Uma resolução partidária é, antes de mais nada, um documento histórico. Ao mesmo tempo em que interfere na ação política no tempo presente, serve também àqueles que no futuro quiserem conhecer melhor as sociedades do passado.

Por Theófilo Rodrigues*

Se essa formulação faz sentido, então mais do que uma peça de agitação e propaganda, uma resolução partidária precisa também alcançar o máximo de precisão na interpretação que opera da realidade social.

Dito isso, entendo que uma pequena contribuição ao projeto de resolução ao 14º. Congresso do PCdoB faz-se necessária. Ali, lemos, em seu parágrafo 56, a seguinte assertiva:

“56 – Para além da redução progressiva da desigualdade no Brasil pelo índice Gini, houve aumento do valor real médio dos salários no país por doze anos consecutivos – o que configura uma importante vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital no início da estruturação de um novo projeto de desenvolvimento nacional”.

A afirmação de que houve uma “redução progressiva da desigualdade no Brasil pelo índice Gini” não é falsa. Mas também não é toda a verdade e pode induzir o leitor ao erro.

De fato, a desigualdade social medida pela metodologia do índice de Gini foi reduzida no Brasil. Contudo, quando desconsiderada a transferência de renda proporcionada pelo Bolsa Família, o que vemos é que não houve nenhuma redução da desigualdade de renda durante todo o período do chamado lulismo (2003-2016). Ou seja, a estrutura e a dinâmica de acumulação do capital manteve-se inalterada durante todo o período.

A constatação, que já havia sido feita pelo economista e sociólogo Marcelo Medeiros, em 2015, agora foi reafirmada em recente pesquisa do World Wealth and Income Database, instituto dirigido pelo economista francês Thomas Piketty.

Piketty chegou à conclusão, a partir de uma comparação inédita dos dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, do IBGE, com os da Declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física, disponibilizados pela Receita Federal.

O levantamento do instituto de Piketty mostra de forma comparada como a desigualdade no Brasil ainda é espantosa. A renda média dos 90% mais pobres da população brasileira é comparável à dos 20% mais pobres na França. Já os mais ricos no Brasil ganham mais que os da França: aqui, a renda média do 1% mais rico é de US$ 541 mil, ao passo que lá é de US$ 500 mil.

Se, por um lado, é correto afirmar, como faz a resolução ao 14º. Congresso, que os governos Lula e Dilma “promoveram uma mobilidade para cima na pirâmide social em escala de milhões”, por outro, seria errôneo deduzir que essa mobilidade gerou redução da desigualdade de renda. Isso porque o topo da pirâmide, ou seja, a parcela dos mais ricos, permaneceu inalterado. Como a assimetria é discrepante, a não alteração no topo da pirâmide teve como consequência a estabilidade da desigualdade.

Não se deseja desqualificar as importantes políticas públicas de transferência de renda que reduziram a extrema pobreza no país durante o período do lulismo. Contudo, constata-se que futuros governos de recorte popular deverão dar um passo além do que já foi feito por Lula e Dilma, caso queiram, de fato, alterar a estrutura da desigualdade de renda no país.

O que sugere o estudo de Piketty é que somente uma reestruturação do sistema tributário, com novas faixas no imposto de renda e taxação das grandes fortunas, como, aliás, já impõe o artigo 153 da Constituição de 88, poderá rever essa dinâmica da acumulação desigual de riquezas no país.

Admitir que a experiência histórica do lulismo foi fundamental para reduzir a extrema pobreza, mas incapaz de reduzir minimamente a expressiva desigualdade entre os mais pobres e os mais ricos, constitui passo basilar para essa inadiável tarefa.

* Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ.