do povo, muito semelhante ao que aconteceu na Alemanha nazista, sob os auspícios das teorias de Carl Schmitt.

Tímidas, mas relevantes, limitações que a Constituição original de 1988 fazia ao poder econômico foram extirpadas, como a limitação dos juros bancários ou a diferenciação entre empresa brasileira de capital nacional e empresa brasileira de capital estrangeiro. Outras nunca foram implementadas como a auditoria de dívida pública.

O desmonte do Estado brasileiro e a desvalorização do servidor público e do ensino; a liquidação dos bancos públicos e das políticas de fomento; a liquidação de pesquisa e da indústria de ponta de tecnologia nacional, especialmente nos setores competitivos, como na produção petrolífera, petroquímica, de mineração, aeronáutica, de construção pesada e de produtos alimentícios; a inviabilização das potencialidades de planejamento e execução de grandes projetos de desenvolvimento econômico.

Tudo é feito como se não houvesse grandes beneficiários de uma criminosa política antinacional e antipopular: a elite corrompida; o empresariado vende-pátria; o militar que bate continência à bandeira listro-estrelada. Mas, principalmente, o grande beneficiário da desgraça nacional é a “potência amiga”, que age sorrateiramente e, na coxia, manobra os cordéis das marionetes de plantão que governam o país. O povo distraído, sem perceber que é subtraído em tenebrosas transações, carrega pedras como penitentes construindo estranhas catedrais.

Mas atenção nos roteiristas, produtores e diretores da tragédia nacional é imprescindível para saber quem são os inimigos e seus (nem tão) subterrâneos interesses. A luta pela emancipação nacional e por um substancial democracia nunca estiveram tão em pauta.

Nesses momentos em que se aproxima o bicentenário de nossa independência formal, talvez seja tempo de, relembrando o sonho de uma independência real, tatuarmos na epiderme de nosso convívio a lembrança de que a autonomia nacional ainda está para se construir. Seria bom, em tempos de desvalorização dos símbolos nacionais, quem sabe resgatarmos nossa bandeira verde-amarela, já não mais como associada amargamente ao entreguismo e ao irracionalismo, mas como uma nova bandeira em que o surrado dístico positivista seja substituído por outro mais atual: Independência (nacional), Ordem (democrática) e Progresso (para todos e todas).

 

*Militante da base dos advogados Porto Alegre-RS.