Por Lílian Monks Duarte de Vargas*

É recorrente na sociologia brasileira a afirmação de que vivemos uma democracia de baixa intensidade[1]. Justifica-se plenamente tal afirmação quando se examina as causas estruturais de tal déficit democrática nas raízes autoritárias, patriarcalistas, plutocráticas e neocolonialistas que nos acompanham em toda nossa história.

Já se disse que, no Brasil, a democracia é um “intervalo comercial” (Tarso de Castro), pois de uma monarquia autoritária do início do século XIX (cujo principal característica era a existência de um “poder moderador” exercido pelo Imperador) até a ditadura, militar que durou mais de vinte anos até quase o final do século XX, bem poucos períodos poderiam ser enquadrados como de “normalidade democrática”, ainda assim entendidos como “democráticos” regimes em que ao menos os poderes da República mantiveram-se formalmente funcionando (como na República Velha e boa parte da Era Vargas, mas longe se esteve de uma democracia substancialmente real, de participação popular).  Assim, mesmo sob um ponto de vista da democracia meramente formal, os “intervalos comerciais” foram pequenos e, em geral, marcados por turbulências que quase sempre colocaram o país sob a ameaça constante de golpes e de interferência estrangeira.

A história real, pouco comentada como se o silencio pudesse exorcizar o demônio de um onipresente “poder moderador” que, substituindo o poder do Imperador previsto na Constituição de 1824, se materializa na possibilidade de uma intervenção militar golpista, sempre apoiada pelos parceria menos ostensiva – mas essencial, da “potência amiga”, herdeira do legado neocolonial português: antes, a Inglaterra; agora, os Estados Unidos.

Nessa história mal contada, pouco se fala que as intervenções militares sempre se caracterizaram por serem marcadamente antinacionais e antipopulares, mesmo quando aparentemente produziram regimes nacionalistas. Assim, os arroubos verde-amarelos dos tenentes da Revolução de 30 ou dos militares de Golbery nunca passaram de afirmações vazias de efetivo conteúdo de libertação nacional das amarras impostas pela potência amiga ao nosso desenvolvimento e efetiva soberania; muito menos deixaram de proteger os interesses dos “verdadeiros donos do país”, a elite plutocrática que sempre nos marcou como um dos países mais desiguais no mundo. Apesar de tudo, as ilusões de que uma “parcela das forças armadas” terminaria por apoiar a luta popular e nacional ainda persiste, mesmo nas forças de esquerda, em um irracionalismo difícil de compreender.

Da mesma forma, ainda que a presença inequívoca, dissimulada – ou nem tanto-, dos interesses americanos em nosso dia-a-dia, no qual quase todas as decisões relevantes sejam na política, sejam na economia, passam desapercebidas, como exercício de “poder moderador” invisibilizado por um decisão encravada no inconsciente coletivo nacional como se “melhor não falar nada, se nada se pode fazer”.

O problema é que, sem a compreensão profunda de como esses dois “poderes moderadores” (militar e imperialista) estão umbilicalmente associados à nossa “democracia de baixa intensidade”, não encontraremos a saída para o impasse que nos domina desde o advento da República: a óbvia insuficiência da democracia meramente liberal e a virtual impossibilidade de uma democracia substancial em um país tão desigual e tão submisso aos interesses estrangeiros. Se o nome de Valdemort não é dito, este não é visibilizado; e, se é assim, ele não pode ser combatido.

Um ponto crucial de uma virada democrática se deu na Constituinte de 1988. Um pacto para um amanhã, expresso em preceitos tão significativos como “valor social do trabalho”; “terra produtiva”; “educação para todos”; “saúde pública”; “cidadania”; “dignidade da pessoa humana”; “pluralismo político”; “bem-estar”; “desenvolvimento”; “igualdade”; justiça”; “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”; “harmonia social e comprometida” deveriam indicar um caminho concreto para que tais promessas se tornassem em realidade – e não se limitassem a conceitos vagos, verdadeiros cheques sem fundo sacados contra um futuro que nunca chega. Não pareceria a qualquer jurista que mereça esse título duvidar que a intenção do legislador constituinte foi a de dar efetividade as normas constitucionais (em especial as que tratam de direitos sociais e econômicos) haja vista o que dispõe o artigo 5º, parágrafo primeiro da Constituição, dotando os poderes da República de expressa autorização de tornar efetivo o pacto constituinte. Mas não se logrou superar a vagueza dos conceitos constitucionais, ainda que houvesse um compromisso autêntico de seguir adiante na trilha marcada para um futuro de um país soberano, democrático, próspero e inclusivo, mas não se indicou claramente como e quando tantas promessas no pacto constituinte deixariam do papel para tornar-se realidade. Não se conseguindo superar a resistência conservadora (mais uma o “Centrão” que entrava o país), “jogou-se para a frente”, na esperança de que a concretização desses direitos ocorresse em um processo gradual e progressivo em que a Nação se reconhecesse efetivamente livres das amarras que sempre bloquearam seu progresso; enfim emancipada da tutela militar e da dependência estrangeira que marcaram tão fortemente seu passado recente.

Faltou clareza a respeito das reais causas de nosso atraso civilizatório e insuficiência de propostas claras que levassem ao progresso e ao bem-estar dos brasileiros.

Se houve um maior detalhamento dos direitos sociais econômicos (ainda muito insuficiente para paliar uma crônica desigualdade que tristemente caracteriza o país), quase nada se disse sobre as causas profundas de tal desigualdade, quais sejam o racismo estrutural, o patriarcalismo, o colonialismo, a política assimilacionista da população indígena.

Em relação à democracia substancial, a vagueza dos conceitos ainda é mais pronunciada, tudo com evidentes limitações quanto a “excessos democráticos” que desvirtuariam um modelo supostamente harmônico. A Constituição se empenha pouco em dotar nosso clássico Estado de Direito com institutos mais avançados de outros países. Fica no marco da democracia liberal, pois isso era o mais avançado que se poderia obter naqueles tempos – e é fundamental que se mantenha nos tempos presentes.

Ainda que não tenha sido a Constituição sonhada (mas a possível, dadas as circunstâncias), é preciso reconhecer que ela representa o mais sério e mais abrangente projeto de transformação do Brasil em uma nação soberana, democrática e desenvolvida, sendo hoje o marco definitivo do qual os setores populares não podem permitir que haja retrocesso. Por isso, propor, nesse momento, alterações constitucionais ou admitir que o Supremo Tribunal Federal desnature o pacto constitucional que ele represente é inadmissível, sendo tarefa de primeira ordem de todos os democratas, dos progressistas e dos patriotas.

 

[1] SANTOS, Boaventura de Souza. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 74

 

 

*Militante da base dos advogados Porto Alegre-RS.